Ao dar poderes ao juiz para ponderar qual norma (e não princípio) deve prevalecer em caso de conflito entre leis, o novo Código de Processo Civil — que aguarda sanção da presidente Dilma Rousseff — dá margem a abusos interpretativos e fundamenta uma ordem jurídica baseada na subjetividade. Essa é a opinião de diversos advogados ouvidos pela revista eletrônicaConsultor Jurídico.
A regra criticada está no artigo 486, parágrafo 2º, do projeto, que tem a seguinte redação: “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”.
As críticas ao dispositivo começaram a proliferar após o jurista Lenio Streck fazer uma análise detalhada da questão em sua coluna de 8 de janeiro na ConJur. "O malsinado dispositivo servirá para que o juiz ou tribunal escolha, de antemão, quem tem razão, ideológica-subjetivamente", escreveu. Na conclusão, o colunista pede que Dilma vete essa norma.
O advogado e professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da USP Antônio Cláudio da Costa Machado concorda com Streck. Ele explica que a ponderação só pode ser feita quando há conflito entre princípios constitucionais ou direitos fundamentais e ataca a generalização da técnica interpretativa.
“A ponderação é um princípio que vem do Direito alemão para uma situação muito específica, que é quando estão em rota de colisão princípios constitucionais ou direitos fundamentais. Só para essa situação é que a ponderação serve, porque, quando se trata de legislação infraconstitucional, é o “tudo ou nada”: ou se aplica a norma X, ou se aplica a norma Y. Não dá pra aplicar as duas ao mesmo tempo. (...) O princípio da ponderação não permite ao juiz pegar dois dispositivos da legislação infraconstitucional, fazer um meio-termo entre os dois e aplicar, entende? Isso é um absurdo”, critica Costa Machado.
Para o professor da USP, o dispositivo dá poderes excessivos ao juiz: “Isso é uma abertura para uma discricionariedade judicial que não pode existir. O juiz se pauta na lei, e ele interpreta a lei com as ideias de razoabilidade e proporcionalidade. Mas tudo isso serve para o juiz interpretar a lei, não para ele criar a lei. Esse dispositivo inteiro é uma porta aberta à criação judicial. O juiz com base numa regra dessas vai fazer o que quiser”.
O processualista ainda afirma que o veto ao parágrafo 2º do artigo 486 — tal como pedido por Streck — não seria suficiente, uma vez que o código inteiro “dá margem a voos interpretativos” dos magistrados.
De acordo com o advogado José Miguel Garcia Medina, sócio do Medina & Guimarães Advogados, a redação imprecisa põe nos ombros dos doutrinadores a tarefa de delimitar os poderes interpretativos do juiz.
“A 'ponderação', de fato, tem conduzido a arbitrariedades. O uso da expressão, no texto do novo CPC, a meu ver, não foi feliz. Cumpre a nós, na doutrina, explicar que 'ponderar' não significa 'escolher arbitrariamente'. Trata-se de interpretar ao aplicar, o que significa identificar de modo preciso os limites entre os direitos em conflito, a fim de apresentar uma solução racional para a questão levada ao Judiciário”, elucida Medina.
O especialista em Direito Processual Civil Eduardo Arruda Alvim, sócio do Arruda Alvim e Thereza Alvim Advocacia e Consultoria Jurídica, também se mostrou preocupado com a questão.
“Soa-me preocupante a banalização do assunto, estampada em um preceito de lei ordinária. É assunto que toca muito mais com a doutrina do que com o legislador. Com relação às regras é ainda mais preocupante, porque não é o caso de falar-se em ponderação quando estão em pauta regras, pois estas aniquilam-se umas às outras. O dispositivo, portanto, além de indevidamente abrangente, trata um assunto de extrema delicadeza, e que não faz parte do cotidiano, como algo corriqueiro. Pode, portanto, dar margem a desmandos e interpretações distorcidas, gerando muita confusão”, opina Arruda Alvim.
Na visão de Arruda Alvim, o dispositivo deve ser vetado para não prejudicar a intenção do legislador de que o juiz fundamente suas decisões, algo especificado, principalmente, no parágrafo 1º do artigo 486. “Há — e isso é louvável — uma preocupação do novo CPC no sentido de dirigir o juiz a fundamentar adequadamente a decisão. Vários dispositivos foram redigidos nesse sentido, sendo esse um deles. Mas, este, pelas razões apontadas, merece o veto. O dispositivo realmente dá um poder desmesurado ao juiz, e desdiz tudo o que o parágrafo 1º do artigo 486 especifica com muito cuidado”, argumenta o advogado.
Membro da comissão de juristas que assessorou a Câmara dos Deputados na elaboração do novo CPC, Dierle Nunes, sócio do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia, discorda das avaliações de Lenio, Costa Machado, Medina e Arruda Alvim. Segundo ele, a leitura isolada do dispositivo encobre o verdadeiro objetivo dele, que é de evitar abusos interpretativos.
“O artigo 486 é um dos dispositivos mais relevantes do Novo CPC, e seu objetivo é exatamente o de tentar coibir abusos no momento da fundamentação. A leitura do professor Lenio é uma das possíveis, uma vez que as premissas do novo CPC coíbem o aludido aumento dos poderes judiciais. Porém, a leitura do parágrafo 2º somente pode ser feita em conformidade com premissas do contraditório dinâmico, que impede decisões de surpresa (artigo 10), da teoria normativa da cooperação (artigo 6º) e do próprio artigo 486, caput, e parágrafo 1º. Creio que a leitura isolada do dispositivo deve ser abandonada, pois contrariaria os referidos comandos da parte geral do código”, sustenta Nunes.
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Fonte: Conjur