Crise e resiliência
*Autor: Juiz Haroldo Dutra Dias
O artigo abaixo integra a edição de abril do jornal Decisão, da Amagis.
As aves migratórias deslocam-se em grupos de sua própria espécie, da região de reprodução para outras áreas de alimentação e descanso, retornando ao local de origem. Aquelas que partem do Hemisfério Norte, por ocasião do rigoroso inverno, são consideradas as maratonistas da migração, pois cruzam a Terra de um pólo a outro, voando em média vinte mil quilômetros por ano.
Elas repetem esse ciclo anualmente, o que lhes permite usufruir o verão duas vezes ao ano. É um privilégio, mas tudo tem um preço....
O preço? Esse imenso deslocamento exige resistência, habilidade, e ainda uma fina sintonia com os padrões de regularidade presentes na Natureza.
Antes da migração, essas aves passam por um período de alimentação intensa, chamada de engorda pré-migratória. A gordura é o seu principal estoque de energia para a viagem. Nesse período, seus depósitos de energia na cavidade do corpo e nos tecidos subcutâneos aumentam aproximadamente dez vezes, alcançando, em muitos casos, 50% da massa corporal magra.
Além disso, o vôo migratório exige apurado senso de orientação e navegação, para configuração de complexas rotas, e se baseia em múltiplas indicações sensoriais da ave: localização, intensidade e duração diária da luz solar, linhas magnéticas da magnetosfera terrestre, referenciais geográficos no solo, diferentes odores do ar, movimento das estrelas, incluindo a Lua, e aprendizado herdado.
A imensa adaptabilidade dessas aves, e a extraordinária disposição em cruzar o planeta de uma ponta a outra, em busca de melhores condições de vida, sem se prender aos obstáculos e adversidades do percurso, e sem ficar apegada ao ponto de origem, representam lições profundas para todos nós.
Quando dirigimos nosso olhar para os seres humanos, encontramos o mesmo gênero de desafios, mas nem sempre a mesma atitude da singela andorinha.
Vemos a estação do frio invadindo periodicamente nossas vidas. Contemplamos as tempestades, mudanças bruscas, deslocando tudo e a todos. Experimentamos a escassez e a penúria invadindo e dominando onde antes era verdura e abundância. Após um arco-íris de alegrias, surge o tom cinzento que aniquila, em parte, as esperanças.
Nessas horas desafiadoras, a espécie humana é surpreendente, tanto na inércia quanto na atividade. Ao lado das disposições mais corajosas de resistência e luta, encontramos a desilusão, a amargura e, sobretudo, a desistência do próprio ato de viver.
A vida é sempre uma balança tentando equilibrar o desagradável e o agradável em perfeita sincronia. Raramente, tudo está bom ao mesmo tempo.
O que faltaria ao Ser Humano para lidar com a cíclica estação da invernada? Qual a direção a tomar, quando o local onde nos situamos ameaça nossa sobrevivência física ou psíquica? Somos também portadores de um inato senso de direção e sentido? Como ativar esses potenciais no momento adequado?
Ventos, tempestades, gelo e neve, frio e escassez nos fazem ter calafrios, literalmente, mas são cíclicos. Dificuldades e obstáculos, sofrimento e perda sempre foram descritos com o auxílio da metáfora do inverno. Entretanto, eles também são cíclicos.
O inverno não dura para sempre.
A Lição? Na Natureza, tudo obedece padrões de regularidade e ordem, que podem ser observados e mensurados com precisão. Todos os elementos naturais exibem harmonia e previsibilidade. Sem esses padrões, não seria possível o conhecimento humano, muito menos a ciência.
Tudo se move e se altera no momento certo.
Nessa coreografia das quatro estações, cada período desenha seu traçado, seu movimento, seu ritmo próprio. É necessário bailar em sintonia com a música.
Nos primórdios da Humanidade, vivíamos como caçadores-coletores. Nossa compreensão da Natureza era muito limitada. Predadores ferozes, mudanças climáticas ou condições meteorológicas nos subjugavam completamente. A busca por alimento e pela sobrevivência estava à mercê dos caprichos da sorte.
Depois de muito fugir, muito lutar, o Homo Sapiens começa a observar. Desenvolve uma habilidade inestimável: aprende a reconhecer e a utilizar padrões.
Os padrões das estações do ano o levam a realizar o plantio de determinadas culturas no momento adequa- do, dando surgimento à agricultura. A compreensão do padrão biológico de algumas espécies animais o levam à domesticação e ao pastoreio.
