O juiz Eduardo Perez, do Tribunal de Justiça de Goiás, criticou a imprensa pela cobertura do incêndio que destruiu o Museu Nacional. No artigo “Queimando o bom senso”, o magistrado contesta textos jornalísticos que vincularam os gastos do Judiciário com a verba destinada ao museu.

Ao longo do texto, Perez mostra os valores gastos em diversos Poderes e os ganhos de empresas privadas, além de questionar o motivo de a mídia indicar o aumento dos salários de juízes como culpa do incêndio – e da falta de verbas destinadas ao museu.

Foto: Asmego

“A insistência da mídia em atacar os magistrados por seus salários, que não são o topo da remuneração pública, mostra ou desconhecimento dos fatos ou a vontade de ignorá-los”, escreveu em um trecho. Veja abaixo, na íntegra, o texto do magistrado.

QUEIMANDO O BOM SENSO

O incêndio no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, no último dia 2 de setembro, com certeza não é o último prego no caixão da memória e cultura nacionais, mas com certeza é um dos mais compridos e que melhor se agarra à urna de nossa ignorância.

Por sorte, uma parte do jornalismo brasileiro já descobriu os culpados: os juízes.

Segundo o blog de um jornalista, dever-se-ia gastar em cultura o que supostamente se gastará com o aumento do salário dos juízes.

Na mesma linha, a mídia se pôs a discutir como a culpa do incêndio é do Judiciário.

Sem ingressar aqui na longa discussão do que a recomposição proposta (e não aumento) representa, alguns dados são importantes de se conhecer.

Noam Chomsky, linguista, historiador e ativista político norte-americano, dentre vários artigos escreveu um que merece especial atenção: “As 10 estratégias de manipulação midiática” (http://bit.ly/2o29Inw).

Cita, por exemplo, a estratégia da distração, “que consiste em desviar a atenção do público dos problemas importantes e das mudanças decididas pelas elites políticas e econômicas, mediante a técnica do dilúvio ou inundação de contínuas distrações e de informações insignificantes”.

Também a estratégia de utilizar mais o aspecto emocional que a reflexão, pois “fazer uso do aspecto emocional é uma técnica clássica para causar um curto circuito na análise racional e, finalmente, ao sentido crítico dos indivíduos”, e “permite abrir a porta de acesso ao inconsciente para implantar ou enxertar ideias, desejos, medos e temores, compulsões ou induzir comportamentos”.

Esses elementos servem para compreender o que algumas pessoas já perceberam: que a campanha orquestrada contra a Magistratura tem por objetivo enfraquecer os juízes e favorecer os corruptos, aproveitando-se da ignorância e de sentimentos menos nobres da população.

Agora, em meio a perturbados que celebram a “Casa Grande” queimada, e a políticos de ocasião que nunca fizeram nada pela cultural, a culpa coube, claro, aos juízes.

Muitos cargos públicos ganham o mesmo ou maior salário, ou subsídio, que os magistrados, computadas as verbas indenizatórias e outras que percebem.

Dados específicos estão listados em outro artigo, mas segue um breve exemplo compilado pelo juiz goiano Rodrigo Foreaux no início do ano:

1) Consultor e advogado do Senado Federal – R$35.114,19 – Lei 13.302/16;

2) Auditores do TCU – R$31.428,91 – Lei 13.320/16;

3) Defensor Público da União – R$30.546,13 – Lei 13.412/16

4) Delegados dos Estados Acre, Amapá, Rondônia e Roraima – R$30.936,91 – MP 765/2016

5) Auditor Fiscal de Finanças e Controle – R$ 27.369,67 – Lei 13.327/2016

6) Auditor Técnico da SUSEP – R$ 27.369,67 – Lei 13.327/2016

7) Auditor Fiscal do Trabalho – R$27.303,62 – MP 765/16

8) Defensor Público do Estado de Goiás – R$27.174,27 – Lei 19.920/17

9) Procuradoria do Estado de Tocantins – R$ 26.125,17

10) Nutricionistas da Câmara dos Deputados:

1 – Remuneração Básica

a – Remuneração Fixa 25,978.89;

b – Vantagens de Natureza Pessoal 1,704.45; Líquido: R$ 19,019.14.

Há também o serviço de cartórios extrajudiciais, que arrecadaram mais de R$ 14 bilhões apenas no ano de 2017 (http://bbc.in/2suqYan).

