O caminho profissional poderia ter sido outro. Mas ele preferiu trocar as quadras pelos campos do direito. Bicampeão carioca juvenil de vôlei pelo Clube Israelita Brasileiro (CIB), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso disputou títulos e conviveu com atletas que mais tarde fariam parte da chamada geração de prata do voleibol brasileiro - a primeira a conquistar uma medalha olímpica no esporte na década de 80. "Sou da mesma geração do Bernardinho, jogamos juntos. E da geração do Bernard, do saque Jornada nas Estrelas."
Foto: Carlos Humberto/SCO/STF
Aos 57 anos, um casal de filhos do segundo casamento com a desenhista de moda Tereza Cristina, em uma união de 21 anos, Barroso já não pratica o esporte preferido da adolescência. Mas ainda se lembra com entusiasmo da época vivida no Rio e da participação no movimento estudantil na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), onde ingressou em 1976 para cursar direito.
O prestigiado professor de direito constitucional, conhecido por advogar em casos históricos perante as cortes superiores do país, nomeado em 2013 após figurar por dez anos nas listas de nomes cotados para o Supremo, conversou por pouco mais de duas horas neste "À Mesa com o Valor", em uma segunda-feira em Brasília. O lugar escolhido por ele é o tradicional restaurante Piantella, conhecido pela presença constante de políticos, empresários e lobistas. A casa é administrada por Valéria Vieira, de quem o ministro e sua mulher são amigos.
Em uma mesa quase na entrada do local está Barroso, que, acompanhado da chefe de gabinete Renata Saraiva, conversa animado com o fotógrafo Ruy Baron. "Olha, veja se me deixa bonito nessas fotos, hein? Isso é o mais importante", diz em tom de brincadeira. E em menos de 15 minutos já é possível conhecer suas preferências literárias e musicais e saber que como hobby teve um blog sobre músicas e poesias até entrar no STF.
A página, porém, que naquele momento era um passatempo, mudou de feições e hoje contém apenas seus votos, palestras e discursos. A alteração teve como causa uma nota veiculada na imprensa sobre a composição "Um só Coração", de autoria do amigo Edson Abdala, feita em homenagem ao próprio Barroso. A música diz: "Carioca da gema, habitué de Ipanema, Barroso é genial. Na Uerj ele manda, no Supremo é o bacana, dispensa credencial".
"Eu ainda nem tinha sido nomeado e um importante jornalista publicou algo mais ou menos assim em seu veículo: agora que o doutorzão chegou onde queria, ele podia tirar de seu site as músicas de autoelogio."
Foi a partir desse episódio que o veterano de causas perante o Supremo percebeu a mudança de seu "código de conduta" com a sociedade. "Eu não era mais um advogado de causas populares, estava do outro lado do balcão como símbolo de poder, que é olhado de uma forma severa, crítica e às vezes com muita má vontade."
Essa teria sido a primeira experiência dele como ministro, antes mesmo da posse. A segunda, relatada ao fim do almoço, foi o choque de assumir um gabinete com nove mil processos. "A quantidade era muito maior do que tinha visto em mais de 30 anos de advocacia." Como nunca havia sido juiz, Barroso foi obrigado a aprender a lidar com os procedimentos do colegiado. A pauta de julgamentos, por exemplo, sai às quarta-feiras à noite com os numerosos processos que serão julgados na semana seguinte. "Coisas que exigiam reflexão e estudo acabaram sendo feitas de improviso naquele momento."
Por isso, quando Edson Fachin foi nomeado para o Supremo neste ano, Barroso teve a iniciativa de procurar o amigo e relatar como as coisas funcionavam no tribunal. "Falei de todas as aflições que havia passado, para que ele estivesse preparado para a primeira sessão."
Hoje já acostumado à rotina, Barroso ganhou fama de progressista na Corte. Era o novato que chegava cheio de ideias. Defensor de uma linguagem simples, que possa atingir todos, de votos enxutos, o ministro tem proposto alterações nos procedimentos internos da Corte com o objetivo de reduzir processos, cujo estoque é de 51.742 para 11 ministros. No Judiciário há cem milhões em trâmite.
