Os crimes cometidos pelo pedreiro Adimar Jesus da Silva, que após ser libertado matou seis jovens em Luziânia (Goiás), ocuparam o debate nacional na última semana. O clamor público fez com que alguns partissem para a defesa de medidas extremistas. Outros afirmavam que a culpa era do juiz que soltou o preso ou até, como disse o próprio presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Gilmar Mendes, que o Judiciário deveria assumir sua responsabilidade. No entanto, para Sérgio Mazina Martins, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), nem o magistrado nem a Justiça podem ser responsabilizados.

“O juiz deve verificar se o preso satisfaz ou não os requisitos da lei. Caso contrário, agirá ilegalmente e poderá até estar cometendo o crime de abuso de autoridade”, afirma Mazina.

Segundo ele, as pessoas reincidem, e isso não é culpa do Judiciário. “Esse sujeito de Luziânia iria reincidir de qualquer modo, e não porque foi solto por um benefício”, destaca o especialista. “Sempre há reincidência, isso faz parte do sistema. Mas também há um número de pessoas que são soltas e não voltam a cometer o crime —muitas delas possivelmente soltas por esse mesmo juiz.”

Para o presidente do IBCCrim, dizer que houve culpa de alguém é um absurdo. “Milhares de presos vão para as ruas todos os dias, com benefícios prisionais. Cada um que reincidir a culpa é da prisão, é da lei, do juiz? Óbvio que não”, diz.

Sérgio Mazina lembra toda lei pode ser aprimorada, mas reformar a legislação penal agora, algo que já começa a ser proposto, é um erro. “Não se pode definir política em cima de um único caso. Não podemos cometer o erro de reformar a lei novamente de maneira precipitada, com base em opiniões que não têm fundamento algum”, diz.

O uso do monitoramento eletrônico, medida que também começou a ser discutida, é classificado como uma “pirotécnica burocrática” e de efetividade e confiabilidade zero. “É algo caro —para um sistema prisional que não compra nem papel higiênico e que faz rodízio de água entre os presos. Não é o monitoramento que impedirá o sujeito de reincidir”, diz Mazina.

Leia a íntegra da entrevista:

Última Instância – O juiz da Vara de Execuções Penais do Tribunal de Justiça do Distrito Federal Luis Carlos de Miranda, que libertou o homem que assassinou seis jovens em Luziânia (GO), afirmou que não pode ser responsabilizado pelos crimes cometidos após a soltura. O senhor concorda com isso?

Sérgio Mazina Martins – Evidentemente. Ele tem toda a razão, o juiz não pode ser responsabilizado por coisa alguma. Ele é o aplicador de uma legislação e deve aplicá-la. Os juízes não são responsáveis por aquilo que as pessoas que eles progridem ou soltam fazem depois.

Última Instância – O juiz deveria ter atendido aos pedidos do Ministério Público e poderia negar o benefício de soltura?

Sérgio Mazina – Não, o juiz deve verificar se o preso satisfaz ou não os requisitos da lei. Satisfazendo, como era o caso, ele é obrigado a conceder o benefício. Caso contrário, o juiz agirá ilegalmente e poderá até estar cometendo o crime de abuso de autoridade. O juiz que fecha os olhos para a lei e deixa pessoas presas comete um crime. Não é isso que a sociedade espera dele.

Última Instância – A progressão de regime em crimes hediondos deve ser revista ou o clamor público desse caso específico pode levar a posições extremistas?

Sérgio Mazina – Para definir a legislação, baseado nesses casos, é preciso também verificar todos os casos em que os presos condenados por atentando violento ao pudor ou crimes sexuais foram soltos e não voltaram a comete crimes —e foram muitos. Não se pode definir política em cima de um único caso. Coitada da sociedade que fosse fazer uma coisa dessas.

Última Instância – O senhor considera a legislação falha?

Sérgio Mazina – Toda legislação pode evidentemente ser aprimorada. O que não se pode permitir é que em cima de um único caso, sem conhecimento do universo de casos, se queira definir a legislação. Isso seria um absurdo, Nenhum país do mundo civilizado faz uma coisa dessas. É preciso um estudo aprofundado de todos os casos, que devem ser levados em consideração. Não adianta nada reclamar da situação prisional, falar de superlotação e ao mesmo tempo, por causa de um caso, querer endurecer a lei, o que iria implicar no aprisionamento mais demorado de milhares de pessoas.

Última Instância – O senhor considera acertada a alteração na Lei de Execuções Penais ocorrida em 2003, que excluiu a obrigatoriedade do exame criminológico e desvinculou a decisão judicial do parecer da equipe responsável pela perícia?

