Leia abaixo o artigo do juiz Adalberto José Rodrigues Filho, da Comarca de Betim, sobre a Justiça gratuita.
JUSTIÇA GRATUITA SEMPRE, MAS COM RESPONSABILIDADE CIVIL.
ALTERNATIVA PARA A JUSTEZA DO BENEFÍCIO E COM CONTROLE DE DEMANDA PROCESSUAL.
Juiz Adalberto José Rodrigues Filho - 1ª Vara Cível da Comarca de Betim (MG)
Desde 1950, quando foi promulgada a famosa lei 1060, dois novos Códigos de Processo Civil vieram à tona em nossa legislação. Um em 1973 e o recente de 2015. Nada foi mudado de relevante nessas duas oportunidades históricas a respeito da gratuidade da justiça. E não é difícil imaginar ou compreender que a realidade daqueles tempos do Presidente Eurico Gaspar Dutra era outra em diversos aspectos. A mudança, sobretudo nesta última oportunidade de 2015, seria algo previsível, lógico ou esperado. Mas, não. Lá vai mais uma vez o bonde da história.
O Judiciário agora é outro. A Constituição Federal de 1988 deferiu autonomia financeira e administrativa a cada um dos Poderes da República, aprimorando a independência de cada qual. Há hoje um Poder Judiciário que efetivamente se tornou referência aos cidadãos. O povo descobriu que havia ainda uma possibilidade de socorro dentro da esfera do próprio Estado frente a agravos impostos até mesmo pelo próprio Estado. Apesar de receber severas críticas, quanto à morosidade etc., o Judiciário se apresenta atualmente como um trunfo para os menos afortunados, que se apegam à sempre presente esperança de “entrar na justiça” para ter garantido o Direito. E se há essa esperança viva no íntimo do brasileiro, é pelo fato do Judiciário ser acessível e representar, efetivamente, uma boa expectativa de justiça.
Porém, há o outro lado da moeda. As demandas então cresceram em número. A antiga estrutura de fóruns e tribunais se tornou ínfima e obsoleta pelo aumento estarrecedor da quantidade de processos distribuídos a cada mês. E o Governo sempre colaborou com essa disparada, ao deixar de reconhecer direitos dos cidadãos, cego frente a jurisprudências pacificadas. As demandas passaram de uma construção artesanal para produções em serie. Em muitos casos as petições iniciais, contestações e sentenças passaram a ser uniformes em determinadas lides, por tratarem de matérias virais. Assim são as revisões de contrato de financiamento de veículos e muitas das demandas indenizatórias por danos morais em decorrência de lançamento de nome em cadastros de inadimplentes.
O quadro que se apresenta é de caos. E o Judiciário deve elaborar um severo planejamento para lidar com essa situação. Se faz necessário esquematizar o ambiente interno das secretarias de juízo, tanto no que diz respeito à implementação de fluxos de trabalho com menos mão de obra; bem como quanto à forma de valorizar o trabalho a partir de metas de produtividade. E é importante ilustrar isso, pois não se quer aqui negar que a resolução dos problemas do Judiciário deve passar por esse planejamento interno, inclusive com programa de valorização de bons profissionais (servidores e juízes) para que a meritocracia possa funcionar como estímulo a boas práticas e fidelidade a metas de trabalho. Ocorre que é necessário olhar também para o lado de fora, estudando a origem das lides.
E se olharmos por esse ângulo, para aqueles processos que vão ser abertos no futuro, haverá condições de planejamento desse futuro. Isso é fundamental. Há décadas – para não se dizer sempre – todos os órgãos do Estado brasileiro são escravos do hoje. Lidam apenas com o problema do agora, que decorre de uma falha estrutural ocorrida no passado e deixam para depois a resolução dos problemas que estão sendo criados agora. E esse ciclo é persistente e sem viés de resolução. Isso há de ser mudado. Pensar e planejar o futuro são fundamentais em todas as áreas de governo, a exemplo de todas as atividades privadas. E no Judiciário isso significa, entre outros aspectos, o planejamento da demanda, com fins de controle e preparação para eventos específicos. Nesse contexto, entendo necessário tratar aqui de um tema crucial quanto ao planejamento de demanda: a questão da justiça gratuita.
