"É indispensável que se descubra a arte de negociar"
Por Rafael Baliardo
O ministro Carlos Alberto Reis de Paula, do Tribunal Superior do Trabalho, assume, na próxima terça-feira (5/3), o comando da Justiça trabalhista brasileira, o ramo do Judiciário com a presença mais abrangente no território nacional. O ministro Carlos Alberto será o primeiro negro a presidir um tribunal superior. Antes dele, há cerca de quatro meses apenas, é que o ministro Joaquim Barbosa, passou a presidir a mais alta corte de Justiça do país, o Supremo Tribunal Federal.
Juiz desde 1979, primeiro a exercer o Direito em sua família, o ministro não chegará, contudo, ao fim do mandato em 2015, pois se aposenta compulsoriamente em fevereiro de 2014, quando completa 70 anos. Natural de Pedro Leopoldo (MG), município da região metropolitana de Belo Horizonte, Carlos Alberto foi também o primeiro negro a ser nomeado para uma corte superior, o TST, em 1999, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso.
A presidente Dilma Rousseff confirmou presença na solenidade de posse. Será também, portanto, a primeira vez que um presidente da República participará da posse de um presidente do TST. Conhecido pela personalidade forte, o ministro é um defensor da negociação coletiva e de uma legislação do Trabalho que privilegie negociações de alto nível institucional entre representantes legítimos, uma cultura que ainda precisa ser disseminada no país. "O ideal de legislação trabalhista seria aquela que permitisse uma adaptação às realidades de cada categoria, de cada circunstância, mas sempre preservando alguns princípios, normas e preceitos básicos. Sou um defensor radical da negociação coletiva. Com negociadores representativos e legítimos”, disse na entrevista concedida à revista Consultor Jurídico.
Ao assumir a presidência, o ministro deve antecipar o término de seu mandato de conselheiro no Conselho Nacional de Justiça, que somente se encerraria em agosto. Será substituido pela atual vice-presidente do TST, ministra Maria Cristina Peduzzi. Segundo o ministro, a experiência no CNJ permitiu que ele conhecesse em profundidade as dimensões e a complexidade da Justiça brasileira. “Comecei a conhecer a amplitude da Justiça brasileira em todos os seus seguimentos, em todos os seus 90 tribunais. O CNJ foi um momento muito rico da minha vida”, disse à ConJur.
Leia a entrevista.
ConJur – Às vesperas de assumir o comando da corte de cúpula da Justiça do Trabalho, como o senhor avalia o grau de padronização das decisões no ramo trabalhista?
Carlos Alberto – Creio que não vale debater se as súmulas têm ou não sido adotadas, já que não são vinculantes. Alguns sustentam que elas deveriam ser cumpridas. O ponto para mim é outro. Nós juízes somos servidores. Falamos para a sociedade. De que vale um juiz decidir contra uma súmula, se, ao longo do processo, ela será rearfimada? Estamos aqui para servir à sociedade ou para fazer manifestações de convencimento pessoal? O poder de julgar é dado não à pessoa individual, mas ao Judiciário. E o Poder Judiciário é o todo. Faço uma ressalva, contudo. Temos que ter muito cuidado na formulação de súmulas, de orientações jurisprudenciais e de precedentes normativos. É necessário que a matéria esteja madura, pacificada de forma expressiva, pois isso é o que garante a segurança jurídica.
ConJur – E a chamada jurisprudência defensiva?
Carlos Alberto – O boom da Justiça se deu com a Constituição de 1988, foi lá que a sociedade descobriu o Judiciário. Este é o primeiro fato. Segundo fato: nós não temos regulamentação para lidar com esse grande volume. Por que, na área trabalhista, temos praticamente 3 milhões de processos de execução? Por que já chegamos a ter 2 milhões de casos novos e temos hoje uma média de acordos em torno de 45%? Simplesmente porque não se quer mexer nos pontos nevrálgicos. Nossa legislação está caduca quanto à execução e a recursos trabalhistas. Portanto, essa não é uma simples questão de obstar recursos. Temos que dar efetividade às decisões judiciais.
ConJur – A razoável duração do processo...
Carlos Alberto – Sim. A prestação jurisdicional inserida na Emenda 45, no artigo 5º, inciso 78 [da Constituição], que diz de forma clara – e é um preceito em branco, porque não está regulado, é de díficil regulação ou talvez de impossível regulação – diz que “a todos, no âmbito judiciário e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam sua celeridade de tramitação”. Isso é preceito constitucional. O legislador tem que tentar positivar isso. Não podemos permitir que um processo dure cinco, seis ou mesmo dez anos. Ou isso não é um desafio à Constituição?