Sérgio Mazina – Talvez a questão devesse ter sido discutida lá atrás, em 2003. Havia uma série de opiniões de especialistas que não foram consultados na reforma da lei. Mas novamente não podemos cometer o erro de reformar a lei novamente de maneira açodada, precipitada, com base em opiniões que não têm fundamento algum. Se a lei foi certa ou errada não sei, mas podemos dizer que ela foi precipitada. Essa lei é a que criou o RDD (regime disciplinar diferenciado), outra monstruosidade na lei de execução penal, trazida pela Lei 10.792/2003. Essa norma foi precipitada pois não foi devidamente discutida. Ela surge no ímpeto de criação de um RDD, ao mesmo tempo excluindo o parecer das comissões técnicas. Isso não foi discutido, só foi, na época, apressadamente decidido. Não é isso que devemos fazer agora, sair por aí mudando lei, sem conhecer o histórico e a estrutura dela. Sem ouvir especialistas e as universidades. Não podemos repetir o mesmo erro e agora achar que vamos acertar. Estaríamos modificando a legislação com base em experiências aleatórias.

Última Instância – Chegou-se a cogitar, depois desse caso, que progressão de pena não fosse "automática" em casos de crimes hediondos, ou seja, que fosse feito acompanhamento constante e rigorosas avaliações. Essa seria uma saída ou ainda algo precipitado?

Sérgio Mazina – O ministro da Justiça não precisa de nenhuma mudança de lei para ajudar a fazer com que os presos em geral tenham acompanhamento constante. Qualquer preso —não só os condenados por crimes hediondos— devem ter acompanhamento. O ministro pode fazer isso de imediato sem mudar a lei. A questão é muito complexa. Não há como mexer em um segmento dessa questão e achar que fará bem feito. A reforma deve ser completa, levando em consideração o grande número de fatores que devem ser pesados. Um deles, antes de mais nada, é o extraordinário e inadmissível número de presos no Brasil. Qualquer coisa que se pense em fazer nos presídios, não vai funcionar de antemão. Porque conhecemos o Estado brasileiro e sabemos que ele não tem condições de transformação dentro dos presídios, principalmente com o grande número de presos. Vamos manter essa política de aprisionamento massivo? Se sim, esse vai ser um mundo da loucura e da insanidade.

Última Instância – Quais são os principais problemas enfrentados pelas Varas de Execução Penal no país?

Sérgio Mazina – Há uma resistência no Brasil inteiro, não só nas Varas de Execução Penal —não é exclusiva do sistema criminal de Justiça—, envolvendo não só juízes, mas promotores e técnicos: eles têm uma aversão muito grande em aplicar a Lei de Execução Penal tal como formulada em 1984. Uma resistência enorme em dar vazão a ela. A lei prevê esses benefícios que devem ser concedidos de regra para a maioria dos casos. Nós verificamos facilmente que muitos presos não têm acesso a tais benefícios, a uma defensoria pública de qualidade. Os presos estão sendo recolhidos em estabelecimentos prisionais que não têm condição alguma de obedecer o que a lei determina. Há uma série de coisas que precisam ser repensadas. Pra começar, a política de massificação do sistema prisional. Agora por conta de um caso específico que aconteceu no Estado de Goiás estão mais uma vez querendo mudar a legislação para aumentar o número de presos. O que se espera é uma política consequente para o país, que leve em consideração o resultado do que está sendo proposto. Qualquer mudança na Lei de Execução Penal deve-se antes discutir quantos presos a mais teremos com essa alteração.

Última Instância – O ministro Cezar Peluso, que nessa semana assume a presidência do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmou que o sistema prisional brasileiro não funciona. O senhor concorda com essa afirmação?

Sérgio Mazina – Eu diria até mais. Diria que ele não tem como funcionar no padrão atual, de massificação do aprisionamento. Até porque não foi montado para isso, e sim para pouco e rápido aprisionamento, e não para muito e demorado. Que é o que se pratica cada vez mais, especialmente dos anos 1990 para cá.

Última Instância – Quais seriam as possíveis alternativas?

Sérgio Mazina – Temos que discutir o sistema como um todo. Se vamos caminhar para uma população prisional de um milhão de presos (temos hoje meio milhão), então temos que começar a pensar em lidar com um estado de “guerra” dentro das prisões. Que é o que vamos ter em breve. Mas, se vamos pensar o sistema prisional reservado para aqueles casos de prisão estritamente necessária, aí sim podemos fazer uma série de aperfeiçoamento nesse sistema.

Última Instância – O monitoramento eletrônico é uma possibilidade?

Sérgio Mazina – Isso é uma pirotecnia burocrática que está sendo inventada. Isso não terá efeito algum. É algo caro —para um sistema prisional que não compra nem papel higiênico, que faz rodízio de água entre os presos ou que mantém presos dentro de latas (como no Espírito Santo)—, gastaríamos milhões na aquisição de equipamento caro e de confiabilidade baixa. E que não vai resolve absolutamente nenhuma das situações em que o monitoramente é anunciado como solução. Não é o monitoramento que impedirá o sujeito de reincidir. Ele vai arrancar esse equipamento e voltar a cometer crimes, exatamente como vota hoje. Se um pedófilo quiser matar jovens, ele vai jogar fora esse equipamento e matar jovens do mesmo modo. Não se pode imaginar que por causa desse equipamento ele não vai atacar ninguém, como se uma coisa tivesse algo a ver com a outra. O crime resulta de certas situações, e nenhuma delas vai ser impedida por conta desse equipamento. É mais uma pirotecnia que vai implicar em gastos excessivos. Em alguns anos, grande parte desses equipamentos ficará obsoleta e fora de uso —e hoje não temos nem viaturas policiais. È algo que tem efetividade zero.

