Em artigo publicado na revista eletrônica Domtotal.com, o ex-presidente da Amagis, juiz Bruno Terra Dias fala sobre o atual momento por que passa a sociedade brasileira, tendo em vista as recentes manifestações sociais e o importante papel do juiz de Direito neste cenário.

Leia abaixo:

A grave missão do juiz

A Justiça brasileira vive momentos redefinidores de seu perfil para a sociedade. Mais do que a sucessão de manifestações que sacodem o país desde antes da Copa das Confederações, a escolha de instrumentos de ação, a preservação de direitos e garantias constitucionais, a massificação do meio virtual, a acentuada impessoalidade no trato dos interesses individuais e coletivos, a premência de decisões de caráter imediato e provisório formam caldo de fermentação social que merece ponderação. A experiência, pessoal e profissional, a boa formação, a segurança e a coragem dos diversos atores do mecanismo estatal de Justiça, para apurar, postular, opinar e decidir corretamente, envolvendo delegados de polícia, promotores de justiça, advogados, defensores públicos e juízes de direito, é o ancoradouro das expectativas do público brasileiro.
A divisão básica das atividades judiciárias, entre causas cíveis e criminais (são cíveis, a princípio e independentemente de especialização do profissional, todas as causas que não sejam criminais), já não corresponde ao conteúdo dos atos investigativos, postulatórios, opinativos ou decisórios. É cada dia mais comum o entrelaçamento de interesses, individuais e coletivos, privados e públicos, cíveis e criminais, tornando difícil, para o cidadão não versado nas peculiaridades do mundo jurídico, diferenciar a natureza de processos e procedimentos, judiciais e extrajudiciais.

Investigações, policiais ou ministeriais, sobre fatos ocorridos em administrações públicas, nas esferas municipal, estadual ou federal, desdobram-se em ações penais e ações civis públicas por improbidade administrativa, restituição de valores ao erário, recomposição de patrimônio histórico, artístico, arqueológico ou paisagístico, recuperação de mananciais etc. Disputas de casais em varas de família revelam, por vezes, implicações no ambiente de trabalho dos cônjuges ou conviventes; uma simples execução, com constrição judicial eletrônica, pode, pela replicação do bloqueio judicial em todas as contas de um cidadão ou de uma empresa, inviabilizar os compromissos de uma família ou a continuidade de um empreendimento econômico, com repercussões danosas para o indivíduo e para a coletividade.

Todo o sistema de Justiça está interligado. Uma investigação policial que, por inexperiência do seu condutor ou outro motivo, não seja bem conduzida pode deixar de responsabilizar um criminoso, responsabilizar um inocente, levar pessoas a uma situação de prisão desnecessária ou, ao fim, motivar a condenação do Estado a reparar danos em favor daquele que tiver sido vítima de uma injustiça assim praticada. Uma prisão temporária mal decretada, especialmente se as aparências do pedido do promotor de justiça ou do delegado de polícia forem sugestivas contra um inocente, pode destruir reputações, vidas profissionais e famílias. Uma penhora on-line pode alcançar depósitos bancários referentes a salários, vencimentos ou pensões, fazendo com que os responsáveis pela família fiquem privados de meios para pagar a escola dos filhos, o aluguel da casa, uma consulta médica, submetendo todos os membros de uma família a vexames e constrangimentos. Um inquérito civil mal conduzido ou uma ação civil mal proposta também podem desencadear efeitos nefastos para indivíduos, círculos familiares e para a sociedade em geral.

Dentre todos os profissionais do mecanismo de Justiça estatal, um destaque especial tem o juiz de direito. Todo o trabalho de delegados de polícia, promotores de justiça, defensores públicos e advogados, em última instância, tem por destino a apreciação de um juiz de direito, que há de aquilatar a solução realizadora do ideal de justiça para a sociedade jurisdicionada. Desse servidor de alta qualificação, para cujo exercício funcional e crítica social de resultados não importam as condições em que trabalha, exigem-se: sensibilidade, para compreensão do drama humano que se expõe; conhecimento, de direito e outras ciências, para compreender o alcance do que se lhe pede e do que lhe cabe decidir, para evitar malferir direitos, garantias, lídimos interesses e conquistas da civilização democrática ocidental; coragem, atributo do espírito que se dispõe a enfrentar a iniquidade para fazer prevalecer a máxima de dar a cada um o que lhe pertence de direito e por mérito; disposição, outra qualidade do espírito, que não se acomoda e sabe realizar o que a dimensão da sua missão reclama; temperança, para não se exceder, para não trocar, mesmo desapercebidamente, o significado da jurisdição por critérios de ética personalista, especialmente quando o calor político parece encantar esse tipo de caminho impróprio.

Em meio a tantas exigências sociais e políticas, merecem atenção as condições de trabalho, para que o magistrado, aquele que julga as mais diversas causas, cíveis e criminais, possa cumprir o que dele se espera, com qualidade, rapidez e segurança. Deve ter à disposição: um corpo de funcionários qualificados e dispostos; recursos materiais para realização de perícias e asseguramento de meios de prova compatíveis com o estágio atual da ciência e da tecnologia; um acervo legislado que não privilegie formalismos desnecessários; volume de serviço adequado à capacidade de solução por unidade jurisdicional, para que o excesso de serviço não funcione como incentivo a soluções mecânicas, que produzem estatísticas impressionantes ao custo de injustiças impessoais e descompromissadas com deveres de consciência; segurança material, para que ameaças não se prodigalizem como instrumento de pressão sobre o julgador; serviços de uma boa escola judicial, que permita formação permanente, em consonância com as exigências sociais.

Muito mais se poderia escrever sobre a grave missão daquele sob cuja responsabilidade repousa a estabilidade das relações sociais, o sucesso das investigações criminais e das ações dos promotores de justiça, a realização do sentimento do justo para advogados e defensores públicos, a segurança do cidadão. Não há prisão legal que não tenha sido decretada por um juiz de direito; não há penhora on-line que não tenha sido realizada por um juiz de direito; não há suspensão de direitos políticos que não tenha sido decidida por juiz de direito; não há perda de mandato eletivo que não tenha sido objeto de pedido formulado a um juiz de direito ou que não esteja sujeita a controle judicial; não há recuperação de dinheiro do erário que não seja ordenada por um juiz de direito; não há, por fim, possibilidade de subsistência da sociedade sem esse abnegado profissional que é o juiz de direito, também conhecido como magistrado, ainda que a especialização ou o grau de jurisdição lhe conceda o tratamento de trabalhista, federal, militar, desembargador ou ministro.

Àqueles que fazem de sua vida um ministério com as proporções aqui toscamente delineadas, o nosso respeito, aplauso e o desejo de que lhe sejam dadas condições materiais para satisfazer a sede de Justiça do povo brasileiro.