ConJur – Faltam leis ordinárias então?
Carlos Alberto – Não. Não faltam leis. As leis ordinárias são inadequadas à atual realidade processual ou mesmo procedimental. Leis nós temos. Temos leis que regulam recursos, que regulam o problema do cumprimento de decisão, tecnicamente, a execução.
ConJur – Faltam então leis melhores?
Carlos Alberto – Exato. O Poder Judiciário cumpre a lei. O problema é que o legislador não tem a coragem de mudar a legislação. E os grandes necessitados da prestação jurisdicional são os mais fracos. De forma global, não apenas no Direito do Trabalho. O poder não pertence aos mais fracos.
ConJur – Frente a esse cenário, e pensando especificamente na Justiça do Trabalho, que assume um caráter protetivo em relação ao trabalhador, cabe pensar em construir jurisprudência que leve em conta doutrina e aspirações populares?
Carlos Alberto - O Poder Judiciário só existe numa sociedade democrática para assegurar a paz dessa sociedade. Quando há um conflito, ele exerce sua soberania. Quem não pode virar as costas para a sociedade é o legislador. Mas é evidente que o juiz não pode decidir desconhecendo os efeitos de sua decisão na sociedade.
ConJur – A terceirização ainda é uma palavra incômoda na Justiça do Trabalho?
Carlos Alberto – A terceirização é um fato. Que poderia remontar à história. De certo modo, podemos até pensar que a América foi descoberta num grande processo de terceirização. O que quero dizer com isso é que o fenômeno existe há muito tempo. O que temos agora são variantes de terceirização implantadas de forma mais extensiva. Não há uma legislação que a regule, e o TST teve de se pronunciar a respeito.
ConJur – Então qual é o problema objetivo que envolve esse fenômeno?
Carlos Alberto – Em terceirização, o que há de se discutir é darmos a quem trabalha no regime terceirizado as garantias de um trabalho digno. A terceirização têm um lado doído, que é o fato de o terceirizado não ter voz, porque não tem representação sindical. Na negociação, ele entra desarmado. Já essa discussão de atividade-meio e atividade-fim, eu acho que não procede. É um critério hoje muito aleatório.
ConJur – O problema é a precarização...
Carlos Alberto – Também. Mas é um tema muito mais complexo que isso. A primeira fábrica de automóveis do Brasil se chamava FNM, Fábrica Nacional de Motores. Eu disse ‘fábrica’. Não há mais fábricas, há apenas montadoras. O que é uma montadora? É um típico regime de terceirização. Penso que o indispensável é que no Brasil se descubra a arte de negociar. Desde que os entes que se sentem à mesa tenham legitimidade de representação.
ConJur – Qual vai ser o tom de seu mandato?
Carlos Alberto – Como presidente, penso que o TST tem que ter mais influência na sociedade brasileira. Tem que ter maior atuação institucional. Será um dos meus grande objetivos. Temos que alcançar nosso status. Acabamos nos encolhendo. Nossa ausência tem provocado uma série de problemas. Na medida em que ocuparmos nosso lugar, junto dos poderes constituídos e das entidades representantes de empregados e empregadores, a partir do momento em que formos referência no debate entre empregadores e trabalhadores, o TST aí, sim, estará exercendo seu papel, lançando luz à solução dos conflitos de trabalho.
ConJur – O senhor mencionou a negociação como via de amadurecimento desse processo...
Carlos Alberto – Sim. Fundamental. Pretendo, por exemplo, implantar um café da manhã com empregadores e trabalhadores aqui dentro, sem pauta dirigida, para que comecemos a conversar. E sempre lhes direi que tenham a mesa do TST como o lugar para se encontrarem. Esse discurso repetirei a todos. Vou trazê-los para cá nem que seja apenas para se conhecerem.
ConJur – Com o julgamento do processo do mensalão no Supremo, tivemos toda essa discussão sobre se ocorreu ou não mudança de entendimento da Suprema Corte a respeito do peso das provas indiciárias. Isso se aplica à Justiça do Trabalho para casos como demissão por justa causa?
Carlos Alberto – No meu ponto de vista, não houve mudança de entendimento. Temos que entender o seguinte: a lei é dada para o juiz para ele interpretar. E, ao interpretar, ele exerce o seu poder criativo. Isso é fundamental para termos uma visão do que é a Justiça. A prova é fundamental em qualquer processo. Sobre análise de prova temos vários critérios. Isso é uma ciência. Em qualquer processo você pode se valer de indícios. Se você só considerar provas absolutas, você deixa de ter conclusão.
