A então estudante Solange de Borba Reimberg não sabia que aquela seria uma despedida. O ano era 1997, e um mês antes, aos 46 anos, o pai dela havia sido diagnosticado com uma grave doença. Os dois eram muito próximos e em uma conversa, a última que tiveram, João Dias Reimberg fez à filha dois pedidos: que cuidasse da família e que compreendesse e aceitasse o estágio de cada ser humano. No dia seguinte, ele faleceu, e aquelas palavras ditas pelo pai reverberaram dentro de Solange.
Sem que ele soubesse, naquele momento o pai repassou à filha, hoje juíza da Unidade Jurisdicional do Juizado Especial da Comarca de Frutal, uma das mais importantes lições: “Ali, despertei para a compaixão, o perdão, para o verdadeiro significado de família e para o quanto é importante valorizar as minhas raízes. Depois daquele dia, nunca mais deixei de verbalizar ‘eu te amo’, ‘muito obrigada por fazer parte da minha vida’. Percebi o quanto a vida é efêmera e resolvi praticar a presença enquanto estou ao lado da minha família, pois não sei quanto tempo levará para o nosso próximo encontro. No caso do meu pai, já se passaram 20 anos da nossa despedida.”, declara.
João Reimberg iniciou a vida trabalhando como lavrador, ofício que herdou dos avós de Solange. “Meus antepassados são alemães e migraram para o Brasil em 1827, fixando-se na zonal rural de São Paulo, na Colônia Alemã. Era uma família simples”, conta. O pai teve pouco estudo e cultivava um sonho, que, com perseverança, acabou alcançando: ser motorista profissional. A tenacidade dele para perseguir essa realização foi outro grande legado dele para a filha. “Tenho guardado comigo os vários cursos que ele fez; era um homem determinado e comprometido com o trabalho, que tinha vários talentos. Tocava qualquer instrumento”, lembra.
Quando o pai faleceu, Solange tinha apenas 19 anos, mas hoje ela reconhece que alguns dos mais caros princípios que ela carrega, e sem os quais não conseguiria cumprir a missão como magistrada – “a serenidade, a coragem, a ética profissional, o comprometimento, o amor pelo trabalho e a arte de ajudar ao próximo”, enumera – foram transmitidos pelo pai. “E pela minha mãe; sou uma somatória dos dois”, afirma. O sentimento dela, do qual muitas pessoas compartilham em relação aos pais, é o de que o grande legado que João Reimberg lhe deixou, não apenas por meio de palavras, mas também pelo exemplo, em atitudes diárias ou em momentos emblemáticos, foram os ensinamentos, que ficaram para sempre.
Simplicidade e honestidade
Convidado a contar em que momento recebeu a mais marcante lição de vida do pai, o escrivão Jorge Soares da Silva, da Vara do Tribunal de Júri da Comarca de Contagem, afirma se sentir inundado por inúmeras lembranças. “Gostaria de falar muitas coisas sobre ele, mas me emociono bastante”, confessa. Eurico Soares da Silva faleceu em 1997, em função de um aneurisma, em Teófilo Otoni, aos 57 anos de idade. “Foi uma pessoa simples, humilde, trabalhadora e muito família”, conta.
A força de vontade para trabalhar foi a maior lição que ele transmitiu ao escrivão. “Ele era incansável, pois além de funcionário da Câmara Municipal de Teófilo Otoni, onde exercia a função de contínuo, nas horas vagas, visando complementar seu salário, trabalhava na limpeza dos cartórios do extrajudicial que funcionavam no mesmo prédio da Câmara. Era também eletricista, consertava diversos aparelhos, tinha banca no mercado central e ainda vendia frutas na feira aos sábados”, recorda-se.
Ver aquele homem na labuta diária, para oferecer o melhor para a família, sem se deixar abater pelas pedras encontradas no caminho, deixou marcas indeléveis no filho Jorge. “Ele sempre pregou que o cidadão deve viver daquilo que produz com o próprio suor”, diz. Mas ele queria um futuro melhor para o filho, por isso sempre aconselhava Jorge a se empenhar nos estudos, “senão nunca seria alguém na vida”. “A simplicidade, aliada à honestidade, são os maiores legados que ele me deixou. Até hoje eu me espelho em seus ensinamentos”, declara.
Norte e herói
Filha do primeiro promotor de justiça de Coronel Fabriciano, a desembargador Márcia Milanez afirma que o pai, Orlando, foi para ela, no dia a dia, e sempre, um grande exemplo. “Ele foi e segue sendo meu norte e meu herói. Dele recebi o maior legado. Homem sério e bom, ele me ensinou a responsabilidade com os trabalhos, o compromisso com a verdade, a lealdade e gratidão com amigos e, principalmente, o amor ao próximo”, resume a magistrada.
