juiz joão baptistaOs acidentes de trânsito são a principal causa de mortes de jovens na faixa de 15 a 29 anos no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Para o juiz aposentado e estudioso da legislação de trânsito João Baptista da Silva, o investimento na educação é o meio mais eficaz para termos um trânsito menos violento, mais cordial e cidadão. Entre outros livros, o magistrado é autor do Código Brasileiro de Trânsito Comentado e Explicado.

Nesta entrevista ao site da Amagis, o juiz também comenta o alto índice de motoristas embriagados presos na capital mineira, as políticas públicas para o transporte cicloviário, a proposta de revisão do Código de Trânsito Brasileiro e a possibilidade de regulamentação do Uber no Brasil.

Um debate acalorado tem sido protagonizado em várias cidades do país entre taxistas e motoristas do aplicativo Uber. O senhor avalia que há mais semelhanças ou diferenças entre as atividades exercidas por esses profissionais?

A experiência Uber é muito recente, a rigor nem existe entre nós. Não tenho, pois, como emitir juízo de valor definitivo sobre o tema. O que digo hoje posso não repetir amanhã. Não conheço a estrutura jurídica e organizacional da Uber. A que está vindo e aonde quer chegar?

O que eu sinto e vejo, de momento, é que, de um lado está uma estrutura já saturada, quase arcaica, desinteressante, pouco efetiva, pouquíssimo inovadora, nada simpática e muito cara para um varejo tão grande, como o da exploração do transporte individual particular de passageiros.

De outro, algo novo que está surgindo, querendo impor-se, usando para tanto o estímulo do novo, do inusitado, a contundência do preço mais favorável, a fascinação do luxo e do conforto etc.

No passado havia os bondes elétricos, os ônibus, as jardineiras, os táxis. Todos circulavam. Havia acomodação dos interesses nos respectivos campos. E, sobretudo, não havia guerra. Auguro que ambos encontrem um lugar comum em que se componham e preservem seus interesses. É importante não esquecer, porém, que as leis da concorrência legítima são invencíveis. Não se repelem com pedras na mão, mas com armas da mesma natureza. A lei do mercado garantirá a sobrevivência de quem for mais criativo.

A Câmara dos Deputados tem realizado audiências públicas para debater a normatização e a regulamentação do Uber no país. Na opinião do senhor, o aplicativo deve ser proibido ou regulamentado?

Falo sob o aspecto jurídico. Não adoto a tese de que somente o sistema vigente possa cuidar do transporte público, individual ou coletivo, ou ambos, inclusive o de táxis.

O sistema jurídico nacional está implantado sobre pilares como os da democracia e da livre concorrência. Todos podem estabelecer-se no País, desde que o façam dentro da lei. Mas a lei não é permissiva, e sim apenas regulamentadora. A regra é o direito de cada um se organizar.

O único do art. 170, da Constituição Federal, é emblemático a respeito: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

Se a Uber se adequar às leis que disciplinam sua atuação entre nós, não pode ser impedida de fazê-lo. É a única exigência. E não esqueço o velho chavão: “É como penso, salvo melhor juízo!”.


O número de motoristas embriagados presos em flagrante em Belo Horizonte cresceu de janeiro a julho deste ano, segundo o Detran. Nesse período, 535 pessoas foram flagradas dirigindo alcoolizadas. Por que esses números têm aumentado?

Apontaria dois motivos, nada espetaculares. Primeiro: o número de veículos em circulação cresce dia a dia. Segundo: a falência dos meios usados para retirar do volante o motorista ébrio.

No primeiro caso, é certo que ninguém compra um carro para deixá-lo na garagem. São novas oportunidades de novas infrações, de novos acidentes. Elas e eles vão crescer sempre que aumentar o número de veículos circulando.

Já no segundo, fica provado que os empedernidos infratores do volante não se impressionam com as penas da lei. Multas, despesas, penas administrativas, tudo se mistura e se resume, e desaparece diante da força e da potência de um só fator, dinheiro. Só o dinheiro resolve. Com ele se pagam as multas, se indenizam os danos materiais e morais, se consertam os veículos, se entregam as cestas básicas que substituem as raras detenções imobilizantes.

Ninguém pode afirmar que não há fiscalização. Os editais de chamamento cobrem páginas e mais paginas dos grandes jornais. Se não com a frequência e a ubiquidade desejáveis, é certo que a fiscalização atua e autua.

Soluções, sempre todos acham que têm; e eu não deixaria de tê-las ou de imaginar que as tenha. Aponto duas apenas. Primeiro: valorizar o estágio probatório com comparecimento obrigatório em cursos, em encontros de troca de experiência, em revisões etc. Segundo: se o condutor for flagrado conduzindo sob estupefaciente, que seja afastado do volante no ato. Seria um choque preventivo, com duração proporcional à gravidade do fato. Sendo condenado, seria importante valorizar cursos, eventos, palestras etc., mais que multas e figurações de detenção.