ConJur – O senhor tem um livro sobre o ônus da prova, correto?
Carlos Alberto – Sim. Tenho alguns conhecimentos em Direito Penal, ainda que um pouco empoeirados. Ja fiz júri. A única coisa que não fiz no Direito, antes de me tornar juiz, foi ser advogado trabalhista.
ConJur – Não há hierarquias entre os tipos de prova, portanto?
Carlos Alberto – Quem disse que julgamento só se funda em prova absoluta? A prova se dirige ao julgador, para levá-lo ao convencimento. O instituto do ônus da prova tem como destinatário o juiz. Quando o juiz, tecnicamente, não tem solução, então se estabelecem os parâmetros, seja por estar empatada a prova ou, então, porque a prova é inconvicente ou mesmo inexistente. Isso ocorre porque o juiz não pode negar a prestação jurisdicional mesmo que não tenha chegado à conclusão alguma. Ele tem que decidir.
ConJur – Nos casos de recuperação judicial, há hipóteses em que a Justiça trabalhista pode suplantar as ordens do juízo de recuperação?
Carlos Alberto – O Direito é um sistema, temos que saber qual é a finalidade. A lei de recuperação judicial tem uma finalidade. A lei trabalhista tem outra. Temos que ter soluções que integrem isso. Não posso adotar o critério em que o trabalho seja desprezado. O artigo 170 da Constituição não fala de Direito trabalhista, mas de ordem econômica. E ali fica claro que a ordem econômica não existe se não valoriza o trabalho humano. A ordem econômica não pode estar assentada apenas na livre iniciativa, que é, no regime capitalista, a proteção do capital. A Justiça está justamente no equilbrio.
ConJur – E a discussão sobre a CLT, ministro? Deve-se ou não discutir a reforma?
Carlos Alberto – A CLT vai fazer 70 anos e é um livro pioneiro. O Brasil de 1943 era um país rural. O Brasil recém começava a ter indústria, com ajuda europeia. Sabe a quem a CLT foi dirigida? Ao trabalhador urbano. O artigo 7º excluia os trabalhadores rurais. Costumo dizer que a CLT é um livro para o amanhã. Só porque o Código Civil de 2002, por exemplo, não traz a expressão anencefalia em seu texto, não basta para dizermos que é um código superado, correto.
ConJur – Mas ainda assim precisa de mudanças pontuais, não?
Carlos Alberto – Lógico que a CLT tem que ter um aggiornamento, para repetir uma expressão italiana que gosto muito. Mas para ter essa atualização, é preciso antes fazer um grande debate. Para saber se os princípios que informam a CLT, tanto no Direito material, quanto no processual, instrumental, se eles ainda valem. A CLT é um livro protetivo mesmo. Agora, obviamente, essa proteção pode ter adequações às novas realidades. O pecado da nossa legislação é ela ser excessiva, analítica e prever muitas hipóteses. Há necessidade de a CLT regular que quando você fraciona férias o mínimo permitido é 10 dias? Essa minúcia é que envelhece os textos e dificulta as soluções. Toda vez que se regula muito, se fica superado pelo tempo.
ConJur – E qual seria o ideal?
Carlos Alberto – O ideal de legislação trabalhista seria aquela que permitisse uma adaptação às realidades de cada categoria, de cada circunstância, mas sempre preservando alguns princípios, normas e preceitos básicos. Que abrisse campo ao preenchimento dos vácuos jurídicos através da negociação. Sou um defensor radical de negociação coletiva. Com negociadores representativos e legítimos.
ConJur – E formas extrajudiciais de solução de conflitos como a arbitragem e a mediação?
Carlos Alberto – Acho ótimos. Contanto, claro, que não sejam desviados de sua aplicação.
ConJur – O TST editou uma súmula em relação a doenças estigmatizantes e estabilidade no emprego. O fato de o trabalhador ter uma dessas doenças lhe confere direitos semelhantes aos da estabilidade no emprego?
Carlos Alberto – Temos que ter uma visão global. Isso é sociologia jurídica. A sáude é um bem de vida pelo qual o Estado é responsável. Quem tem capital, o empregador, deve tomar parte nessa responsabilidade? Esse é o ponto para mim.
ConJur – E no caso do reconhecimento de que a demissão por justa causa foi injusta, isso basta para gerar direito à indenização por danos morais?
