A juíza Sandra Silvestre, de Rondônia, ajudou a reestruturar o Poder Judiciário e a abrir portas para outros magistrados brasileiros no país asiático
Invadido pela Indonésia em 1975, o Timor-Leste, um país do Sudeste asiático, só se tornou independente com o referendo popular supervisionado pela ONU, em 30 de agosto de 1999. Na ocasião, 78,35% dos timorenses votaram pela independência. O resultado causou confrontos violentos após retaliação de guerrilheiros que apoiavam a manutenção do controle indonésio, ocasionando a morte de mais de mil pessoas. Toda a infraestrutura do país de 1,2 milhão de habitantes foi destruída. Só em maio de 2002 que Timor-Leste se tornou um Estado soberano.
Em setembro de 2004, a juíza do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) Sandra Silvestre foi selecionada para atuar na ex-colônia portuguesa como juíza internacional da ONU. Auxiliou na reconstrução do Poder Judiciário daquele país, permanecendo até 2006, após o conflito que gerou uma guerra civil com a queda do primeiro ministro Mari Alkatiri. Natural de Lavras (MG), foi a única brasileira de um grupo de quatro magistrados de língua portuguesa que participou deste projeto da missão das Nações Unidas no Timor.
Durante dois anos, a magistrada, hoje com 46, formou juízes, promotores e defensores, destacando os princípios democráticos e o tratamento humanitário e de direitos humanos. Atuou e teve seu trabalho reconhecido nos processos cíveis e criminais na capital Dili e nos distritos de Suai e Oecusse.
Nesta entrevista, Sandra relata como a situação do Judiciário local era precária. Ela conta ter imaginado que iria atuar nos Tribunais mistos das Nações Unidas, com juízes internacionais e timorenses, para julgar os crimes graves contra a humanidade ocorridos após 1995. Mas a realidade foi outra. Confira o relato, as dificuldades enfrentadas e as ações desenvolvidas pela magistrada que abriu portas para outros juízes brasileiros.
O que a senhora encontrou quando chegou ao Timor-Leste?
Inicialmente, ao ir para o Timor, imaginei que atuaria nos Tribunais mistos das Nações Unidas com juízes internacionais e timorenses, para julgar os crimes graves contra a humanidade ocorridos após 1995, e onde já tinham atuado os juízes brasileiros Dora Martins e Marcelo Dovani. No entanto, ao chegar, tomei conhecimento de que o projeto, na verdade, era para que os juízes de língua portuguesa – dois portugueses, um africano e eu – substituíssem os juízes timorenses que tinham sido considerados inaptos. Eles foram afastados das suas funções e retornaram à Escola de Formação Judicial.
Qual era o cenário?
O cenário era de um país pós-conflito, onde as instituições estavam sendo construídas. O Judiciário era incipiente, tanto física como materialmente. Um enorme acúmulo de processos de réus presos há anos sem sequer ter audiência preliminar. As condições do Tribunal de Dili eram precárias, sem móveis, água ou banheiros em condição de uso.
Nos principais distritos onde trabalhou, as condições eram ainda piores?
Eram. Suai tinha uma boa estrutura física, pois foi reformado com a ajuda dos Estados Unidos, mas sem funcionários e, por isso, sem condições de funcionamento regular. Em Oecusse, tinha o prédio, mas não havia sequer mesas e cadeiras. Trabalhava uma semana por mês em cada distrito, e permanecia lá, fazendo os julgamentos de forma concentrada. Havia dias em que chegava ao Tribunal de Oecusse, por exemplo, e tinha mais de cem pessoas à minha espera. Pessoas que se deslocavam durante toda a noite, a pé, descendo as montanhas para ir ao Tribunal, pois, muitas vezes, vinham todos os parentes ou toda a aldeia interessada no julgamento do caso.
Por causa da falta de recursos, a senhora chegou a arcar com as despesas?
Como no tribunal não tinha nem água, eu sempre arcava com as despesas para comprar água e comida para os que permaneciam durante todo o dia. Além disso, as dificuldades de estrutura exigiam que, nesses distritos, eu financiasse do meu próprio bolso as despesas de combustível para a polícia localizar réus, vítimas e testemunhas.
