Um projeto que teve início há 30 anos a partir de um sonho da pensionista Lucinda Alvarez de Oliveira Leite, de trabalhar com crianças carentes, transformou-se em um projeto social vitorioso que atende, hoje,a cerca de 350 crianças e jovens do bairro Mariano de Abreu, na zona leste de Belo Horizonte. O Núcleo de Trabalho e Integração Social (Nutris), fundado em 1989 por Dona Lucinda e mais 11 mulheres, todas esposas de juízes e desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), é hoje mantido por um convênio com a Prefeitura de Belo Horizonte e pelas contribuições voluntárias de pensionistas e magistrados mineiros.
Nos últimos 30 anos, muita coisa mudou. Quando decidiram construir a creche, em nome daquilo em que acreditavam, que era promover oportunidades para as crianças que viviam na região, Dona Lucinda e todos os voluntários enfrentaram diversos problemas, a começar pela falta de infraestrutura básica no local. Não havia água e nem esgoto, e o mais alarmante era o alto índice de mortalidade infantil na região. Ao se aproximar da creche, agora, nos seus 30 anos, já é possível perceber que a realidade é outra. O trabalho dos voluntários e o apoio fundamental da Magistratura mineira conseguiram mudar a realidade de uma região tão carente e promover oportunidades para moradores que antes não tinham opções.
Gratidão
Jennie Martins de Souza tem 27 anos. Há um mês, ela trabalha no Nutris como auxiliar. Mas conhece profundamente a rotina, os professores e toda a história do local porque foi ainda bebê para creche. Jennie não foi sozinha. Seus quatro irmãos também contaram com todo o apoio e o acolhimento do Nutris, enquanto crianças, tão necessários para o crescimento e o amadurecimento emocional deles quanto para a mãe que aproveitava o dia para trabalhar e sustentar os filhos. Jennie recordou de algo que a marcou muito e demonstrou o tamanho do coração das pessoas que são envolvidas com o trabalho do Nutris. Ela lembrou que a filha de uma funcionária utilizou o primeiro salário à época para fazer uma compra para sua família, de Jennie, que passava por dificuldades em casa. Ela recordou de ouvir a funcionária dizer: “Fiz uma compra para uma criança. Eu sei que muitos aqui necessitam, mas tem uma criança que está precisando mais”. “Essa criança era eu”, contou.
Ao retornar ao Nutris, desta vez para trabalhar, Jennie afirmou que não tem satisfação melhor do que poder retribuir todo o amor que recebeu estando no Nutris e, aos seis anos de idade, no NAC. E a vaga para trabalhar apareceu em uma hora oportuna. É que Jennie teve uma gestação interrompida há dois meses. Hoje, ela é auxiliar no berçário e revelou como o Nutris continua sendo uma bênção para todos da região: “Eu acabei de perder um bebê e, aqui, ganhei 14”, disse ela, referindo-se aos bebês dos quais ajuda a cuidar no berçário do Nutris.
"Qual criança não quer ser bem recebida, contar uma novidade,
ganhar um abraço ou um sorriso?
Aqui a gente sempre teve isso” - Jennifer Silva Rodrigues
Jennifer Silva Rodrigues tem 28 anos e também trabalha na creche. Ela e Jennie já se conhecem porque Jennifer também passou sua infância no Nutris. “Para mim, aqui é uma segunda casa”, contou. Ela chegou ao Nutris com 3 anos, junto com seus irmãos e lembrou que não gostava de ir embora. Segundo ela, muitas vezes as crianças recebem no Nutris sentimentos que não têm dentro de casa, como o amor, o carinho, o afeto, o acolhimento. “Qual criança não quer ser bem recebida, contar uma novidade, ganhar um abraço ou um sorriso? Aqui a gente sempre teve isso”, reconheceu Jennifer. Mãe de Kethelyn, de nove meses, Jennifer afirmou que, mesmo antes de trabalhar na creche, sempre estava presente para ajudar no que fosse necessário. Hoje, sua filha está na creche e, para ela, não existe lugar melhor para seu desenvolvimento.
