Izabela Machado

 

Fundado oficialmente na década de 1930, o bairro de Lourdes, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, começou a surgir no entorno da Basílica de Nossa Senhora de Lourdes, inaugurada em 1923 e considerada marco zero do bairro. Ocupado inicialmente por casebres erguidos às margens do córrego do Leitão, que ainda corria a céu aberto, o bairro começou a mudar de cara com as obras de canalização do córrego. As famílias mais humildes que ali viviam foram transferidas para outra área - hoje conhecida como Barro Preto - e a região deu lugar a um bairro de casarões elegantes e imponentes habitados pelas famílias ricas da cidade.

 

João Kumaira transformou parte do casarão em seu escritório de advocacia

 

Com o passar do tempo, o bairro viu seus casarões se transformarem em arranha-céus. Alguns poucos resistiram. Um deles, erguido em 1915, chama a atenção de quem passa em frente ao número 1502 da rua Espírito Santo, bem na esquina com a rua Aimorés. O responsável por preservar esse pedacinho da história de Belo Horizonte é o juiz aposentado João Bosco Kumaira, proprietário do imóvel desde 2004. É no casarão tombado pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) que o magistrado vive hoje.

 

Casarão foi construído em 1915

 

A compra do imóvel, segundo o juiz, foi um golpe de sorte do destino. “Em 2004, estava morando na rua Espírito Santo e passava sempre em frente à casa. Achava muito bonita e ficava namorando-a. Em uma manhã de segunda-feira, vi o anúncio de ‘vende-se’. Liguei para meu filho e pedi a ele para agendar com o proprietário uma visita ao imóvel. Meia hora depois meu filho me ligou e me informou o preço que estavam pedindo pela casa. A partir daí a negociação foi muito rápida. Por sorte, na mesma época, recebi uma proposta da Morro Velho Mineração para atender três mil processos relacionados à silicose. O valor do contrato acordado com a empresa foi praticamente o valor da casa”, conta o magistrado, que à época já estava aposentado do TJMG. 

 

 Fachada foi totalmente preservada

 

De posse das chaves, João Kumaira precisou fazer uma reforma no imóvel para deixá-lo mais funcional, mas sem perder o charme de um casarão centenário. Por ser um imóvel tombado, algumas áreas precisam ser preservadas de acordo com o projeto original, como o piso da varanda e a cor da fachada. “Quando me mudei para a casa, todos os andares tinham camas de alvenaria porque aqui funcionava uma pensão. Tive que desfazer tudo. Meu escritório de advocacia passou a funcionar na parte de cima do imóvel. Coloquei a parte de baixo para alugar, mas toda vez que alguém vinha visitar o imóvel queria alugar a parte de cima. Então, passei meu escritório para a parte de baixo e rapidamente aluguei o andar superior”, afirma o juiz.

 

 

Um dos lugares preferidos do magistrado é a varanda centenária 

 

Paixão pelos doces

Aposentado do TJMG, João Kumaira fez de sua casa o seu escritório de advocacia e o reduto onde exerce uma de suas maiores paixões: a culinária. Amante da natureza desde o tempo em que vivia em Teófilo Otoni, sua cidade natal, o magistrado tem um carinho especial pelas frutas, que são transformadas por ele em sobremesas de encher os olhos e o paladar. Desde pequeno, sempre teve uma relação muito próxima com a terra e com o que vem dela.

“Nasci em uma fazenda, no interior bravo de Minas Gerais, em um local que possuía uma estação de trem. Cresci tirando leite das vacas e comendo as coisas da terra que eram plantadas lá. E na infância eu ainda fazia uma traquinagem. De noite, eu e uns amigos saíamos para pescar. De madrugada, fritávamos os peixes e, de dia, vendíamos tudo no trem. Depois, quando me casei, mudei-me para outra fazenda no município de Carlos Chagas. O terreno não tinha absolutamente nada, nem cerca. Fiz casa e curral, comprei vaca e comecei a lidar com inseminação artificial, que não era comum na região, naquela época. Meu amor pela natureza sempre foi muito grande”, recorda-se.

 

É no sítio em Carmo da Mata que o magistrado planta a matéria-prima dos doces  

 

A matéria-prima dos doces, feitos por ele em tachos de cobre, como manda a boa tradição mineira, é toda colhida em seu sítio, uma área de 90 mil m² no município de Carmo da Mata, no Centro-Oeste de Minas Gerais, onde atuou como juiz. É para lá que o juiz vai toda sexta-feira após o almoço e só volta no domingo. Jabuticaba, açaí, romã, limão, laranja, cidra, mamão, goiaba, figo-anão... tem para todos os gostos. São centenas de árvores frutíferas dividindo espaço com legumes e hortaliças. As frutas, todas orgânicas, são tiradas do pé pelo próprio magistrado. “Quando estou no sítio, faço algumas extravagâncias, como carregar os cestos pesados, abarrotados de frutas que eu mesmo colho. Não abro mão disso”, diz.