Aldeias e cidades, civilizações e impérios puderam assim florescer graças à habilidade humana de reconhecer padrões. Uma importante lição foi absorvida:
Obtemos resultados quando fazemos a coisa certo, mas no momento certo, pois ninguém planta no inverno, e ninguém colhe na estação chuvosa.
Os pássaros contam com múltiplos recursos sensoriais que lhes fornecem indicações seguras sobre localização, intensidade e duração diária da luz solar, movimento das estrelas, fases e ciclos da Lua, ciclo das correntes marítimas, diferentes odores no ar, referenciais geográficos no solo, e o surpreendente mecanismo que as tornam capazes de enxergar as linhas do campo geomagnético do planeta.
Para que tantos recursos? Com qual finalidade esses recursos são adicionados nessas pequeninas aves logo após o seu nascimento? Qual fator externo serve de gatilho para que tudo isso venha à tona?
Uma resposta direta e simples? O INVERNO. A migração é uma resposta à crise do inverno.
No vocabulário chinês há uma sábia palavra para no- mear crise: Wei-Chi, uma combinação de duas outras palavras, perigo Wei e oportunidade Chi.
Sabemos que é impossível viver profundamente sem experimentar dor, sem atravessar tempos de crise, colapso, mudança ou ruptura. Embora tudo isso seja inevitável, nem sempre somos capazes de perceber o papel que a crise e a dor desempenham no processo de crescimento e evolução do indivíduo.
Por esta razão, enquanto algumas pessoas desabam completamente e nunca mais se recuperam quando atravessam um período de crise, outras superam essa fase, saindo renovadas e transformadas das reviravoltas e conflitos da vida. Para uns a crise representou perigo, para outros oportunidade.
Qual a diferença? Por que as pessoas reagem de maneira tão peculiar?
Evidentemente, é bastante humano recuar diante de situações dolorosas, desejar ardentemente que tudo volte a ser do jeito que era antes, ou simplesmente recusar a mudança.
No entanto, podemos alterar nossa leitura dos acontecimentos, e compreender a crise como uma virada, um estágio ou degrau crítico do nosso desenvolvimento – a possibilidade de algo novo acontecer, a transformação.
De modo semelhante às aves migratórias, o Ser Humano também vem equipado com uma série de recursos biológicos, psíquicos e anímicos que o torna apto a enfrentar, ao longo de sua vida, imenso conjunto de situações muito mais complexas do que aquelas enfrentadas pelas Andorinhas.
O que, então, nos paralisa, nos bloqueia?
Acreditamos que duas coisas: primeiramente, estamos excessivamente focados no exterior; em segundo lugar, temos muito pouco autoconhecimento.
Tal qual a semente de uma frondosa e frutífera árvore, cada um de nós está num contínuo processo de desdobramento, de crescimento e desenvolvimento interior, em direção a um modo de expressão pleno, genuíno e fidedigno.
Os obstáculos que encontramos no exterior refletem as limitações presentes em nosso interior, demandando uma transformação muito pessoal, específica e intransferível.
A superação, o fortalecimento íntimo e o progresso individual são sempre exigidos de nós nessas circunstâncias.
Não importa que tipos específicos de conflitos, traumas, paradoxos ou dilemas a vida nos apresente, todos eles possuem uma coisa em comum: eles não querem nos deixar do mesmo jeito que nos encontraram. Segundo o ditado popular “a vida é como uma pedra – ou nos tritura ou nos dá polimento”.
No entanto, a descoberta do SENTIDO nos ajuda a atravessar a vida com integridade, sem nos despedaçarmos. Temos mais possibilidades de lidar construtivamente com a dor e com as crises se pudermos encontrar algum tipo de sentido, de significado, relevância ou propósito na situação que estamos atravessando, naquilo que temos de suportar.
Particularmente, a crença de que a vida pede que enfrentemos períodos de dor e crise, para desenvolvermos certas qualidades e características que não seriam desenvolvidas se não tivéssemos passado pelo desafio desses momentos, conferem sentido e propósito à nossa própria existência.
Que possamos despertar nossa habilidades, dons, e reacender a confiança de que o inverno passa, e podemos passar por ele de forma mais resiliente, para ao final nos tornarmos mais fortes.
* O juiz Haroldo Dutra Dias é titular da 2ª Vara da Fazenda Pública Municipal de Contagem, escritor e palestrante. Ele lançou recentemente o livro"A Bússola e o Leme".
Abaixo, você pode assistir também a uma entrevista dele no programa Pensamento Jurídico, da Amagis, na qual ele falou sobre desenvolvimento pessoal.