Por Vladimir Passos de Freitas
O ato de julgar, no mundo inteiro, se modifica a cada dia, fruto de uma sociedade em permanente transformação. Os conflitos tornam-se mais complexos, a população aumenta, todos reivindicam seus direitos, seja através de manifestações púbicas, seja através da busca do Poder Judiciário. Novos tempos, sem dúvida.
O Brasil e o seu sistema de Justiça não fogem à regra. Aqui se tem de tudo. Problemas relacionados com falta de moradia, insegurança, organizações criminosas, questões ambientais, criminalidade moderna como a pedofilia, via redes internacionais. Enfim, quase nada nos falta. Estamos, por enquanto, livres apenas de atentados terroristas, fruto da nossa saudável convivência pacífica entre etnias e religiões. Mas até quando?
Nestes e em outros tempos, a tarefa de julgar nunca foi simples. Em meio aos meus livros de história do Direito e da Justiça, retiro da prateleira os Anais da 1ª Conferência de Desembargadores, resultado de congresso realizado no Rio de Janeiro em 1943, editado pela imprensa nacional em 1944. Dele, na página 27, extraio do discurso de abertura do desembargador Edgard Costa, presidente do Tribunal de Apelação do Distrito Federal (Rio de Janeiro era a capital), o seguinte trecho:
“A crise que assoberba o Direito, crise que não significa perecimento, senão transformação, no sentido do ajustamento aos novos fenômenos de um mundo novo, encontra certamente no juiz um amortecedor dos choques sociais pela exegese inteligente, sadia e construtiva”.
Vivia-se a II Guerra Mundial. O regime era ditatorial, com Getúlio Vargas no comando do Poder Executivo. Os juízes, sob a vigência da Carta de 1937, não podiam conhecer de questões exclusivamente políticas (artigo 94) e, se declarassem a inconstitucionalidade de uma lei, o presidente da República poderia submetê-la novamente ao Parlamento. Se este a confirmasse por dois terços dos votos, a decisão do Tribunal ficaria sem efeito (artigo 96, parágrafo único). Não eram, portanto, tempos fáceis. Como não são os de agora.
No entanto, o raciocínio do desembargador em 1943 vale para os dias de hoje. O juiz continua a ser um “amortecedor de choques sociais”. Ele é um ponto de equilíbrio entre o capital e o trabalho, o meio ambiente e o desenvolvimento, o individualismo e a solidariedade, os anseios do fisco e a capacidade contributiva do cidadão, o desejo da sociedade em punir os criminosos e os direitos individuais garantidos na Constituição de 1988, e outras tantas situações que a realidade oferece a cada dia.
Em meio a tantas visões, interesses e posições diversas, por vezes antagônicas ao extremo, deve o juiz preocupar-se com o reflexo de suas decisões?
Esta não é uma pergunta nova. No ano de 1971 eu era promotor substituto em uma pequena comarca do interior de São Paulo. Em uma das visitas mensais à cadeia pública, para ver como estavam sendo tratados os presos, encontrei três homens cumprindo pena por furto qualificado. Perguntei-lhes por que ali estavam e me responderam: “Fizemos uma galinhada e quando contamos à vítima que a galinha era dela, ela foi à Polícia, daí fomos processados, condenados e presos". Galinhada era uma prática interiorana de furtar a bípede e convidar o dono para comê-la, sem que ele soubesse.
Naquele tempo não havia a possibilidade de recorrer em liberdade nem “sursis”. Furto qualificado era prisão após a sentença. Perplexo, fui ao juiz, inconformado com aquela situação que me pareceu absurda. Ele me respondeu: “Eu não faço a lei, apenas a cumpro, o que vem depois não é meu problema”. Foi aí meu primeiro contato com o antes e o depois da sentença, um positivismo levado ao extremo.
Atualmente, muitas são as questões que afligem o juiz. Entre elas poderíamos lembrar:
1. Como decidir o pedido de um paciente que necessita de um rim para a sua sobrevivência, sabendo que o deferimento poderá significar a morte de outro que aguarda na fila e tem idêntica necessidade?
2. Como deliberar sobre o requerimento de suspensão das atividades de uma empresa poluidora, sabendo que esta medida pode significar o desemprego de dezenas de empregados, tornando-se um problema social?