 

 João Kumaira faz questão de colher as frutas do sítio

 

Muitas viram doces ali mesmo. Outras são trazidas para Belo Horizonte e transformadas em sobremesas, que são servidas a familiares e amigos.

Descendente de libaneses, o magistrado aprendeu a cozinhar sozinho, apenas observando o que sua mãe e tias faziam. “Quando me interesso por uma comida, busco informações sobre a forma de preparo e vou fazendo meus testes até chegar no ponto ideal. Você começa a ler sobre as propriedades da fruta, por exemplo, e vai aprendendo a utilizá-la da melhor forma”, ensina.

Confraria

Quem tem o privilégio de provar essas delícias é a turma de amigos que se reúne toda segunda-feira no casarão do juiz em uma espécie de confraria gastronômica. Magistrados, médicos, empresários se reúnem em volta da extensa mesa de madeira e do fogão industrial para cozinhar e celebrar a vida. A cada semana uma pessoa fica responsável por preparar tira-gosto, entrada, prato principal e sobremesa, que invariavelmente tem entre as opções a produção caseira do juiz. “Esse é um momento de relaxamento e prazer do qual não abro mão. É isso que a culinária me proporciona. Ela dilui o estresse do dia a dia”, afirma o juiz.

 

 Magistrado exibe orgulhoso parte de sua produção 

 

Toda a produção da noite é acompanhada de perto pela namorada de João Kumaira, a nutricionista Gilka Souza Reque, que confessa já ter levado alguns sustos ao ver o cardápio dos confrades. “Às oito horas da noite, costumo ver em cima da mesa linguiça, asinha de frango frita, mandioca frita e torresmo. E isso é só a entrada. Sugiro sempre incluir uma alface e um peixe no cardápio. De vez em quando tenho que dar uns puxões de orelha”, diverte-se a nutricionista.

A culinária está tão presente na vida do magistrado que foi por meio dela que ele se encantou pela namorada. “Vim ao escritório dele assinar um contrato de locação de imóvel e, conversa vai, conversa vem, falei que eu fazia umas tortinhas integrais e perguntei se ele não gostaria de experimentá-las. Ele sugeriu que eu preparasse as tortas na casa dele. Aceitei o convite, mas o preparo da receita parou na massa. E aqui estamos, juntos há mais de dois anos.”, conta Gilka.

 

 A área gourmet do casarão é uma das mais utilizadas pelo casal Gilka e João

 

Teu Caso

Há cerca de dez meses, os doces feitos por João Kumaira ganharam um novo destino: o cardápio do Bistrô e Galeria de Arte Teu Caso, que funciona no primeiro andar do casarão histórico do juiz.

O novo menu de sobremesas do bistrô inclui agora os doces caseiros de João. “Dei as sobremesas um dia para o pessoal do restaurante testar e eles aprovaram. Agora, sempre que faço, dou uma parte dos doces para eles oferecerem aos clientes. Se eu fosse o dono do restaurante, colocaria uma mesa só de doces caseiros porque mineiro adora essa variedade de cores e sabores”, sugere o juiz.

 

 Doces feitos pelo juiz fazem parte do menu do Teu Caso

 

Os preparos que fazem mais sucesso são os de cidra ralada, figo-anão, goiabada e a geleia de romã, uma das especialidades do magistrado. Para encher um potinho de geleia, é necessário o suco de 50 frutas. 

“Costumo dizer que, no Teu Caso, o ‘docinho de vó' que temos no cardápio, na verdade, é fabricado por um avô ou, melhor dizendo, um bisavô. Quando o senhor João se ofereceu para ser nosso fornecedor de doçuras ficamos imensamente felizes e honrados, pois sabemos que esses doces estão longe de terem preço”, diz Wagner Nardy, um dos fundadores do bistrô e galeria de arte.

O magistrado não vende sua produção, porque, segundo ele, “perderia a graça”. Para quem ficou com água na boca, a solução é fazer uma visita ao restaurante e, quem sabe, com sorte, encontrar João Kumaira na varanda centenária para saborear as delícias feitas por ele e, de brinde, ouvir uma boa prosa.   

 

João Kumaira aprecia as obras de arte expostas no bistrô

 

O casal em sua mesa preferida no restaurante que fica no 'quintal' de casa