A insistência da mídia em atacar os magistrados por seus salários, que não são o topo da remuneração pública, mostra ou desconhecimento dos fatos ou a vontade de ignorá-los.

Qualquer uma das duas opções é triste: se não conhecem a realidade da remuneração do serviço público, estão escrevendo de maneira desinformada, o que é péssimo para um jornalista.

Por outro lado, se conhecem, e ainda assim insistem em criticar apenas os magistrados, é pior, porque transmitem à população uma informação equivocada para voltá-la contra o Judiciário.

Talvez exista uma terceira via que o meu amadorismo desconheça e que elucide a questão.

Mas é fato que, para além da tragédia que foi, e será para sempre, o incêndio no Museu Nacional, perda irreparável para a humanidade, tratou-se de rapidamente vinculá-lo aos magistrados.

Qualquer um com bom senso deveria perguntar qual a relevância dessa conexão açodada.

E não diz-se isso porque não é hora de apontar culpados, já que o momento de fazê-lo é agora. Parece, contudo, que a tentativa de apontar os dedos midiáticos aos magistrados soe como mais do mesmo no país onde a culpa do crime é da polícia, e não do bandido.

Certamente há culpados nessa história. A se confirmarem as informações, pelo menos desde 2004 informa-se sobre a possibilidade de incêndio no local. As perguntas que deveriam ser feitas seriam mais como “quem era responsável por zelar pelo Museu Nacional?”, “por qual motivo os pedidos de reforma não foram atendidos ou demoraram tanto?”, “houve omissão?”.

Sim, porque, por exemplo, se na sua casa você opta por gastar o dinheiro da conta de luz em uma festa, sabe claramente que ficará sem energia elétrica. E a culpa não é de nenhuma intervenção divina. Então, para qual festa foi o dinheiro do Museu Nacional?

Em vez de se procurar os culpados, e os há, rapidamente surgiram matérias vinculando a despesa do Judiciário com o incêndio.

Nada se fala, por exemplo, dos milhões, talvez acima do bilhão, que os cofres públicos deixam de recolher com as remunerações milionárias pagas a artistas, jornalistas e congêneres por intermédio de suas pessoas jurídicas, a chamada “pejotização”, o que significa menor arrecadação previdenciária e de imposto de renda, à qual, mencione-se, o trabalhador comum vinculado à CLT não tem acesso.

Para quem gosta de futebol, convém mencionar que há relevante aporte de dinheiro público, como a propaganda, por exemplo, que no Brasileirão, em 2016, correspondia a 75%, num total de R$ 165 milhões (http://bit.ly/2sB8oxC).

Na linha do texto de Chomsky que abre este artigo, a grande mídia, e, mais importante, seus patrocinadores, estimulam “o público a ser autocomplacente com a mediocridade”, e assim ele acreditará que “é moda o fato de ser estúpido, vulgar e inculto”.

Não é nenhuma novidade o declínio cultural brasileiro, e por isso mais sentida deveria ser a perda do Museu. Algumas dessas figuras artísticas são beneficiadas, por exemplo, com leis de incentivo à cultura, como o caso da Lei Rouanet. Somente em 2015, o governo federal autorizou a captação de R$ 5,2 bilhões em projetos culturais, com renúncia fiscal. Em outras palavras, deixou de se arrecadar esta quantia para os cofres públicos a fim de que alguns projetos culturais fossem beneficiados (http://bit.ly/1TtZZQa).

Exemplos? Mais de R$ 1,5 milhão aprovado em 2013 para um filme sobre José Dirceu, em 2015, R$ 516 mil para o DVD do MC Guimê, em 2011, mais de R$ 1,3 milhão para um blog de poesia da Maria Bethania, que depois desistiu do projeto, em 2014, R$ 4,1 milhões para a turnê de Luan Santana, em 2013, quase R$ 6 milhões para shows de Cláudia Leitte, em 2013, mais de R$ 25 milhões para concertos do maestro João Carlos Martins, detalhe, sem que o artista sequer tivesse conhecimento do pedido e autorizado o uso de seu nome. Há mais exemplos aqui (http://bit.ly/2ClCR21).

Pode-se citar, ainda, a descoberta de um suposto desvio de R$ 180 milhões com o uso desta lei (https://glo.bo/290VLPy) e a informação de que, em 2012, o Ministério da Cultura não sabia o destino efetivo de R$ 3,8 bilhões de patrocínio (http://bit.ly/1IN7D6F).

