Juiz Fernando Humberto dos Santos
A pretexto de um programa de direitos humanos, o governo Lula decretou um plano legislativo que aborda temas os mais diversos, como a revisão da anistia, taxação de grandes fortunas, censura de meios de comunicação, novas regras de planos de saúde, legalização do aborto e casamento homossexual, controle de pesquisas, bem como novas leis civis e processuais para afastar dos juízes o poder de coibir invasão de terras.
A antiga luta por terras para trabalhar se transformou em pura ação ideológica. A melhor qualidade genética dos rebanhos, as perspectivas do mercado de energia verde, o avanço dos negócios internacionais, o aumento da produtividade agrícola e a precocidade das florestas plantadas são, entre outros sucessos da atividade rural, dados que fizeram com que a pregação pela reforma agrária mudasse de estratégia. As invasões assumem exclusivamente o papel de “ação social”. Não se fala mais em aumento da produção.
Nesse contexto, o MST e outros buscam apoio de intelectuais saudosos da velha esquerda romântica e de desavisados acadêmicos que pretendem influenciar legisladores. Fazem o jogo político dos socialistas utópicos. Desenvolveram esses sonhadores um projeto de lei (incluído no Plano Direitos Humanos) que pretende alterar a lei civil possessória, estipulando mudanças substanciais. É o PL 490/95, do deputado Domingos Dutra (PT), ainda em tramitação:
“Art. 1° – O artigo 927 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, passa a vigorar acrescido de parágrafo único, com a seguinte redação:
“Parágrafo único. Nas hipóteses das ações que envolvam conflitos coletivos pela posse da terra rural, assim como conflitos pela posse do solo urbano, de conformidade com o artigo 82, inciso III, deste código, deverá o autor provar o cumprimento da função social do imóvel.”
O acréscimo desse parágrafo fará com que seja ampliada a incumbência (requisito para pedir) de quem tem suas terras invadidas. Sem comprovar o exercício da função social, o que exige perícia técnica, não se permitirá ao juiz a concessão da liminar.
Pretende ainda: Art. 2º – O parágrafo único do artigo 928 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, é substituído pelos seguintes parágrafos:
§ 1º Contra as pessoas jurídicas de direito publico não será deferida a manutenção ou reintegração liminar sem pr[evia audiência dos respectivos representantes judiciais.
§ 2º Em se tratando de ação que envolva conflito coletivo pela posse da terra rural, ou nos casos que envolva conflito pela posse do solo urbano, de conformidade com o artigo 82, inciso III, deste código, a concessão de liminar, nas ações possessórias, será precedida da manifestação do Ministério Publico (MP) e, no caso de conflito coletivo pela posse da terra rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)e do órgão estadual de terras ou repartições administrativas estaduais correlatas.
§ 3º Na hipótese de conflito coletivo pela posse da terra rural, previamente à concessão de liminar será realizada inspeção judicial, conforme previsto no artigo 440 e seguintes deste Código, na qual o juiz far-se-á acompanhar de técnicos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, incumbidos de coletar os dados necessários à avaliação pelo Instituto do cumprimento da função social da propriedade.
A liminar sujeitar-se-á a consulta ao MP. Embora não vinculante, a obrigação desse parecer é protelatória, pois o MP tem prerrogativa de intimação pessoal e prazo para manifestação em cinco dias. Percebe-se a pretensão de retardamento. Tanto o Incra quanto outros órgãos deverão se manifestar em prazo duplo para cada um deles. O terceiro parágrafo condicionará ainda o processo, a visita ao local da invasão e inspeção judicial, assistida por técnicos (do Incra) que dirão se a propriedade atende os índices de exploração estipulados. Mais uma vez, o juiz depende de datas e de intimação de terceiros. Isso tudo pode levar meses.
Em suma, as mudanças projetadas limitam a liberdade de atuação do juiz, retardando o curso do processo. Tal fato vai de encontro ao princípio da celeridade processual. Ora, desde a primeira Constituição Republicana (CR, em 1891), ao Poder Judiciário compete o monopólio de jurisdição, substituída a vetusta autotutela e afastada a discricionariedade do poder político. É inafastável a jurisdição, assim outorgada nos termos do artigo 5º, XXXV, da C.R. : – “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
No caso desse projeto há violenta agressão a princípios universais de direito. Todos têm o direito de acesso à Justiça para postular a tutela preventiva ou reparatória de lesão jurídica. Ter direito de ação significa aptidão para buscar em juízo a reparação de seus direitos. Todo expediente destinado a impedir ou dificultar sobremodo a ação ou a defesa no processo civil constitui ofensa ao princípio constitucional do direito de ação.
Não há permissivo jurídico para a criação de quaisquer instâncias administrativas a serem vencidas antes que o cidadão recorra ao Judiciário. Abandonar esses sedimentados princípios é o mesmo que deixar ao sabor das contingências político-administrativas, sabidamente voláteis, a segurança jurídica necessária ao enfrentamento do “caos social”.
Sobre o autor: Fernando Humberto dos Santos é juiz de direito em Belo Horizonte, professor da PUC Minas e mestre em administração pública pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Este artigo foi publicado no caderno Direito e Justiça, do Estado de Minas, edição desta segunda-feira, 29 de março de 2010.