Carlos Alberto – Essa pergunta soa genérica. Quem reconhece? A Justiça? Depende também do bem de que se está tratando. O maior direito do trabalhador está no artigo 7º, inciso I da Contituição, que é um ajuste à convenção 158 [Art. 7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais: I - relação de emprego protegida constra despedida arbitrária, nos termos da lei compelmentar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos]. Tecnicamente, depende portanto da legislação. O ideal é que o Brasil fizesse uma grande descoberta deste inciso I do artigo 7º da Constituição. Quem sabe através de negociação coletiva se possa evoluir, mesmo que lentamente, nesse tema.
ConJur – E para não deixarmos de fora outra discussão sempre presente, a conceituação de assédio moral precisa ainda ser melhor definida?
Carlos Alberto – Há um surto de ações sobre assédio. É um direito que ainda não se radicou na cultura do povo brasileiro, por isso gera confusão. Já julguei caso em que o autor alegou que a circunstância de ter sido dispensado, sem justa causa, dava o direito a indenização por assédio moral, porque sua imagem saiu prejudicada diante da sociedade. Imagine só. Se, no nosso regime, eu tenho o direito protestativo de dipensar - e por isso que existe aviso prévio - quando eu cumpro a lei, aí então estou assediando? Sem cabimento. Assédio moral há, mas a configuração depende da circunstância, porque os bens de vida que se preserva são a honra e a dignidade da pessoa humana.
ConJur –A experiência no CNJ vai ajudar o seu trabalho como presidente? O senhor agora, na condição de presidente do TST, assume também o comando do Conselho Superior da Justiça do Trabalho...
Carlos Alberto – Continuo conselheiro do CNJ até o dia 7 de março, pois sou mineiro, assim como Tancredo Neves, que acabou não assumindo. Não se deve viver de véspera. O CNJ foi um momento muito rico da minha vida. Primeiro,pelo convívio enriquecedor e fraterno com os demais conselheiros, segundo, pelos desafios que me foram postos, e porque comecei a conhecer a amplitude da Justiça brasileira, em todos os seus seguimentos, em todos os seus 90 tribunais. Tive ainda o previlégio de presidir a Comissão Permanente de Planejamento Estratégico e Estatístico e Orçamento do CNJ. Já o Conselho Superior da Justiça do Trabalho é uma espécie de versão reduzida do CNJ, sem os poderes correicionais.
ConJur – O senhor renunciou, há dois anos, ao posto de vice-presidente do TST a fim de não inviabilizar sua eleição como presidente e protestando, assim, contra o processo eleitoral nas cortes superiores. Ainda pensa que as normas colocadas pela Loman são equivocadas?
Carlos Alberto – Não renunciei para protestar. Renunciei objetivamente porque se não o tivesse feito, hoje haveria uma grande celeuma sobre se eu poderia ou não ser presidente. Como sou de Minas, prezo pela paz e a tranquilidade. Prefiro chegar à presidência em paz.
ConJur – O que significa para o senhor presidir a corte de cúpula da Justiça trabalhista?
Carlos Alberto – É uma realização que aumenta muito as responsabilidades. Quem tem poder, tem a obrigação de servir. O poder é dado e conferido para aquele que deve servir e prestar contas. Esse poder não é meu. É da sociedade, por contigência. O poder não se confunde com autoridade, e é sempre declinante. Estudei ato e potência em Aristóteles. Costumo brincar que o melhor poder é o virtual, aquele que você não tem e as pessoas acham que você o possui ou vai ter.
ConJur – Melhor do que o poder real?
Carlos Alberto – O dia em que você assume o poder real, ele se torna decrecente. A cada dia que passa, está mais próximo de perdê-lo. Tem que se ter consciência dos limites, da finitude e não achar que o poder te fez maior ou menor. Esse poder tem que me manter como sou, na mais profunda determinação de honrar aquilo que sou.
ConJur – O senhor citou Aristóteles. É formado em filosofia e chegou a se preparar para ser padre, correto?
Carlos Alberto – Sim. Estudei até o segundo ano de teologia e passei então à filosofia.
ConJur – O senhor falou em poder e em religião. Como vê a renúncia do papa?
Carlos Alberto – Vejo como um ato de profunda humildade. Justo de um líder considerado conservador, veio um gesto renovador. A Igreja vive um momento de ajuste. Todos sabemos que é a Curia Romana quem comanda a Igreja. Talvez dessa renúncia surja um remoçar da Igreja Católica. Nunca se discutiu tanto a Igreja como hoje. É só ler os jornais e acompanhar a TV. É bom que nós, cátolicos, tenhamos a consciência de que a Igreja passa por esse processo de renovação.
Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 3 de março de 2013