No caso dos motoristas flagrados pela Lei Seca, o senhor acredita que exista uma lentidão dos processos que definem punições aos infratores? Além disso, as punições previstas em lei são suficientes?

Em relação à “lentidão dos processos”, é preciso não exagerar ao ponto de afirmar que a demora é eterna.

Os processos são de duas naturezas: administrativa e judicial. Vão à Justiça os processos decorrentes de crimes de trânsito. Os demais interesses do condutor desenrolam-se nos órgãos próprios, na área administrativa. Os de ambas as áreas estão sujeitos a prazos, em geral razoavelmente curtos.

Não se conhecem grandes queixas por exageradas delongas na área administrativa. O problema está na área judicial. Não há juiz, nem Tribunal, nem estrutura que deem conta dos processos nos prazos dos Códigos.

Mas é possível, sim, fazer alguma coisa: fortalecer as estruturas físicas e de pessoal; criar estímulos para os agentes; acolher com interesse as reclamações e resolvê-las, ter uma fiscalização permanente, e um sem número de outras que a criatividade e o interesse do bom servidor engendra. Recursos não faltam. Estão aí, como fontes, as multas em borbulhão, por exemplo.

Entrou em vigor em novembro do ano passado a Lei 12.971/2014 que altera 11 artigos do Código de Trânsito Brasileiro. A principal mudança diz respeito ao aumento do valor das multas a serem pagas pelo infrator. Mexer no bolso do motorista é mesmo a medida mais eficaz para tentar reduzir os acidentes?

A Lei 12.971/2014 veio como resposta ao clamor público em face dos elevados percentuais de acidentes, nas ruas e nas estradas, mormente naqueles com morte ou vítimas gravemente atingidas. Toda a Lei 12.971/2014 é punitiva. Em todos os artigos alterados as multas foram elevadas quase sempre mais que em décuplos. As penas de restrição da liberdade individual de locomoção mais que reduplicaram. Em alguns casos, acrescentaram-se circunstâncias especiais de agravamento da infração.

O motorista flagrado em violação das leis do trânsito foi pungentemente atingido nas duas esferas mais sensíveis do ser humano, em que, todavia, a lei opera com maior sucesso: a esfera da liberdade individual e a esfera financeira.

Ousaria dizer que transparece uma espécie de sumo de rancor contra o infrator, que é assim punido, não por dolo, que não ocorre no acidente de trânsito (se excepcionalmente ocorre, não se tem acidente de trânsito, mas assassinato no trânsito), mas, no máximo, por culpa, apenas culpa.

O último capítulo do meu livro Direito de Trânsito é uma loa à educação. Nele ponho em dúvida a eficácia do agravamento das penas e do exacerbamento das multas como fatores de afastamento das patologias do trânsito. Penas, penalidades e extorsões não educam. Só a educação para o trânsito socorrerá as futuras gerações. Aquela educação que, como manda o Código no art. 76, “será promovida na pré-escola e nas escolas de 1º, 2º e 3º graus por meio de planejamento e ações coordenadas entre os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e de Educação, da União, dos Estados, do Distrito Federal e das Municipais, nas respectivas áreas de atuação”.

Para a nossa geração quase não vejo saída. Está como que perdida para o trânsito seguro e limpo. Uma geração que destronou os valores do passado: confiança em Deus, respeito aos pais e mestres, respeito às leis, acatamento à autoridade e amor ao próximo.

Entanto, perto de minha casa uma escola de língua inglesa anuncia: “Inglês para crianças de cinco anos”. E não deixa dúvida de que aquela que atender ao chamado sairá dali dominando o idioma de Shakespeare.

É a esperança. Se uma criança aprende uma língua saxônica aos cinco anos de idade, assimilará, também, a educação para o trânsito seguro, cordial e cidadão que se lhe ensine.

É a luz clareando de arrebóis as estradas de um trânsito, hoje, doentio, cruel e indomável.

O senhor acredita que o transporte cicloviário tem recebido a devida atenção na formulação de políticas públicas no Brasil?

Em relação a Minas Gerais, o futuro das bicicletas como opção para o transporte urbano não parece promissor. É certo que as suas vantagens são muitas.

Todavia, os inconvenientes são, também, transparentes e de tal forma que contraindicam o ciclismo nas regiões de muito aclive, como as que caracterizam o Estado de Minas Gerais, conhecido como Estado Montanhês. Ao lado desse, há o outro contraponto, advindo do traçado das ruas de nossas cidades. Por estreitas e sinuosas, só raramente cedem espaço com a amplitude exigida para atender a circulação de veículos em dupla mão, de pedestres e de ciclistas.