Com certeza há um viés muito significativo nesse tema que não será tratado aqui, que é o critério de deferimento. Muitos entendem que o Juiz deve atuar severamente, indeferindo requerimento de gratuita sem prova robusta da necessidade. Outros optam por garantir o direito com simples declaração. Nesse aspecto o CPC/2015 trouxe alguma evolução. E isso é inegável. Mas o objetivo desta obra não é a discussão sobre a forma ou pressupostos para o deferimento – algo já bem repisado com extrema qualidade –, mas, sim, quais devem ser os direitos deferidos ao pobre quando em postulação judicial.
A facilidade criada pelo legislador de 1950 se tornou no século XXI uma porta escancarada, sem chave ou trinco, criando uma figura que cresce descomunalmente a cada ano: a do demandante aventureiro. E aí está o maior dos problemas referentes à justiça gratuita quando o assunto é controle de demanda de processos.
Pelo modelo promulgado pelo então Presidente dos Estados Unidos do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, o pobre no sentido legal não paga as custas, despesas e os honorários advocatícios do procurador da parte contrária, mesmo em caso de total improcedência do pedido. Não há dúvida de que o § 3º do art. 98 do CPC/2015 prevê apenas a suspensão da exigibilidade do débito de tais encargos e não a simples liberalidade. Ocorre que qualquer operador do direito sabe que esse regulamento nunca teve uma efetiva praticidade. Sempre as normas sobre a gratuidade de justiça induziram efetivamente à gratuidade – e pronto. Haverá sempre alguém que contará uma estória em que houve ressarcimento no prazo fatal de cinco anos previsto no já citado art. 98. Mas isso, sem qualquer sombra de dúvida, é caso extremamente isolado. Portanto, na prática, a “gratuidade da justiça” (denominação usada pelo texto do CPC/2015 – art. 98 e seguintes) sempre induziu à simples liberalidade, inobstante a referência legal de suspensão do crédito.
Tal realidade tem feito da postulação judicial com justiça gratuita um investimento extremamente atrativo, perdendo o caráter de instrumento de garantia de direito. Seja na esfera civil ou trabalhista, o autor que postula com gratuidade não tem qualquer risco ao demandar. Pode fazer o pedido mais improvável e por qualquer simples motivo buscar o Judiciário, seja com bons ou maus propósitos. Se perder a demanda, apenas deixou de ganhar. Não sofre qualquer perda. E o demandado fica no prejuízo de pagar os honorários do seu próprio advogado e, mesmo com a razão reconhecida em juízo, é o único a amargar uma conta a pagar.
Essa realidade tem, sim, incentivado a demanda irresponsável. E isso sob vários aspectos. Há os que postulam sem qualquer perspectiva de provar os fatos que alegam (verdadeiros ou não), a espera de uma revelia ou confissão; os que sabem não ter o direito; e mesmo os que estão em dúvida e usam o Judiciário para simples consulta. Afinal de contas, é grátis mesmo! O sistema é usado até por advogados que sabem que podem postular administrativamente direitos existentes, mas que optam pelo Judiciário já que nele há o plus da condenação sucumbencial contra o não beneficiado pela gratuidade da justiça. Toda essa realidade tem sobrecarregado o Judiciário com demandas indignas. E o resultado é prejuízo para o sistema e para os legítimos jurisdicionados.
É evidente que o acesso à Justiça não pode ser barrado pela incapacidade financeira do cidadão. A gratuidade é fundamental para a democracia e está no cerne de qualquer perspectiva de garantia a direitos fundamentais. Ocorre que o direito atualmente concedido é por demais alargado.
A cobrança por custas prévias e encargos como honorários periciais é enorme empecilho ao acesso à Justiça. A exigência de pagamento desses encargos impediria que o cidadão pobre pudesse apresentar seu pedido e mesmo realizar a contendo a prova judicial com a sua necessária amplitude. Evidencia-se a indispensabilidade da gratuidade das custas e despesas processuais. Isso é certo.
