Bruno Terra Dias*
Nos últimos anos, temos visto um movimento de abertura e aproximação da cúpula do Poder Judiciário - nele incluídos o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça, demais tribunais superiores e o recente Conselho Nacional de Justiça - à sociedade, disponibilizando, especialmente, meios de controle, ou seja, aquilo que a contemporaneidade denominou de accountability. Esta palavra tão em voga coloca-se como conceito essencial à boa governança, caracterizada pela transparência e responsabilidade social, alcançando a administração judiciária em seu relacionamento com o público e com o conjunto de magistrados e servidores próprios, para dar respostas ao jurisdicionado e condenar práticas destoantes das preconizadas, exemplarmente, pelos padrões éticos ou legais.
Hoje, o Poder Judiciário presta contas à sociedade do cumprimento de suas atividades, constitucionalmente definidas. Relatórios são produzidos, estatísticas brotam aos quatro cantos, metas funcionais são impostas, enfim, exige-se mais trabalho da estrutura judiciária existente, ainda que esta tenha sido formatada há décadas. Constrangedoramente, o Judiciário reconhece, à vista da torrente de informações posta ao público em sítios de internet e pelas mais diversas manifestações da imprensa nacional, sua incapacidade atual de fazer frente à enorme carga de trabalho imposta.
Considerada como marco democratizante do Judiciário, na perspectiva das suas relações externas com a cidadania, a Constituição Federal de 1988, com subsequentes alterações ditadas pela Emenda Constitucional 45/2004, apresentou ao público conhecimento do que lhe era negado pelo regime autoritário antecedente. Não há mais portas fechadas nem se admitem atos secretos. Qualquer cidadão pode, hoje, ter acesso a banco de dados que lhe permita um diagnóstico da prestação jurisdicional no país, em um estado da federação ou, ainda, em determinado juízo ou comarca.
Mas, se é verdade que houve democratização das relações externas, é de se perguntar se houve a correspondente modernização estrutural e legitimação nas relações internas.
Do ponto de vista da estrutura do Poder Judiciário, as poucas alterações operadas pelo constituinte de 1988 não desafogaram o serviço jurisdicional. Muito diversamente do que se poderia imaginar, o movimento forense não apenas cresceu enormemente como ainda não cessou de expandir. Inovações como os juizados especiais abriram-se a dar soluções a um sem número de causas até então reprimidas, o que pode ser considerado excelente do ponto de vista da cidadania, mas não resolveu e nem diminuiu o estoque de ações em curso. Como resultado, maior carga de trabalho e satisfação pública, sem que haja reestruturação do Poder.
Da perspectiva das relações internas, nenhuma novidade no horizonte desde a Lei Complementar 35/79, conhecida como Lei Orgânica da Magistratura Nacional (Loman). Após vinte e um anos de vigência da atual Constituição, o Ministério Público tem sua lei orgânica nacional desde 1993 (Lei 8.625), a Defensoria Pública tem a sua desde 1994 (Lei Complementar 80), a OAB renovou seu estatuto em 1994 (Lei 8.906), mas a magistratura brasileira permanece atada a um passado político ilegítimo, em decorrência da continuidade de vigência, ou não revogação, de uma legislação mal concebida e originária de uma época turva e incompatível com a cidadania democrática dos tempos que correm.
O montante das exigências democráticas - afrontado pela concepção ultrapassada da estruturação do Poder Judiciário e, somando-se a isso, a ilegitimidade originária da legislação de regência da magistratura - forma um caldo estéril, impondo aos juízes, em especial, um regime dual e antagonizante. Sendo assim, internamente, se rege a magistratura por legislação de origem espúria, enquanto os demais atores da Justiça contam com moderno e atualizado ferramental legislativo; e, externamente, ela não se pode furtar ao atendimento das demandas da cidadania, com oferta não apenas de jurisdição como ainda das satisfações exigidas pela accountability.
Para solução da esquizofrenia imposta por duas ordens inconciliáveis, uma destinada às relações internas e outra, às relações externas, o avanço democrático se impõe, exigindo uma nova lei orgânica, sobretudo legítima e coerente com o momento político atual. Consciente de seu novo e contemporâneo papel, a magistratura brasileira aguarda que o Supremo Tribunal Federal (STF) encaminhe ao Congresso Nacional o necessário projeto de lei harmonizador.
(*) Presidente da Amagis
* Este artigo foi publicado no Jornal Hoje em Dia, editoria de Opinião, na edição do de hoje, 12/03/2010.