Superação
Aos 19 anos, o sonho de Gabriel Davi Martins de Souza, irmão de Jennie, é se profissionalizar como dançarino. E este não parece ser um sonho muito distante. Depois de passar pelo Nutris e, aos seis anos, ir para o NAC, Gabriel se apaixonou por artes e conseguiu explorar e aprimorar seus conhecimentos artísticos. Sua paixão sempre foi a dança e foi no NAC, com o apoio dos profissionais que estão lá, que ele conheceu cursos e oportunidades de aperfeiçoamento que o levaram ao terceiro lugar de um concurso de dança realizado em Belo Horizonte. O resultado garantiu a Gabriel um bolsa para um curso de dança. Ele fez e continua se aperfeiçoando.
"O NAC foi fundamental nos momentos em que mais precisei.
Era como uma extensão de minha família"
- Gabriel Davi Martins de Souza
“Além de todo esse apoio, o NAC foi fundamental nos momentos em que mais precisei. Era como uma extensão de minha família, porque os meus irmãos também estiveram aqui. O NAC foi nossa base, assim como o Nutris”, contou Gabriel. De acordo com ele, “se hoje muitos meninos têm uma vida estável e sabem conviver com outras pessoas, sem agressividade, o mérito é do NAC.
“Porque aqui as pessoas têm o tratamento que não teriam em outros lugares. Ser acolhido e ser ouvido. Muitas vezes cheguei aqui e só queria ser ouvido.E fui”, reconheceu.
Acolhimento
Criança não mente e não consegue fingir. Ouvir relatos de pessoas que estudaram no Nutris e têm histórias tão bonitas para contar é um verdadeiro alento. Para as mães da região do Bairro Mariano de Abreu, o Nutris é uma criança que cresceu e se desenvolveu, completando seus 30 anos. É assim que descreveu a creche a senhora Maria Ágata Lopes de Oliveira, a dona Zinha.
“O Nutris é pai e é mãe. Ele ajuda a incentivar
os valores que são fundamentais como a
educação e a família.
Além disso, ele sempre está com as mãos estendidas”
- Dona Zinha
Atualmente ela tem 63 anos e viu o Nutris nascer. Seus filhos estudaram ali e, hoje, estão todos encaminhados na vida. Luiz Felipe, com 27 anos, cresceu no Nutris, junto com seu irmão Jamerson, que chegou na creche aos quatro meses e, hoje, tem 24 anos. “O Nutris é pai e é mãe. Ele ajuda a incentivar os valores que são fundamentais como a educação e a família. Além disso, ele sempre está com as mãos estendidas”, apontou Dona Zinha. De acordo com ela, a paixão das crianças pelo Nutris não acaba quando elas deixam a creche. “Os meninos guardam a memória afetiva daqui. É que quando chegam, muitas vezes,abandonam os problemas e, aqui, conseguem ser criança, aprendem a sorrir. O sorriso é gratuito, e na creche a gente sempre é recebido com o sorriso”, afirmou.
“Eles ficavam o dia todo no Nutris e
aqui tiveram muitas oportunidades”
- Maria Ângela
Maria Ângela de Souza também acompanhou todo o crescimento do Nutris e, hoje, agradece o apoio da creche ajudando sempre que pode. Ela lembrou de quando ia trabalhar e deixava seus filhos, Felipe, à época com cinco anos, e Nathan e Nathália, gêmeos. “Eles ficavam o dia todo no Nutris e aqui tiveram muitas oportunidades”. Felipe, hoje, tem 28 anos e é formado em Psicologia. Nathan e Nathália também concluíram o ensino médio e estão trabalhando.
“Pietra é especial e, aqui, ela faz tudo o que todas as crianças fazem.
E isso tem feito ela se desenvolver muito”
- Cláudia Souza
Cláudia Souza tem 44 anos e deixa sua filha, Pietra, de 3, aos cuidados do Nutris. “Pietra é especial e, aqui, ela faz tudo o que todas as crianças fazem. E isso tem feito ela se desenvolver muito”, contou Cláudia. Pietra faz tratamento na Fundação Dom Bosco e frequenta o Nutris. Quando ela chega é sempre bem recebida. As crianças gostam de dar abraço coletivo, e Pietra adora receber.