Esses me parecem os principais fatores que levam as autoridades a fixarem sobre outros modais da locomoção urbana seus interesses, suas iniciativas e os investimentos públicos no setor.

É forçoso, porém, reconhecer que nem pelos empecilhos lembrados justificada ficaria a desídia da autoridade em relação ao problema, às vezes tão patente.

Apesar de tudo, é muito grande o número daqueles que elegem a bicicleta como veículo de locomoção para o trabalho, passeios e prática esportiva. Afinal de contas, o bem-estar do todo social prende-se à satisfação dos grupos minoritários que o compõem, entre eles o dos ciclistas, que a pesquisa mostraria surpreendentemente muito grande.

A Frente Parlamentar Mista pela Defesa, Apoio e Fortalecimento da Bicicleta como Meio de Transporte e Atividade Esportiva, lançada em agosto na Câmara dos Deputados, quer ampliar o debate em torno da revisão do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 9503/97), a fim de garantir maior segurança nas ruas. Essa revisão é mesmo necessária?

É bom que haja grupos assim arregimentados, para o êxito das ideias que defendem. Posta está em patamar de dilargada amplidão e visibilidade por se tratar de pessoas (deputados e senadores) que elegeram por carreira e objetivo de vida a busca e a defesa dos interesses da sociedade.

Da Frente Parlamentar inaugurada no último dia 20 como homenagem ao Dia do Ciclista (19 de agosto) certamente muito esperam os amantes e os simples usuários do biciclo no sentido de ideias, iniciativas e promoções que estimulem o uso da bicicleta e atraiam para o setor condições e logística de aperfeiçoamento.

Já quanto à “revisão” do CTB “a fim de garantir convivência pacífica e maior segurança para pedestres, ciclistas e motoristas”,vejo-a com reserva. O legislador do Código deferiu ao Contran (art.12 ) o encargo e a competência para regulamentá-lo. E aí está, aliás, uma de suas excelências.

As leis muito modificadas acabam perdendo o conteúdo de origem, quando não – o que é pior – a sua ênfase, a sua mística. Novas leis, só as marcadas pela necessidade. Não se pode falar em necessidade de lei nova em razão de omissão do órgão competente, caso ocorra. Deve ele ser acionado, não ignorado.

Quanto às bicicletas, existem as tradicionais, movimentadas pelo ciclista, que as impulsiona com o seu esforço físico, e as bicicletas motorizadasque compõem os “ciclo-elétricos” regulamentados já pelo Contran na Resolução-Contran nº 315, de 08/05/2009.

Desde 2010, há na Câmara dos Deputados um projeto de lei que acrescenta ao art. 129, do CTB, um parágrafo único dispondo: “Não estão sujeitos a registro e licenciamento as bicicletas movidas a propulsão humana ou a motor elétrico”.

Receio, porém, que, tanto a Resolução-Contran citada quanto o projeto de lei referido consigam vida longa se colocados sob o exame e o prisma da ilegitimidade de seus autores para versarem esses temas.

O Código de Trânsito reservou ao município (não ao Contran) a regulamentação do “registro e licenciamento dos veículos de propulsão humana, dos ciclomotores, dos veículos de tração animal”, como está no art. 129.

Ao que me parece, nem cabe ao Contran descer à regulamentação desses modais de locomoção, nem ao Congresso Nacional soa correto exercitar neles a sua competência legislativa por tratar-se de matéria que lei federal reserva a órgão e a poder específicos.

A outro lado, não se sabe até que ponto a “revisão” do CTB poderia“garantir convivência pacífica e maior segurança para pedestres, ciclistas e motoristas”. Tais objetivos envolvem antes a gestão do trânsito, na qual a educação para o trânsito tem papel fundamental.

O senhor é um estudioso do Direito e aprecia a arte de escrever. Como está a produção na aposentadoria?

A idade chegou e posso dizer que não estou tendo muita dificuldade em conviver com ela. Segredos não existem. Importante é estar em ação. A ponderação de Cícero me está sempre presente: “O engenho persiste nos idosos, desde que deem continuidade aos estudos e aos trabalhos”. Muita sabedoria, aí. Pouco pensar no amanhã. “A cada dia basta o seu cuidado”, como está no livro. O tempo vai com a família, com os poucos amigos ainda presentes, alguma assessoria jurídica, e, sobretudo, com os livros (com os médicos, também).

Meu livro “Direito de Trânsito - Principiologia técnico- jurídica da condução veicular”, há tanto anunciado, está chegando. Já se encontra na editora. Em breve, virá “O Silêncio: Fonte e Manifestação do Direito”. Terá seu dia também “Savonarola: Cidade de Deus X Cidade dos Homens”. Espero ainda concluir “Minhas Poesias dos Outros” e “A Linguagem Absoluta das Parábolas dos Evangelhos”.