Ministro Carlos Velloso
Retira-se da presidência do Supremo Tribunal Federal, em razão do término de seu mandato, o ministro Gilmar Mendes. Cada ministro que preside a Corte deixa ali a sua marca. A presidência de Gilmar Mendes foi marcada, sobretudo, pela defesa intransigente do Poder Judiciário e por fazer deste, cada vez mais, combatente pelos direitos humanos, tornando realidade o princípio que, segundo a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, constitui o coração daqueles direitos, que é a dignidade da pessoa humana, fundamento da República e do Estado democrático de direito.
Intimorato, íntegro, bravo, Gilmar Mendes fez valer a autoridade do Supremo Tribunal toda vez que essa autoridade foi desafiada. A história vai fazer-lhe justiça. Forte na Constituição e na defesa das liberdades públicas, impôs um basta à escalada policialesca que tomava corpo com as prisões espetaculosas de cidadãos, inclusive advogados, diante dos holofotes das televisões, prisões que se faziam muita vez simplesmente para que os presos prestassem declarações à polícia. Advogados tiveram seus escritórios e seus arquivos abertos à fúria policialesca. As interceptações telefônicas, realizadas a rodo, tinham as conversações interceptadas postas na mídia, ao arrepio da lei, que isso tipifica como crime. Cidadãos pacíficos eram algemados diante das câmeras de televisão, num festival de desrespeito à dignidade da pessoa humana, dado que as algemas, que lembram o crime, desmoralizam e representam condenação antecipada. É como condenar para depois julgar. Algemas só devem ser utilizadas relativamente aos criminosos contumazes, aos indivíduos violentos e em caso de resistência e de fundado receio de fuga.
A isso tudo reagiu, corajosamente, Gilmar Mendes, brandindo a Constituição. No que concerne ao uso de algemas, editou o Supremo Tribunal a Súmula Vinculante nº 11. E o fez decidindo um habeas corpus que tinha por objeto o julgamento, pelo júri popular, de um operário, um pedreiro, algemado durante toda a sessão do júri.
A Nação vai ficar devendo ao presidente Gilmar Mendes o basta que impôs à escalada policialesca que vinha sendo encetada em detrimento do Estado democrático de direito e com desdém ao princípio da dignidade da pessoa humana que, vale repetir, é fundamento da República.
Dos melhores constitucionalistas brasileiros, mestre e doutor em direito pela Universidade de Münster, Alemanha, autor de consagradas obras de direito constitucional, Gilmar Mendes, um scholar, inovou, com seus votos, a jurisprudência do Supremo Tribunal, especialmente no que toca ao controle concentrado de constitucionalidade, que se realiza por meio da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Quanto a esta, o Supremo Tribunal Federal tem alargado, com sabedoria, o raio de sua atuação. A germanização que se verifica na jurisdição constitucional exercida pelo Supremo, contribuindo para fazer deste autêntico tribunal constitucional, deve-se muito aos votos do ministro Gilmar Mendes.
Hoje, o Supremo Tribunal Federal, democraticamente, fiel à sua tradição mais do que centenária, troca de comando. Assume o ministro Cezar Peluso, notável magistrado, que certamente deixará sua marca na presidência do Supremo Tribunal Federal. O ministro Gilmar Mendes, que passa ao ministro Cezar Peluso a chefia do Poder Judiciário nacional, e que não vai gozar nenhum otium cum dignitate – o ideal dos patrícios romanos retirados da vida pública — porque continuará trabalhando na Corte e pela Corte, poderá proclamar, diante do tribunal que presidiu com honra e brilho, missão cumprida.
* O ministro Carlos Velloso é aposentado, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, professor emérito da UnB e da PUC Minas, advogado.
O artigo MInistro Gilmar Mendes foi publicado no jornal Estado de Minas, editoria de Opinião, na edição desta sexta-feira, 23/04/2010.