Dedicação
A história de Sandra Mendes Lopes se confunde com a própria história do Nutris. Aos 20 anos de idade, Sandra, ainda solteira, sem filhos, mas com muitos sonhos, começou a trabalhar na instituição quando o Nutris ainda estava sendo erguido. Ao lado de Dona Lucinda, monitorava o trabalho dos pedreiros e zelava para que tudo corresse conforme o planejado. Quando finalmente as obras acabaram, em 1989, Sandra passou a percorrer as ruas do bairro atrás de crianças que pudessem frequentar o novo espaço. A tarefa não foi fácil, já que muitos moradores da comunidade tinham receio de ter contato com uma instituição mantida pela Justiça.
“Quando comecei a trabalhar no Nutris, há 30 anos, não tinha ideia do que era uma creche, da responsabilidade que era trabalhar em um local como esse. Na época, o Nutris atendia apenas 30 crianças. Para a comunidade, esse imóvel era um elefante branco, muito distante da realidade deles. A comunidade tinha medo de se aproximar do prédio, pelo fato de ele ter sido construído com o apoio dos magistrados. Alguns tinham receio de ter contato com o Poder Judiciário e ficavam arredios. Por conta disso, tínhamos que sair de casa em casa buscando os alunos. Era um trabalho de formiguinha”, contou Sandra Lopes, que, hoje, é coordenadora pedagógica da instituição.
"Hoje, vejo o quanto esse encaminhamento ao NAC é
importante para que os alunos que saem da educação infantil
possam continuar a ter o suporte da instituição"
- Sandra Lopes
Com o passar do tempo, os pais foram conhecendo o trabalho desenvolvido pela instituição e adquirindo confiança. Com isso, a demanda por vagas cresceu muito. Atualmente, o Nutris atende a 149 menores de até seis anos. Para dar conta de tantos alunos, o Nutris passou por obras de ampliação em 2018.
Uma preocupação permanente dos funcionários era com o futuro das crianças que saíam da creche e ficavam entregues à própria sorte, uma vez que o atendimento era feito somente a menores de até 6 anos.
Por isso, em 2005, foi criado o Núcleo de Arte e Cultura (NAC), que atualmente atende a 200 crianças e adolescentes de seis a 16 anos, em turmas divididas nos turnos da manhã e da tarde. Todas participam de oficinas de dança, teatro, esportes, pintura, artes plásticas ou capoeira. Com o trabalho estendido, elas passam a ter mais oportunidades na vida.
Antes do NAC e do apoio que ele oferece, era comum ver histórias tristes se repetirem. “Lembro-me bem da turma que saiu do Nutris em 1995. Dela, eu perdi dois alunos para as drogas. Foram assassinados nessas vielas próximas à escola. Foram ótimos alunos, mas não tiveram uma oportunidade melhor. Hoje, vejo o quanto esse encaminhamento ao NAC é importante para que os alunos que saem da educação infantil possam continuar a ter o suporte da instituição e ser encaminhados ao mercado de trabalho, reduzindo, assim, a chance de ingressarem na criminalidade”, afirmou Sandra Lopes.
Amor e Doação
Um dos maiores desafios que Sandra Lopes enfrenta em sua rotina de trabalho é acompanhar de perto a história de crianças em situação de vulnerabilidade social. Não é raro encontrar menores separados dos pais por terem sofrido algum tipo de violência ou abuso e crianças em situação de pobreza extrema. Algumas só têm o que comer na creche e passam o restante do tempo que estão em casa de barriga vazia.
“Muitas crianças só têm o que comer aqui na escola. Depois das 17h, que é o horário de saída, até no dia seguinte, às 8h, quando chegam, sabemos que algumas crianças não comeram mais nada. Às 8h, quando é servido o café da manhã, a gente vê como elas se comportam diante da refeição. Tem criança de 8 meses que toma uma mamadeira inteira e a segunda já tem que estar pronta, porque ela está faminta e uma só não é o suficiente. Nessas horas, a gente sofre porque é impossível separar o lado profissional do pessoal diante de uma situação como essa”, ressaltou a funcionária.