Ao contrário do que se imagina, não há no Supremo um ambiente tenso, de pessoas empenhadas em derrubar as outras, garante. "Eu me empenho em desfazer crítica de que lá é um ofidiário." As relações são cordiais, diz ele, e no geral as pessoas se gostam. "Pelo menos eu gosto", comenta, rindo.
O maître se aproxima e oferece o menu do dia: picadinho de filé, linguado e confit de pato. Como a oferta não desperta interesse, outras opções são procuradas no cardápio. Barroso pergunta pela cavaquinha grelhada, acompanhada de risoto de ervas. Já habituado ao menu, sugere alguns pratos. "Aqui tinha um filé com cobertura de caviar que eu amava, mas deixou de ter. A cavaquinha é muito especial e o risoto de frutos do mar, muito bom." Fechamos os pedidos com duas cavaquinhas, truta com amêndoas e salmão com ervas.
Barroso retorna a 2003 e relembra a primeira vez em que surgiu entre os favoritos para o Supremo. "Meu nome aparecia, mas eu não tinha nenhuma chance."
Cinco anos se passaram desde aquele momento e com uma nova vaga no tribunal, em 2009, Barroso recebeu a ligação de um representante do Ministério da Justiça que perguntava se ele aceitaria o convite, caso o presidente da República o escolhesse. A conversa, porém, seguiu um rumo inesperado.
Barroso perguntou ao interlocutor do Planalto o motivo do questionamento. E a resposta, da qual diz nunca ter se esquecido, foi a seguinte: "O advogado-geral da União tem o apoio próximo do presidente da República, portanto, é o candidato natural. O ministro do STJ fulano de tal tem apoio do ministro da Defesa, Nelson Jobim. O outro ministro do STJ, fulano de tal, tem o apoio do presidente José Sarney. E o advogado fulano de tal tem o apoio do ministro da Justiça, Tarso Genro." "Aí, eu perguntei: e quem me apoia? E ele respondeu: 'Ninguém'." (Risos.)
Segundo esse interlocutor, seu nome não sofria resistências e, se houvesse um impasse, poderia ser uma alternativa. Mas não foi daquela vez. Barroso afirma ter seguido a vida sem fazer campanha ou articulações políticas. Passou 2011 nos Estados Unidos, como pesquisador visitante em Harvard. Estava com as malas prontas para se mudar, em setembro de 2013, para a Alemanha, pois havia sido contratado como "fellow" pelo Instituto de Estudos Avançados de Berlim, com outros professores estrangeiros.
No entanto, uma ligação do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo no fim de maio daquele ano levou a mudanças de planos. Cardozo dizia que a presidente gostaria de conhecê-lo. A cadeira do ministro Carlos Ayres Brito no STF estava vaga desde novembro do ano anterior. "E era o auge do mensalão", lembra-se. Visita marcada, Barroso foi ao encontro da presidente Dilma Rousseff.
- Quanto tempo durou a conversa?
- Fiquei monitorando. Cheguei lá e pensei: ela vai conversar comigo uns 15 minutos. Ela continuou por mais meia hora. Deu 45 minutos, deu uma hora. Aí eu fiquei até meio animado, né? (Risos.)
A reunião foi interrompida apenas com a chegada do chefe de gabinete, que a chamou para um outro compromisso. "A presidente encerrou a audiência, levou-me até a porta e disse: 'Vou nomeá-lo na semana que vem'. Eu levei um susto."
Barroso lembra de ter perguntado a Dilma o que deveria dizer se a imprensa ligasse e explicou que, por ser kantiano, não gostaria de mentir. A resposta foi simples: "Diga que conversamos sobre questões jurídicas". Segundo ele, os temas foram jurídicos e falaram sobre separação de poderes, royalties do petróleo, federação etc.
Sem apoio e ligações políticas, Barroso avalia que nas circunstâncias daquele momento seria interessante a escolha de uma pessoa sem vínculos políticos. O que, como afirma, era o seu caso. No julgamento da Ação Penal nº 470 (mensalão), Barroso foi o relator das execuções penais. "Dilma me nomeou na semana seguinte. Não faço comentários sobre política, mas a minha avaliação da presidente é de uma pessoa séria, bem-intencionada, preocupada em fazer o melhor. E, no Supremo, acho que foi feliz em todas as nomeações. Tirando a minha, que não vou comentar."