E, diferentemente do que alguns tentam alegar para iludir o povo, o dinheiro não é privado, mas do contribuinte, porque se trata de renúncia fiscal, ou seja, os valores que iriam para os cofres públicos vão para esses projetos que se dizem culturais.

Tudo isso levando-se em consideração apenas a lei federal, sem consultar benefícios estaduais e municipais.

Mais diretamente, não é novidade que governos contratem shows de artistas famosos, às custas do dinheiro do contribuinte.

Um exemplo, entre vários possíveis, foi a contratação, em 2013, de Ivete Sangalo, por R$ 650 mil, para inauguração de um hospital no Ceará, pelo governador Cid Gomes, irmão de Ciro Gomes (http://bit.ly/2CjfsOY), tendo o mesmo governo a contratado, no reveillon de 2011, por R$ 840 mil, segundo a notícia.

A fachada desse hospital, inaugurado com pompa, desabou um mês depois do show, ferindo um engenheiro e um operário da obra de manutenção (http://bit.ly/2EqnlEf).

Além da renúncia fiscal de bilhões anualmente para financiar projetos culturais nem sempre compreensíveis, há um investimento altíssimo em jornais, revistas e televisão.

Em 2016 houve um gasto de R$ 1,5 bilhão em propaganda, que já foi uma redução de 27% em relação ao ano anterior no índice geral, mas a União diminuiu apenas 9%, de R$ 477 milhões para R$ 432 milhões.

Os gastos da união com publicidade sempre foram altíssimos. Por exemplo, em 2009 foi de R$ 2,7 bilhões, e, em 2013, de R$ 2,9 bilhões. Em 2015, este valor era de R$ 2,1 bilhões (http://bit.ly/2GbYNz6).

Especificamente quanto aos grandes jornais, v.g., de 2000 a 2016, foram gastos, com a Folha, mais de R$ 345 milhões, a Globo, mais de R$ 338 milhões, Estadão, R$ 329 milhões, e Valor, R$ 217 milhões (http://bit.ly/2EupnHh).

Deixando claro que isso é só a União. O valor seria muito maior se incluíssem as despesas dos Estados e Municípios.

Mas o problema, na visão de parte da mídia, são os juízes.

Há aí certa razão. Os magistrados brasileiros incomodam os espertos no país do jeitinho, especialmente aqueles da classe dominante.

Se não fossem os magistrados brasileiros, talvez ainda tivéssemos o petrolão, o mensalão e outros esquemas, se é que restaria alguma coisa do Brasil.

Seus cerca de 80 milhões de processo, quase um para cada dois brasileiros, o que não possui comparação no mundo, é a prova de que as coisas não funcionam.

Cabe ao juiz decidir para que funcionem: aposentadorias, medicamentos, vagas em uti, creche e escola, mandados de segurança contra desmandos do governo e muito mais passam pela caneta da Magistratura brasileira.

Digo isso sem demérito aos procuradores federais e promotores de justiça, os policiais civis, federais e militares, os servidores do Judiciário e tantas outra carreiras públicas importantes para que o Brasil resista.

Falo, porém, da realidade que conheço e do que, de fato, acontece: à Magistratura cabe a decisão final sobre tudo, e ela é cobrada sempre a respeito disso, que o digam as matérias já nem mais diárias, mas “horárias” criticando a atuação dos juízes.

Claro, juízes honestos incomodam. E incomodam tanto que rapidamente buscam um jeito de vincular a trágica perda do Museu Nacional ao Judiciário.

É justamente para que se feche a torneira da corrupção que o Judiciário trabalha. E isso, claro, desagrada mais do que a corrupção em si.

Quanto à perda do Museu Nacional, aos que acreditam que se limitava aos visitantes, se equivoca. Mesmo quem nunca colocou os pés no local hauriu benefícios dos estudos e pesquisas que ali se realizavam.

Não se abre mão de conhecimento, e a perda é irreparável. Somos um país sem presente, de futuro duvidoso, e, cada vez mais, sem passado.

O melhor texto sobre esse lamentável episódio veio do articulista Eduardo Affonso, cuja leitura se recomenda (https://bit.ly/2Ptp8x6).

No mais, colhemos agora os amargos frutos do descaso e do patrimonialismo na coisa pública, da ideologia acima da razão e da omissão com os valores pátrios.

Para alguns, a quem a desordem interessa, a culpa da existência do lobo é do cão pastor. O povo, porém, que está acordando já percebe que esse é justamente o discurso da alcateia.

Fonte: Amaerj