Eu, na qualidade de Juiz de Direito, luto todo santo dia pelo cumprimento da Constituição Federal. Jurei fazê-lo ao tomar posse, e sigo nesta linha. Atuando em varas criminais há quase vinte e um anos, muitas pessoas (mais ainda atualmente, quando o cumprimento da Constituição anda démodé) me olham de cara feia por isto, dentro e fora do Poder Judiciário: problema deles, não meu.

Pois não é que agora passaram a me olhar de lado, de cara feia, também os poucos que lutam comigo pela defesa da Constituição e prevalência dos direitos humanos?

De repente passei a ouvir um coro, orquestrado por grandes conglomerados midiáticos e seus interesses nem sempre transparentes ou democráticos, entoado acriticamente por muitos:“Casta! Marajá! Privilegiado!”, dizem alguns, enquanto outros berram e esbravejam com sangue nos olhos, destilando o mesmo ódio que disseminam ora aqui, ora ali.

Vejam: integro uma vertente da magistratura que não faz questão de rapapés, de mesuras, de ser chamada de excelência, de ter carro oficial ou privilégios, mordomias, nem ter meu órgão de atuação intitulado como egrégio ou augusto. Além disso, faço parte de um grupo de magistrados que, por todo o Brasil, luta pela prevalência dos direitos fundamentais, dos direitos humanos para todos (sejam “bandidos” ou “mocinhos”).

Integro a magistratura a enxergando como um serviço público ao povo brasileiro, com muitos defeitos – é bem verdade, que se impõe serem concertados -, porém composta em sua imensa maioria por cidadãos íntegros e dedicados ao extenuante trabalho que é prestar a jurisdição neste país de forte litigiosidade (em parte, justamente, pelo reiterado descumprimento de nossa trintenária Constituição).

E aqui surge a questão atual da remuneração dos magistrados – fruto de mais um descumprimento à nossa combalida Constituição.

Dispõe o artigo 95 da Carta Constitucional:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:

III – irredutibilidade de subsídio, ressalvado o disposto nos arts. 37, X e XI, 39, § 4º, 150, II, 153, III, e 153, § 2º, I.

Este artigo, é mister lembrar, não difere muito de outro, também constitucional e muito relevante, que se aplica a todo e qualquer trabalhador brasileiro (portanto também a você, que aqui lê estas palavras):

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

Mas aí vem o problema, i.e., um outro dispositivo constitucional que desde longa data vem sendo anualmente desobedecido (grifei):

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:

X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;

Por motivos vários que não cabem aqui serem esmiuçados, como disse, anualmente vem sendo desrespeitada essa “revisão geral anual” dos subsídios dos magistrados, a importar na atualidade em cerca de 40% de defasagem remuneratória.

É como se você, prezado leitor, em seu emprego, estivesse sentindo no bolso (e, portanto, nas condições de subsistência) de sua família, de seus filhos, um achatamento de 40% do seu salário. É como se você estivesse sofrendo um desrespeito a seu direito fundamental, contido no artigo 7º, VI, da Constituição Federal. Nada agradável, não é?

E daí veio outro problema: para combater aquele descumprimento à Constituição, alguns Tribunais resolveram dar um jeitinho, e começaram a criar vários e vários “penduricalhos” (auxílio isso, auxílio aquilo), alguns com o respaldo do Conselho Nacional de Justiça, outros nem tanto, mas em sua grande maioria sem o estrito e devido respaldo constitucional – verdade tem de ser dita.

Nada “justifica” os “penduricalhos” – apesar do desrespeito ao artigo 37, X, somado ao descumprimento do artigo 95, III, ambos da Constituição Federal.

Muitos, à época do início da criação dos tais “penduricalhos”, fomos contra. Dizíamos: mas combateremos um erro com outro? Para cumprir (por vias transversas) a Constituição, descumpriremos a Constituição? Vamos perder o foco, que é a revisão anual dos subsídios? Isto só aumentará nosso telhado de vidro!

E assim foi, e aqui estamos. E tome pedrada.

Não faço aqui uma justificativa: faço história. Foi assim que chegamos aos dias atuais e à campanha midiática diuturna contra a magistratura – campanha que, acreditem, tem outros objetivos nada saudáveis, e não visa o aprimoramento de nossa já tênue democracia.

Solução? Me parece tão simples: respeitemos a Constituição (sempre)! Façamos a recomposição dos subsídios (os magistrados aposentados agradecem!) tal como o dita a Carta, e extingamos todas as verbas estranhas ao parágrafo 4º do artigo 39 da Constituição Federal.

Extinguir “penduricalhos” sem recompor os subsídios, como visto, também será desrespeitar a Constituição Federal, seja sob a ótica de uma das garantias da magistratura (e indiretamente de todos os cidadãos), seja sob o prisma dos direitos de todo e qualquer trabalhador: a irredutibilidade de salários e subsídios.

Não quero ser “marajá” nem “herói”: nunca quis e não ingressei na magistratura para isto – aliás, muito pelo contrário, pois quando fiz esta opção de vida sabia claramente que estava,possivelmente,a abrir mão de altíssima remuneração na iniciativa privada.

Quero e tento sempre ser um bom servidor público, cumpridor da Constituição. Mas de uma coisa tenho absoluta certeza: um Poder Judiciário de joelhos não será proveitoso para muitos, e certamente não para você, pacato cidadão.

Marcos Augusto Ramos Peixoto é Juiz de Direito do TJRJ.

Fonte: Justificando / Carta Capital