Barroso foi nomeado em um momento até então inédito para a Corte Suprema do país. A população passou a conhecer e acompanhar as sessões ao vivo do julgamento do mensalão. O tribunal, que dá a última palavra sobre questões constitucionais no país, foi o responsável pelo desfecho e as condenações dos envolvidos no escândalo. O mesmo ocorrerá no caso da Operação Lava-Jato em relação a políticos que tenham foro privilegiado. A Corte já recebeu 25 inquéritos de investigados no caso.
Os votos mais difíceis no STF e os pareceres e as defesas mais complexas já apresentados às cortes superiores, quando advogava, são sempre escritos à mão, mesmo na era tecnológica. "O digitar me rouba a concentração. E olha que digito com os dez dedos e sem olhar. Se não tivesse sido advogado, poderia ser datilógrafo tranquilamente." O processo criativo, a depender do dia, pode ser feito com canetas-tinteiro, objetos que coleciona.
O ritual tem mais um detalhe. Além de escrever, passar a limpo e digitar, ele é sempre executado tendo composições clássicas de Mozart, Beethoven, Chopin e Bach como fundo musical. "Tenho um Bose Noise Cancelling [marca e tipo de fones de ouvido], que quando uso saio do mundo, não ouço apenas a música e assim me concentro".
Rosto conhecido da TV Justiça (que transmite ao vivo as sessões do plenário do STF), e, como mesmo diz, veterano nessas transmissões desde quando advogava, Barroso representou, em um curto período de tempo, ações que marcaram a história recente do país. Foi ele, por exemplo, quem brigou no Supremo contra o nepotismo no Judiciário, representando a Associação dos Magistrados do Brasil (AMB). Posteriormente, o Supremo editou a Súmula Vinculante nº 13, que veda a contratação de parentes no Executivo, Judiciário e Legislativo.
Mas seu caso mais famoso, provavelmente, foi a defesa da união estável entre casais do mesmo sexo, autorizada pela Corte em 2011. "Para falar a verdade, eu defendia a possibilidade desde antes, mas escrevi e publiquei artigo sobre o tema pela primeira vez apenas em 2007." A defesa foi polêmica e não faltou quem insinuasse que ele atuava em causa própria. "Em um país ainda bastante machista e preconceituoso, não faltou quem dissesse isso."
O Supremo analisou duas ações sobre o tema, uma da Procuradoria-Geral da República (ADI 4277) e outra do Estado do Rio de Janeiro (ADPF 132). Como procurador do Estado, Barroso representou o Rio.
"As pessoas têm o direito de colocar seu afeto onde mora seu desejo... Impedir isso é um absurdo. O Estado não tem esse direito... e impedir o casamento de pessoas do mesmo sexo seria uma forma de dizer que o amor delas valeria menos do que os outros."
Como o debate começou bem antes de 2011, o ministro avalia que, quando a questão chegou ao STF, a ideia sobre a união homoafetiva já havia se tornado dominante no espaço público. "Ainda há muita intolerância, mas no campo das ideias esse já foi um espaço conquistado."
O mesmo ocorreu em outro processo, considerado por ele o mais polêmico de sua carreira, quando defendeu a interrupção da gestação de fetos anencéfalos, autorizada pelo STF em abril 2012. Ele representava a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) na ação. Já na experiência como defensor, a causa que mais trouxe aborrecimentos foi a defesa do italiano Cesare Battisti, acolhido como refugiado político no Brasil em 2009. Sua extradição era solicitada ao governo brasileiro pela Itália, pois ele havia sido condenado no país por homicídio. O episódio provocou intenso debate internacional. "Foi difícil porque tinha a imprensa contra e, sendo assim, com frequência a opinião pública também fica."