O que não parece fazer sentido – com a devida vênia – é o fato da condenação ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais ser incluída na abrangência da gratuidade da justiça. A parte pobre perde a ação e mesmo com todos os recursos processuais gratuitos, a decisão judicial é pela improcedência. E mesmo assim a parte derrotada fica imune à responsabilidade indenizatória quanto aos gastos da parte contrária com seu causídico. Ora, está aqui o exagero da regra.
Qualquer pessoa, pobre ou não, está sujeita às regras da responsabilidade civil. Se um pobre causa a outro cidadão um dano, deve ser condenado a ressarci-lo. A pobreza não é licença para lesão sem responsabilidade indenizatória. Mas no processo o é, ante as atuais regras da gratuidade da justiça.
Essa fragilidade da regra tem incentivado a postulação aventureira. Os exemplos são gritantes e fazem parte da rotina de qualquer magistrado da área cível. E já se apresentam em número altíssimo e crescente. Há de dar um basta aos exageros. Nesse contexto, tenho que seria muito razoável a retirada do crédito por honorários advocatícios sucumbenciais da esfera de abrangência da gratuidade de justiça.
Cabe lembrar que a razão de existir da gratuidade da justiça é permitir ao menos favorecido o acesso à justiça. Daí ser imprescindível que as custas e despesas sejam abrangidas pelo benefício. O postulante necessita, a toda evidência, de ser atendido para fins de dar entrada no processo, citar e intimar as partes e realizar a prova. Sem qualquer desses itens, o acesso ao Judiciário estaria sendo tolhido ao menos favorecido. E isso seria uma negativa do direito constitucional pertinente. Mas o mesmo não pode ser dito quanto aos honorários advocatícios sucumbenciais.
A cobrança dos honorários sucumbenciais ocorre apenas após o término do processo, com sentença já transitada em julgado. Portanto, não interfere no acesso à justiça, já que posterior à relação jurídica processual. O beneficiário da gratuidade terá tido todas as oportunidades de postulação, colheita de provas e comunicações de atos processuais. Terá tido sua lide estudada e valorada. O direito de acesso ao Judiciário estará garantido, sem qualquer ressalva ou prejuízo. Mas, por outro lado, o eventual débito por honorários advocatícios garantirá a justeza da relação processual, visto que conferirá ao vencedor o direito de se ver minimamente ressarcido dos gastos decorrentes do processo levado então a termo pelo derrotado. E essa é uma faceta da responsabilidade civil indenizatória. Não se pode negar que quem causa prejuízo a outrem deve ressarcir o prejudicado.
E a simples situação de pobreza para fins legais não é sinônimo de insolvência. A lei prevê que o beneficiário da gratuidade deve ter apenas uma situação financeira que impeça o pagamento das despensas sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Esse conceito não exclui o proprietário de algum tipo de bem penhorável. O benefício pode ser concedido àqueles que detêm algum patrimônio. Basta que falte a renda em tanto considerável para que o pagamento das despensas represente privação. Portanto, caso condenado ao pagamento de honorários advocatícios sucumbenciais, o demandante poderá sofrer regular execução por quantia certa. E a penhora certamente não poderá atingir o imóvel de residência, sua caderneta de poupança até o limite de quarenta salários mínimos e os mais diversos bens que a lei considera impenhoráveis. Nesse contexto, evidencia-se que somente o devedor solvente terá que arcar com os honorários.
Para que a condenação não atinja o totalmente insolvente, seria razoável prever em norma a proibição de lançamento do nome do devedor em cadastro de inadimplentes. A cobrança, nesse caso, haveria de ser feita tão somente pela via da execução de sentença. Assim, uma pessoa em absoluta condição de pobreza não perderia o bom nome para fins de tomar crédito. Não haverá, então, grave prejuízo ao que não tiver patrimônio penhorável, mas será possível a cobrança frente ao solvente.
Deste modo e nessas condições, é de se considerar a importância da retirada dos honorários advocatícios sucumbenciais da abrangência da gratuidade da justiça, isso em respeito às regras da responsabilidade civil e, sobretudo, como meio de impedir a propagação de demandas aventureiras, que estão em número crescente na Justiça brasileira, aumentando o custo de todo o sistema, onerando o Judiciário e dificultando, ainda mais, o estudo das demandas que efetivamente necessitam da atenção dos magistrados.