A influência foi tão marcante que a desembargadora iniciou a carreira seguindo os passos do genitor, formando-se em direito e tornando-se promotora de justiça, ofício que ocupou por 17 anos. O pai, lembra, foi um promotor com forte senso de justiça social. Um homem que, depois de aposentado, passou a advogar, gratuitamente, para inúmeras pessoas carentes. “Quando ele faleceu, em 1985, aos 72 anos, vieram ônibus cheios de Coronel Fabriciano para o enterro dele, aqui em Belo Horizonte. Ele era muito querido, o corpo foi velado no fórum daquela cidade”, conta. Tempos depois, em homenagem ao que ele representou para a Justiça local, o fórum de Coronel Fabriciano foi batizado com o nome dele.
Márcia Milanez tornou-se desembargadora em 2001, portanto, o pai não a viu alcançar o cargo que ele tanto respeitava. “Ele teria tido muito orgulho, pois nutria um respeito profundo pela magistratura. Quando éramos crianças, íamos todos os anos para a praia. Meu pai nos fazia incluir na mala uma roupa social: é que sempre íamos visitar um desembargador no Espírito Santo, então tínhamos de vestir algo especial, pois para ele o magistrado era alguém muito importante”, ressalta.
Do pai, a desembargadora herdou ainda uma legião de amigos. “Hoje ainda muitos desembargadores me contam histórias compartilhadas com meu pai”, diz. Certa vez, já doente, em um leito de CTI, falando só pelo interfone, ao ver um amigo advogado, fez com que ele prometesse ajudar uma das enfermeiras a solucionar um sério problema na Justiça. “Nos seus olhos, pequenos, redondos e cheios de vida, a lágrima de satisfação mais uma vez; porque era uma constante em sua vida ajudar a todos”, escreveu o amigo sobre o episódio, em uma homenagem publicada em jornal, à época de sua morte.
Um gesto dele exerce um forte impacto na desembargadora: “Tenho comigo uma carta que ele escreveu para os meus avós paternos, pedindo permissão para se casar com minha mãe. Nela, meu pai afirmava que tinha feito a promessa de se casar com ela, e que por isso precisava cumpri-la. Veja então o valor que a palavra tinha para ele!”. A carta foi emoldurada, e hoje é algo que a desembargadora guarda como uma preciosa relíquia. Nela, está registrada não apenas a grafia de Orlando Milanez, cada uma das palavras cheias de respeito e reverência que ele dirigiu aos genitores, mas também um pouco do homem admirável que ele foi.
Paixão pelo direito
Das mais fortes lembranças de infância que o juiz Cássio Fontenelle possui, estão as idas ao Fórum Lafayette, na capital mineira, para onde se dirigia com frequência, acompanhando o pai advogado. “Ele tinha uma maleta no estilo 007, com um segredo para abrir; e meu sonho era descobrir esse segredo”, diverte-se. Pelos corredores do fórum, era permitido ao então menino que carregasse a maleta, missão que não o tornava um James Bond, mas que para ele era suficientemente importante, sobretudo porque demonstrava a confiança do pai nele.
“Eu nem alcançava os balcões das secretarias e, naquela época, sequer imaginava que um dia me tornaria juiz”, observa o hoje magistrado. Mas, reconhece Fontenelle, naquelas inúmeras visitas àquele espaço emblemático, arena onde o pai atuava, foi sendo forjada nele a paixão pelo Direito e o desejo de atuar no mundo jurídico. Hoje, um dos grandes orgulhos do advogado é o filho ter se tornado juiz. “Ele vibra com isso mais que a gente”, reconhece Fontenelle.
Sem saber que teria um filho magistrado, o Dr. Sílvio, além de uma sólida base de valores e do hábito da leitura, deu a Fontenelle uma significativa lição sobre o exercício da magistratura. “Dele, como advogado, eu sempre ouvi: ‘Bom juiz é aquele que lhe dá a chance de recorrer’. Com essa frase, ele quer dizer que o bom juiz é aquele que decide, ou seja, que não deixa o processo parado. Sendo a sentença desfavorável ou não a você, há a oportunidade de recorrer”, explica.
Dos entrevistados para esta matéria, o juiz, que atua na 27ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte, no mesmo Fórum Lafayette que marcou sua infância, pode se sentir um privilegiado: é o único que terá o patriarca ao lado, no próximo domingo. Pai e filho vivem, neste momento, a natural inversão de papéis que acontece em determinado momento da vida. Hoje, é o juiz quem precisa se preocupar com o pai, que está com 85 anos, retribuindo o companheirismo, a paciência, a segurança, os cuidados, os incentivos e o afeto que Sílvio Meyer Fontenelle sempre lhe proporcionou.
Fonte: Assessoria de Comunicação Institucional do TJMG