Além disso, Barroso afirma que, na época, "ministros poderosos" no STF compraram a briga da Itália de que ele seria terrorista. "O Cesare era uma figura menor, de um movimento político menor. Nada explicava aquela proeminência. Ele foi vítima de uma campanha política italiana que teve eco no Brasil. Por isso, uma questão fácil sob o enfoque jurídico tornou-se uma batalha repleta de paixões. Antes de aceitar a causa, eu estudei o processo, li os 18 volumes [da causa italiana] e me convenci de que não tinha sido ele, que foi o bode expiatório porque tinha fugido."
Battisti foi preso no Brasil e teve a extradição autorizada em 2009 pelo Supremo. O então presidente Luiz Inácio Lula da Silva não autorizou o ato. Em julgamento posterior, o STF determinou que a decisão do Executivo deveria prevalecer e concedeu a liberdade ao italiano. Barroso não cobrou honorários pelo trabalho. "O Cesare se casou [em junho], mandei um telegrama para ele", comenta.
Os pratos são servidos, mas não interrompem a conversa. Barroso conta que ele e a família vivem em Brasília desde 2006. Deixaram o Rio, onde morava desde a infância - ele é natural de Vassouras -, em busca de uma cidade mais tranquila para criar os filhos. Luna, a primogênita de 19 anos, porém, voltou para o Rio, onde estuda direito. O pai, orgulhoso da opção da filha, brinca que ela mal consegue disfarçar a felicidade de estar longe da família.
O ministro ainda dá aulas na graduação e na pós. Uma vez por semana, vai à Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Uerj), a mesma onde ocupou os bancos como estudante na década de 70 e onde hoje é titular de direito constitucional. "Estou ministro, mas sou professor e é nisso que me realizo. Gosto daquela meninada, participo de tudo, já fui paraninfo, patrono, faço discurso, dou conselhos..."
Ensaio uma pergunta, mas Barroso pede para falar um pouco sobre a criminalização do aborto no Brasil. À vontade conversa sobre o que chama de suas convicções filosóficas e pessoais. Fala da responsabilidade do Estado em promover educação sexual e distribuir meios contraceptivos. Mas, dito isso, afirma que a criminalização do aborto é uma política equivocada e perversa por ferir a liberdade reprodutiva da mulher e a opção de ter filhos (até o estágio em que o feto não teria condições de sobreviver fora do útero).
"Só as mulheres engravidam. Obrigá-las a ter uma gravidez que não desejam cria uma desequiparação em relação à condição masculina. É essa liberdade de escolha que equipara as mulheres aos homens em seus direitos e obrigações", afirma. E observa que ser contra é razoável, mas criminalizá-lo é uma má política pública. Acrescenta que o procedimento ocorre independentemente de ser legal ou não. "Todas as estatísticas confirmam que o número é relativamente idêntico proporcionalmente nos países que criminalizam ou não. O que varia é o número de abortos clandestinos, lesivos ou letais à saúde da mulher."
O garçom se aproxima com o cardápio de sobremesas. "Você tem que provar uma sobremesa que tem aqui. Engorda um pouquinho, mas é muito boa." A sugestão é goiabada morna com sorvete de queijo. "É algo que vai mudar a sua vida!", brinca. O desafio é aceito, desde que duas porções sejam dividas por quatro para reduzir as calorias.
Enquanto não chega, volta a falar da vivência como ministro, da satisfação pessoal, da honra de servir o país e de poder retribuir a educação pública que teve durante a vida. Surpreendentemente, porém, conta de certa angústia que sente ao pensar se não faria mais diferença permanecendo onde estava. Antes de ser nomeado, Barroso trabalhava na elaboração de uma proposta de reforma política e um modelo de universidade para o país e também estudava a reestruturação dos presídios do Brasil. "No STF tenho muitas limitações sobre o que posso falar e fazer."
As sobremesas chegam e, curioso, o ministro quer saber se o doce realmente agradou. Os pratos vazios denunciam a resposta. Cafés e chá servidos. O telefone de Renata toca e do lado de lá avisam que a pessoa aguardada por Barroso já está no gabinete. O compromisso é às 15 horas. Bem-humorado, o ministro se despede. Antes, porém, pede que anote uma frase: "Já faz algum tempo que me libertei do ego e do seu pequeno cortejo de vaidades. Eu procuro viver para o bem...".
Fonte: Valor Online