Existia uma Justiça tradicional feita pelos velhos das aldeias?
Sim, a Justiça tradicional feita pelos “katuas”, que eram os velhos das aldeias, sendo que, nos distritos, as comunidades tinham mais confiança e respeito por esta Justiça do que pela Justiça formal dos tribunais, inclusive em questões criminais. Tive que aprender a incorporar algumas dessas decisões, como as indenizações às vítimas de violência sexual, como parte das minhas próprias decisões, valorizando assim os costumes locais e fazendo com que a minha presença não fosse tão invasiva à comunidade e minhas decisões mais respeitadas.
Como era o sistema de Justiça do país? Ainda continua o mesmo?
Durante a crise de 2006, deliberou-se dar posse a juízes, promotores e defensores que voltaram a trabalhar em conjunto com juízes internacionais. Foi uma experiência incrível, inclusive a composição de tribunais mistos, porque, no sistema timorense, diferentemente do nosso, para crimes com penas maiores que 5 anos, o julgamento é feito por um colegiado de três juízes. Trabalhar em conjunto com os timorenses, além da melhora na tradução, também ajudava a compreender questões culturais. Atualmente, existem juízes internacionais em Timor, mas, com a atual crise entre o primeiro ministro e o Judiciário, que resultou na renúncia de Xanana Gusmão, sete juízes portugueses foram expulsos pelo parlamento timorense.
O Timor-Leste é um país livre?
Liberdade e democracia são construções que requerem tempo e esforço constantes de todo um povo. É um objetivo a ser perseguido e acredito que o povo timorense busca isso, com todas suas dificuldades e deficiências, assim como nós brasileiros.
A democracia e a Justiça são deficitárias?
O país esteve sob dominação até 1999. Quando a Indonésia saiu, incendiou praticamente todos os prédios públicos e tinha dizimado quase um terço da população. Reconstruir esse país e as instituições não é uma ação a curto ou médio prazo.
Houve resistência por parte do povo e dos magistrados locais quando vocês chegaram lá?
No começo, em razão da substituição dos juízes locais pelos internacionais, não fui bem-aceita pelos juízes locais, nem pela comunidade em geral. Nunca me senti tão rejeitada e odiada, e pessoalmente acreditava que eles tinham razão, que era mesmo temerário dar jurisdição a juízes de outros países, retirando, de uma só vez, todos os juízes timorenses. Com o tempo e o resultado do convívio e do trabalho, no entanto, isso foi mudando e fui conquistando a confiança e amizade dos timorenses, inclusive dos juízes, que se transformaram em grandes amigos. Passaram a me chamar de “mana”, tratamento dado somente entre eles e para alguns até “mana boot”, uma espécie de irmã mais velha. Fui ainda convidada para batizar o filho de uma colega juíza timorense.
Quais foram as dificuldades enfrentadas?
Embora o idioma oficial seja português e tetum, quase ninguém falava português. A existência de 32 dialetos era um agravante. Nos distritos, os julgamentos exigiam a presença de dois tradutores (de português para tetum e de tetum para o dialeto local), sendo que os dialetos são normalmente linguagens orais, sem sequer ter registros escritos. Isso dificultava ainda mais a minha atuação, os julgamentos, a publicação e a compreensão das decisões. Lá, aprendi a ser concisa e muito objetiva nas sentenças, já que precisava traduzir para um dialeto oral.
Por que a senhora foi enviada para acompanhar o processo eleitoral do país?
O processo eleitoral em 2007 deu-se após o conflito que gerou uma guerra civil com a queda do primeiro-ministro Mari Alkatiri. Foram conflitos que começaram com a dissidência dentro do Exército de um grupo de militares que se uniu à Polícia Nacional do Timor-Leste e passou a se atacar mutuamente. A crise tomou grandes proporções porque dividiu a população entre Lorosae e Loromono (vinculados aos locais de origem dos timorenses e/ou tribos originárias). Eles passaram a se agredir e incendiar as casas uns dos outros, tornando Dili, a capital, um grande teatro de guerra. Como estive durante toda a crise, com expresso pedido das Nações Unidas por minha permanência, o governo brasileiro fez o convite para representar o Brasil durante as eleições.
