Mais de 880 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de disparos de armas de fogo entre os anos de 1980 e 2012, segundo levantamento do Mapa da Violência 2015. O número de mortes saltou de 8.710 em 1980 para 42.416 em 2012, o que corresponde a um aumento de 387%. De acordo com os dados, 94,5% dessas mortes tratam-se de homicídios. Esse é o pior resultado de toda a série histórica iniciada em 1980. Nesta entrevista ao site da Amagis, o juiz Fernando Galvão, do Tribunal de Justiça Militar de Minas Gerais, comenta as razões dessa explosão da criminalidade e aponta medidas para reverter esse quadro.
É possível associar esse aumento expressivo de mortes por armas de fogo ao total de armas que estão em circulação no país?
Hoje me parece que não, porque o Estatuto do Desarmamento restringe o acesso do cidadão ao porte de arma. Comprar a arma é relativamente fácil, desde que o indivíduo tenha bons antecedentes e seja considerado uma pessoa idônea, mas não há um estímulo para que ele tenha a arma, uma vez que não há facilidade para o porte. Essa é uma explicação interessante que acaba facilitando a aceitação do argumento de que, se mais pessoas portassem armas, haveria um medo recíproco que iria desestimular as ações violentas. Isso é um argumento que acaba sendo reforçado pela situação fática que evidencia uma dificuldade do cidadão portar armas e um aumento expressivo de crimes violentos e de mortes por armas de fogo.
A princípio, o Estatuto do Desarmamento não conseguiu, sozinho, deter essa escalada do crescimento de mortes por armas de fogo. Que outras reformas seriam necessárias?
A questão da segurança pública desafia o Brasil a se organizar e construir uma doutrina que seja consistente e venha produzir bons efeitos concretos nas relações sociais. Esse é um dos aspectos tratados nessa proposta de flexibilização na aquisição de armas. Só que isso é bastante complexo. Temos que trabalhar determinadas atividades, como a desempenhada pela Guarda Municipal, e refletir sobre a conveniência de que um guarda municipal porte uma arma letal.
É preciso avaliar o complexo de atividades que poderiam ensejar esse tipo de discussão. Outra questão seria o cidadão comum portar armas. Evidentemente, quando há um aumento dessa violência, a primeira questão que se apresenta é uma tutela ineficiente do Estado. O Estado não é capaz de proteger o cidadão. E, para talvez compensar a ineficiência do poder público, pensa-se em deixar que o cidadão se defenda com mãos próprias. Essa, para mim, não é uma boa alternativa. E há aí uma contradição do discurso, pois, se tivermos um Estado que estimula a compra de armas pelo particular, estaríamos dando a mensagem inversa. Isso potencializaria o aumento da violência. Temos que ter muito cuidado com esse discurso de que as carreiras da administração pública deveriam, pelos riscos inerentes, autorizar o porte de arma, pois teríamos no ambiente urbano muitos servidores querendo reagir com violência.
Há um debate muito intenso sobre a desmilitarização da Polícia Militar. O senhor consegue compreender o que significaria isso?
Essa é uma outra questão complexa que tem repercussão direta na questão da defesa social. A princípio, o que se defende é que, com a desmilitarização, a polícia abandonaria padrões de trabalho que são próximos aos das Forças Armadas e se aproximaria mais do padrão da Polícia Civil e da Polícia Federal. Esse tipo de mudança que caracterizaria uma identidade própria é importante e necessária. A Polícia Militar deve ter uma identidade de polícia, ainda que militarizada.
O problema não está no fardamento, na hierarquia, na disciplina, na abordagem. O grande problema é que o policial deve ser compreendido como integrante do mesmo contexto social da população. E temos, lamentavelmente, por uma interpretação influenciada pela experiência do regime militar, um antagonismo entre a população e a sua polícia. Isso precisa ser superado. O policial militar, ainda que fardado, é cidadão tanto quanto outro que eventualmente esteja envolvido em uma situação de conflito. Então, essa relação polícia-cidadão precisa ser continuamente melhorada. Temos que aprimorar esse relacionamento para que cada vez mais tenhamos a polícia do cidadão.
Que efeitos poderiam ter na segurança pública as propostas de mudanças no Código Penal e no Código Processual?
Existem dois projetos que tramitam no Congresso, um para reforma do Código Penal e outro para reforma do Código Processual. Essas duas iniciativas são extremamente convenientes porque é necessário haver sempre uma reavaliação desses instrumentos para perceber se eles estão nos dando as respostas de que precisamos.
O Código de Processo Penal aprimora os procedimentos, e temos ganho com isso. É um código muito complexo. Portanto, é importante que seja debatido no Parlamento com toda a calma para que ele seja um código harmônico e traga as melhores respostas.
Já o Código Penal tem recebido algumas críticas que não desmerecem o projeto nem a iniciativa. Ele precisa de um ajuste fino, e esse ajuste deve ser feito no Parlamento. Às vezes, a opinião dos especialistas acaba sendo desatendida, e nós temos que perceber que, no Estado democrático, é assim que os processos funcionam. O Código Penal propõe uma medida bastante importante que é a reunião dos diversos crimes no mesmo estatuto. Hoje, nós temos uma situação até incompreensível, porque há mais crimes previstos em Leis Extravagantes do que no próprio Código. Essa revisão revoga os crimes previstos nas Leis Extravagantes e introduz no Código Penal, de uma maneira reformulada, os crimes que seriam importantes para que tivéssemos uma referência apenas, de fácil trabalho.