Para Marco Aurélio, a demarcação contínua da reserva, como estabelecida, é resultado de um processo “cujos elementos coligidos se mostram viciados”. “Sou favorável à demarcação correta. E esta somente poder ser a resultante de um devido processo legal”, afirmou.
Segundo ele, é um “paradoxo” considerar-se, para efeito de demarcação, a posse indígena reconhecida e preservada até a data da promulgação da Constituição de 1988 e, ao mesmo tempo, concluir-se pela demarcação contínua.
“Difícil é conceber o chamado fato indígena, a existência de cerca de 19 mil índios em toda a extensão geográfica da área demarcada – uma área doze vezes maior que o município de São Paulo, em que vivem cerca de 11 milhões de habitantes. Para mim o enfoque até aqui prevalecente soa desproporcional a discrepar, a mais não poder, da razoabilidade”, avaliou.
Sobre a suposta ofensa a tratados de direito humanos, caso a reserva venha a ser demarcada em ilhas, o ministro alegou não existir “um modelo demarcatório claramente definido, contínuo ou em ilhas”.
Para o ministro, é “imprópria a prevalência, a ferro e fogo, da óptica do resgate de dívida histórica, simplesmente histórica – e romântica, portanto, considerado o fato de o Brasil, em algum momento, haver sido habitado exclusivamente por índios”.
Apartheid
O ministro também teceu considerações sobre as limitações à liberdade de ir e vir de brasileiros na área da reserva, situação que, para ele, consistiria em um “verdadeiro apartheid”.
Marco Aurélio questionou como, em pleno século XXI, é possível se cogitar em isolar a população indígena. “O retrocesso é flagrante, não se coadunando com os interesses maiores de uma nacionalidade integrada.”
O fato de nem todas as comunidades indígenas existentes na área da reserva terem sido ouvidas no processo administrativo da demarcação também foi alvo de críticas dele.
Segundo o ministro, a necessidade de consulta de todas essas comunidades é “incontroversa”. Ele ponderou que “o estágio de aculturamento talvez tenha avançado de tal maneira que não mais interessa o total isolamento do povo indígena, de forma a viabilizar a vida como em tempos ancestrais”.
Outros vícios apontados no procedimento administrativo realizado para definir a extensão das terras indígenas foram as dúvidas quanto às razões de o laudo antropológico ter sido assinado por apenas um integrante do grupo técnico interdisciplinar e se todos os integrantes do grupo realmente tiveram ciência de que o integravam.
Títulos de propriedade
O ministro também ponderou que dados econômicos demonstram a importância da área para a economia de Roraima e a relevância da presença dos fazendeiros na região.
Ainda de acordo com ele, o processo de demarcação não poderia simplesmente desconsiderar situações devidamente constituídas, como títulos de propriedade reconhecidos como de “bom valor pelo Estado”. Marco Aurélio citou julgamento do STF que reconheceu existirem na região fazendeiros com títulos de propriedade de terras cadastradas pelo Incra.
Ele alegou que o Brasil poderá até ser levado a responder perante entidades internacionais se deixar de reconhecer a legalidade de títulos de terras determinadas por meio de processo judicial transitado em julgado. “Cumpre asseverar ser direito humano a proteção da propriedade privada.”
Fronteira
Outra ilegalidade apontada pelo ministro no processo administrativo de demarcação da reserva foi o fato de o Conselho de Defesa Nacional não ter se manifestado. Ele argumentou que a área de fronteira tem uma “importância fundamental” para a defesa do território brasileiro e, por isso, a participação do Conselho seria “imprescindível” diante da possibilidade de ocorrerem instabilidades na área da reserva, que se localiza em uma tríplice fronteira com a Guiana e a Venezuela.
Os ministros que já votaram entenderam que a decisão de não ouvir o Conselho não prejudicou o processo que resultou na demarcação. O ministro Marco Aurélio alega que “se o texto constitucional exige tal providência, esta deve ser respeitada em todas as ocasiões”.
Segundo ele, “[não se pode permitir] mácula no julgamento do Supremo, criando uma nuvem cinzenta sobre a não-observância do devido processo legal”.
Soberania nacional
Ao longo de seu voto, o ministro Marco Aurélio relacionou citações de chefes de Estado internacional defendendo a internacionalização da Amazônia e defendeu que o “pano de fundo” envolvido na demarcação da Raposa Serra do Sol é a soberania nacional, “a ser defendida passo a passo por todos aqueles que se digam compromissados com o Brasil de amanhã”.
Ele apontou como “preocupante haver tantos olhos internacionais direcionados à Amazônia” e citou autoridades, como o ministro da Justiça, Tarso Genro, segundo o qual organizações não-governamentais estimulariam índios a lutar pela divisão do território nacional.
Conclusão do voto
O ministro Marco Aurélio concluiu seu voto-vista pela nulidade da demarcação, fixando os seguintes parâmetros para uma nova ação administrativa demarcatória da área indígena:
a) audição de todas as comunidades indígenas existentes na área a ser demarcada;
b) audição de posseiros e titulares de domínio consideradas as terras envolvidas;
c) levantamento antropológico e topográfico para definir a posse indígena, tendo-se como termo inicial a data da promulgação da Constituição Federal, dele participando todos os integrantes do grupo interdisciplinar, que deverão subscrever o laudo a ser confeccionado;
d) em consequência da premissa constitucional de se levar em conta a posse indígena, a demarcação deverá se fazer sob tal ângulo, afastada a abrangência que resultou da primeira, ante a indefinição das áreas, ou seja, a forma contínua adotada, com participação do Estado de Roraima bem como dos municípios de Uiramutã, Pacaraima e Normandia no processo demarcatório;
e) audição do Conselho de Defesa Nacional quanto às áreas de fronteira.
Fonte: STF