E como ficou a segurança de quem estava trabalhando?
Naquele momento, foram retirados todos os funcionários das Nações Unidas, por questões de segurança, e somente a juíza Dora Martins, promotores portugueses e eu permanecemos no país atuando nas inúmeras prisões ilegais que estavam ocorrendo.
A senhora teve a oportunidade de participar de algum fato histórico no Timor?
As eleições de 2007 foram um fato histórico, como foi também a crise de 2006, sendo que desta, em especial, participei ativamente, tanto atuando nos processos das prisões que ocorriam, como assessorando os timorenses, inclusive o atual Presidente da República, Matan Ruak, à época general-chefe das Forças Armadas, aconselhando-o sobre questões de direitos humanos e do Tribunal Penal Internacional.
Qual foi o momento mais difícil da sua atuação?
Foi difícil chegar a um novo país e substituir os juízes nacionais contra a vontade de todos e a minha própria convicção do que era certo e legítimo ali, sendo odiada e rejeitada por todos. A crise de 2006 foi um momento triste e tudo o que tínhamos construído no primeiro ano caiu por terra. Pessoas perderam suas casas, inclusive juízes, promotores e defensores passaram a viver em campos de refugiados, em meio a tanta violência e incompreensão.
O que mais a impressionou nesse período que trabalhou no Timor?
A vontade férrea dos timorenses e a capacidade deles de superar obstáculos e renascer das cinzas. A alegria de viver dos timorenses e a confiança no futuro. Viver e trabalhar em Timor me transformou profundamente como juíza, mas principalmente como ser humano. Foi um divisor de águas, retornei da missão uma juíza mais preocupada com questões humanitárias e muito mais comprometida com as causas sociais, entendendo ser essa função inerente à condição do juiz na sociedade moderna.
O que aconteceu no Timor que é muito diferente do Brasil?
As condições de vida e trabalho em Timor eram muito precárias, em especial, nos distritos onde trabalhei. Muitas das dificuldades eram parecidas com as que encontrava aqui, em Rondônia, quando viajava nas Justiças Rápidas para locais distantes e população desassistida, sem condição estrutural de trabalho. Isso me preparou para as dificuldades de Timor.
Como foi o assalto que a senhora sofreu?
O assalto ocorreu quando eu não estava mais na missão em Timor. Já tinha retornado ao Brasil havia seis meses e voltei como observadora eleitoral numa missão de uma semana. Aconteceu no mesmo dia em que cheguei, quando fui buscar suprimentos para a casa onde fiquei alojada. O assalto ocorreu na Avenida Litorânea, em frente à embaixada americana, um local antes totalmente seguro. O assaltante era jovem, não reagi, foram sete facadas: a primeira acertou meu punho esquerdo e foi tão intensa que cortou todos os tendões e nervos da mão e perdi os movimentos. As outras foram pelo meu corpo, mas felizmente somente acertaram meus braços.
A senhora acha que esse incidente foi, de certa forma, alguma ameaça ao seu trabalho à época?
Não teve qualquer vínculo com meu trabalho e nem foi ameaça. As condições de segurança durante a crise eram muito mais precárias e nunca me senti insegura ou ameaçada. Mesmo sendo esfaqueada na véspera, trabalhei normalmente durante as eleições e o incidente na verdade, embora tenha sido só um assalto, assumiu grandes proporções. Foi emocionante o apoio e carinho de todas as pessoas em razão do ocorrido.
O seu trabalho abriu portas para outros juízes brasileiros?
Ajudei a firmar o convênio bilateral que levou outros juízes, promotores e defensores, e que ainda está em vigor. Além disso, possibilitei a ida de um ex-aluno de Rondônia que está lá até hoje, trabalhando há 10 anos em Timor.
Qual é o balanço que a senhora faz das suas atividades desenvolvidas no Timor?
Tive a participação na reconstrução do Judiciário daquele país, num momento tão importante e decisivo.
Fonte: AMB