Última Instância – O ministro Gilmar Mendes disse que o Judiciário deve assumir a responsabilidade nesse crime. Qual é, de fato, a responsabilidade do Judiciário no caso?

Sérgio Mazina – Não conheço o caso em profundidade, mas posso dizer que em princípio nenhuma. As pessoas reincidem, isso não é culpa do Judiciário. Esse indivíduo iria ser solto em breve, pois iria ter cumprido sua pena. Quando vence a pena, o indivíduo é solto. E quando ele é solto e volta a cometer um crime a culpa não é de quem o soltou. Até porque a pena não é para impedir que ele volte a cometer novos crimes. A pena é para punir pelo crime que ele cometeu no passado. Se ele tem uma propensão para a pedofilia, nesse caso, ele o fez agora como poderia ter feito em dois anos. É preciso que população brasileira comece a perceber essas “pataquadas” que estão sendo ditas por toda a parte. É evidente que se esse sujeito reincidiu agora por estar em alguma progressão de regime, mas se fosse solto daqui a dois, três ou quatro anos, ele voltaria a reincidir. Além disso, a prisão tem efeitos que agravam essa situação de abalo psíquico. Não é o fato dele ter saído, ele iria sair, não temos prisão perpétua no Brasil. É claro que ele voltaria a cometer o crime. Existe reincidência em crimes sexuais, mas também em crimes patrimoniais e contra a vida, em todos os crimes. Sempre há reincidência, isso faz parte do sistema. Mas também há um número de pessoas que são soltas e não voltam a cometer o crime —muitas delas possivelmente soltas por esse mesmo juiz.

Última Instância – Nesse caso específico de Luziânia, é possível falar em “culpa” de alguém?

Sérgio Mazina – Não há nada que nos autorize a dizer que alguém teve culpa nesse caso, a não ser o próprio autor dos crimes. Dizer que houve culpa de alguém é um absurdo. Milhares de presos vão para as ruas todos os dias, com benefícios prisionais. Cada um que reincidir a culpa é da prisão, é da lei, do juiz? Evidente que não. Existe uma rotina que lida com o complicado problema do crime. Dizer que isso é culpa de alguém é um grande desconhecimento de causa. Sou magistrado e lido com isso, todos os dias prendendo e soltando pessoas. Qualquer juiz criminal faz isso diariamente. É claro que algumas pessoas reincidem. O que me tranquiliza é que ele iria reincidir de qualquer modo, e não porque foi solto por um benefício. Iria chegar a rua e cometer esse crime de qualquer modo, infelizmente.

Última Instância– Já começam novamente a surgir defesas da prisão perpétua para crimes hediondos. Também é algo precipitado?

Sérgio Mazina – Claro. Já temos um sistema prisional que está explodindo. A sociedade aqui fora está sentindo isso. É claro que falar em prisão perpétua é algo retórico e populista e sem eficácia nenhuma. E se ocorrer, acabaremos de arrebentar o sistema prisional por completo. Isso será extremamente danoso também para quem está aqui fora.

Última Instância – Falou-se, em decorrência desse caso, em reforma administrativa da Justiça Criminal. O que, na opinião do senhor, deveria ser feito?

Sérgio Mazina – A Justiça precisa de reformas. Não apenas por causa desse caso. Temos problema na Justiça e em todo o Estado brasileiro. Acho um absurdo se pensar em reforma por causa de um ou dois casos. De uma forma geral, independentemente do caso, percebemos, inclusive no IBCCrim, uma falência uma falência do Estado brasileiro. Isso ocasiona um recurso muito cotidiano ao sistema de Justiça Todos os conflitos que existem na sociedade brasileira vão cada vez mais para no sistema formal de Justiça. Porque as outras agências do Estado estão funcionando cada vez menos, isso em diversas áreas (consumidor, ambiental, agências reguladoras). Tudo isso enche a Justiça de uma conflituosidade mais “miúda”, que faz com que a Justiça não tenha condições de atender a essa demanda. Até porque a Justiça, em qualquer lugar do mundo e em qualquer período histórico, é cara, solene e demorada. Isso acontece nos países desenvolvidos e pobres. É claro que com essas características, a Justiça brasileira, como qualquer Justiça do mundo, não teria capacidade de atender a essa demanda. Seria preciso ter um Estado mais presente na área da educação, saúde, etc. A falta de um Estado que exerça seu poder de ordenação social ocasiona um excesso de pedidos no Judiciário. E então a Justiça está decepcionando. Não temos que reformar apenas a Justiça. E sim, o Estado brasileiro, para que ele seja um pouco mais justo.

Fonte: Última Instância