Apesar de vivenciar situações extremamente tristes, a maioria das histórias que se passa no Nutris e no NAC tem um final feliz, de alegria, superação e amor. “Tenho ex-alunos que hoje estão trabalhando fora do país. Tenho alunos formados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e em outras instituições renomadas de Belo Horizonte”, disse Sandra, com orgulho.
Para dar conta de enfrentar tantos desafios, Sandra Lopes revelouque é preciso, antes de tudo, amor e doação. Depois que completou 22 anos trabalhando no Nutris, a coordenadora pedagógica passou em um concurso estadual. Trabalhava meio horário no Nutris e meio horário em uma escola do Estado. “Mas eu me sentia incompleta, porque minha paixão eram as crianças do Nutris. Acabei saindo do trabalho no Estado. Então, eu cresci junto com essa instituição. Aprendi muito com essa vivência com as famílias e com as histórias que elas nos trazem. Aqui, eu recebo muito mais do que dou porque cada criança que passa por essa instituição leva um pouco de mim e deixa muito dela aqui”, disse.
Hoje, casada e com uma filha de 27 anos, Sandra Lopes comemorou os avanços alcançados nesses 30 anos, como a ampliação da sede do Nutris, a criação do NAC, a ampliação da faixa etária dos menores atendidos, a maior oferta do número de vagas e a contratação de auxiliares para atuar ao lado dos professores em sala de aula. Mas ainda há muito o que fazer. Para ela, o grande desafio, hoje, é ampliar o trabalho junto às famílias das crianças e dos jovens atendidos. “Meu sonho é voltar a fazer permanentemente trabalhos de conscientização com as famílias, de cuidados com as crianças, ensinar trabalhos manuais para as mães e responsáveis, para que tenham uma fonte de renda. Gostaria de trazer as famílias para dentro da escola, pois ela não caminha sozinha”, destacou.
Para ajudar a manter o trabalho das duas instituições, é fundamental que a Magistratura mineira continue apoiando os projetos com recursos financeiros e com os trabalhos voluntários. Hoje, o Nutris conta com apoio de apenas três voluntárias e as doações têm diminuído consideravelmente. “Além do convênio com a Prefeitura, só temos as contribuições da Magistratura mineira como fonte de receita. E os valores têm se reduzido a cada ano, o que compromete significativamente o nosso trabalho. Por isso, pedimos que magistrados e seus familiares venham conhecer de perto a nossa atuação e colaborem com nossa instituição”, solicitou Sandra Lopes.
Contribua
O Nutris e o NAC ficam no Bairro Mariano de Abreu, na região leste de Belo Horizonte. As instituições atendem crianças e adolescentes de famílias com baixarenda, proporcionando a elas saúde, alimentação, atividades de estímulo psicopedagógico, psicomotora, cognitiva e afetiva, visando à educação integral em conjunto com as famílias.
As instituições são mantidas com doações de colaboradores. Para contribuir com o trabalho desenvolvido pelo Nutris e pelo NAC é possível fazê- -lo diretamente no Nutris ou, no caso dos magistrados e pensionistas, fazer a solicitação do documento de autorização para desconto em folha. Não há um valor fixo para a doação e todos podem ajudar, independentemente de serem integrantes da Magistratura.
Os recursos arrecadados com as doações são utilizados para despesas de manutenção do Nutris e do Nac, que vão desde a compra de mantimentos para as refeições das crianças e adolescentes, produtos de limpeza, contas de água, luz e telefone, e despesas de pessoal como salários e demais encargos trabalhistas, de coordenadoras, professores e serventes que garantem o funcionamento diário das instituições.
Os interessados em contribuir podem entrar em contato com a Amagis, pelo número (31) 3079- 3471, no Departamento Financeiro da Associação, e com o Nutris, pelo telefone (31) 3485-6035, com Maria Nilza. É possível ainda fazer o depósito na Conta Corrente do Núcleo de Trabalho e Integração Social, no Banco do Brasil, Agência 3014-7, conta corrente 121608-2. Doe e faça parte desta história de amor e esperança que muda vidas.
* A matéria especial sobre os 30 anos do Nutris foi publicada no jornal DECISÃO, edição de maio de 2019. Clique aqui para ler a matéria no Jornal.