3. Como avaliar a necessidade ou não de uma barragem, do ponto de vista da necessidade de energia elétrica, quando um pedido de liminar pede que seja suspensoo alagamento horas antes do momento designado para o ato?
4. Que fazer com um requerimento de pescadores artesanais que se insurgem contra a construção de um estaleiro ou aumento de um porto, argumentando que serão prejudicados na sua sobrevivência, muito embora a obra esteja entre as prioritárias para o desenvolvimento do país?
5. Como decidir o pedido de um pai condenado por pedofilia na internet que deseja visitar regularmente o filho, de quem está separado?
6. Como deliberar sobre um pedido de prisão por crime de trânsito, decisão aguardada com expectativa pela população, mas que não encontra justificativa no ordenamento jurídico pátrio?
7. Como decidir sobre o destino de filhos que foram objeto da gravidez de uma terceira pessoa, que para tanto recebeu pagamento, no contrato chamado “barriga de aluguel”?
8. Como resolver o dilema entre a necessidade de pesquisa em animais para o desenvolvimento da ciência e o sacrifício, a dor, que a eles se impõe?
9. Como apreciar a questão dos viciados em “crack” que ocupam as vias públicas, devem ser internados compulsoriamente para tratamento? Ou devem ter preservado seu direito de escolher sua forma de viver?
10. Como enfrentar as centenas de ações que discutem critérios de perguntas em concursos públicos, conseguindo preservar o direito individual sem prejuízo do prosseguimento do certame, uma vez que o provimento dos cargos é do interesse público?
11. Entre a rapidez nos julgamentos ou o exame detido de cada caso, em varas ou gabinetes congestionados, qual é a melhor opção?
Estes são apenas alguns dilemas a que se submetem os magistrados atualmente, parte deles bem descritos por Michael J. Sandel em sua obra Justiça: o que é fazer a coisa certa (Civilização Brasileira, 2011).
Atualmente, por certo os problemas não são aqueles de 1943, ocasião do 1º Encontro de Desembargadores. Alguns, inimagináveis naquele tempo, já vêm sendo enfrentados corajosamente pelo Judiciário. É o que demonstra a notícia publicada nesta ConJur no último dia 1º de agosto: o Pleno do Tribunal de Justiça da Paraíba manteve a prisão de um juiz e de dois advogados acusados de participação em um esquema de concessão fraudulento de multas impostas por condenação judicial (astreintes). No passado isso seria escondido, camuflado. Agora este dilema não existe mais no Poder Judiciário. Faz-se o que se tem que fazer.
O francês Antoine Garapon, estudioso do Judiciário moderno, comentando todos estes novos desafios e, em especial, as drogas e o desemprego, aponta o caminho a seguir: “é mais prudente aprendermos a `viver com´ e nos organizarmos para que possamos limitar seus efeitos devastadores” (O Juiz e a Democracia, Revan, página 241).
Por vezes, noto jovens bacharéis em dúvida sobre prestar concurso para a magistratura ou outra carreira que não os submeta a tantos problemas. Além deles, outros há que na própria carreira desanimam com tantos obstáculos. Minha resposta é sempre a mesma.
Penso que os novos desafios, sem dúvida cada vez mais complexos, não devem intimidar aqueles que pretendem seguir a magistratura. Ao contrário, devem servir de estímulo, pois em um estado de transição como o que vivemos, muito poderão fazer os que estão dispostos a bem exercer seu papel. E estes são, e sempre serão, respeitados pela sociedade.
Aprendendo e organizando-se, como recomenda Garapon, devem seguir seus caminhos, exercendo com dignidades suas funções. Com certeza realizarão seus sonhos, mesmo que, em termos econômicos, outras profissões pudessem ser-lhes mais rendosas e, em termos de vida pessoal, outras pudessem ser mais cômodas.
De resto, só resta concluir que devem, sim, os juízes, preocupar-se com os resultados de suas decisões. O que está além importa e muito. Tudo deve ser sopesado até chegar-se à decisão final. E se dela algum problema surgir, não há porque martirizar-se. Procura-se fazer o melhor, mas se este não for o resultado, resta o consolo de ter tentado.
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.
Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2013