Joaquim Falcão

No momento em que a maior associação dos juízes brasileiros, com mais de 13 mil associados, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), se reúne em São Paulo em sua convenção trienal, encontra-se no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) proposta para limitar a atuação das associações de magistrados, pela limitação das atividades de seus presidentes.

Hoje são mais de 90 tribunais e dezenas de associações. Os que pretendem limitar a ação dos presidentes alegam que suas atividades os desviam da atividade jurisdicional. Diante da carência de juízes, a administração da justiça estaria sendo prejudicada. Em qualquer decisão a ser tomada, dois aspectos podem ser considerados.

Primeiro, as críticas que as associações de magistrados têm enfrentado nos últimos anos não se originam da sociedade. Nem da mídia. Nem dos partidos políticos. Nem do povo. Nem dos governos. Vêm de seus próprios pares. Algumas vezes as críticas externam uma disputa vertical, entre juízes e desembargadores. Os exemplos são visíveis.

Não faz muito tempo, a diretoria do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) tentou despejar a AMB do edifício do tribunal e colocar em seu lugar a Associação Nacional dos Desembargadores. Não conseguiu. Hoje as duas associações estão no tribunal.

Tribunal Regional Federal com sede em São Paulo, ao mesmo tempo que dava licença para desembargadores viajarem para reuniões das associações, negava-a paa juiz de primeiro grau. Dois pesos e duas medidas. Prática também revertida.


Outras vezes as críticas externam disputas políticas horizontais. O TJ-RJ investe contra o importante Colégio de Presidentes dos Tribunais Estaduais. Pretende limitar, depois de ter formalmente aceitado, as atividades do presidente do colégio. Perdeu por unanimidade no CNJ. E já começou a perder no Supremo. Não obteve liminar pretendida.

O argumento de que presidentes de associações não se podem afastar da jurisdição, no fundo, tenta diminuir o importante papel que as associações, o colégio inclusive, assumiram em nossa trajetória histórica. A OAB se fez Brasil e se legitimou aos olhos dos cidadãos por sua histórica defesa das liberdades e da democracia. A Associação Brasileira de Imprensa, por sua defesa da liberdade expressão. Também as associações de juízes, por sua permanente defesa da reforma e da democratização do Poder Judiciário.

A título de comparação, na França os juízes têm sindicatos. No Brasil, associações. Lá eles fazem greve; aqui, não. Por saudável espírito de sobrevivência, inexiste influência de partidos políticos em associações de juízes brasileiros. O Parlamento Europeu aprovou Carta Europeia sobre estatuto dos juízes, na qual assegura o direito de o juiz participar de organização profissional como forma de garantir seus próprios direitos e seu melhor desempenho.


O protagonismo na reforma da Justiça caracteriza imensa maioria das associações. Elas têm apoiado nova legislação, dialogado sobre novos processos de fiscalização, mobilizado e difundido iniciativas individuais inovadoras. Agilizam a Justiça de conciliação. Muitas participam de audiências públicas da Corregedoria Nacional. Seus presidentes trabalham pela macroeficiência do Judiciário. Conscientes de que essa é tarefa maior de todas.

Nenhum outro Poder está tão comprometido com sua reforma quanto o Judiciário. Proibiu nepotismo, limitou uso de automóveis de serviço, impôs transparência na concessão de diárias para viagens de desembargadores, reduziu excesso de juízes auxiliares.

Neste contexto de mudança, algumas associações se chocam com direções de tribunais detentores do poder local, que não o querem diminuído. Estas se defendem sob a doutrina da autonomia dos tribunais e alianças com Assembleias Legislativas. Alegam que procedimentos administrativos do passado são direitos individuais. Mas o Supremo e o CNJ têm repetidamente dito que é tempo de mudança. Fiscalizar não fere autonomia. Poderes administrativos não são privilégios intocáveis nem geram direitos adquiridos.

O segundo aspecto a considerar explica e amplia o primeiro. A atual estrutura administrativa dos tribunais é hierárquica e centralizada. É deformação cultural, derivada do princípio da hierarquia das leis. Ou seja, Estado Democrático de Direito exige que Constituição prevaleça sobre lei, lei sobre decreto, decreto sobre resolução, resolução sobre portaria, e por aí vai. Mas doutrina jurídica é água, modelo de gestão é vinho. Hierarquia jurisdicional é diferente de hierarquia gerencial.


Uma boa gestão não significa que desembargador mais antigo seja melhor que desembargador mais novo. Nem que juízes sejam excluídos de participar da discussão do orçamento dos tribunais. Não pressupõe somente desembargadores na direção dos tribunais. Ao contrário. A excessiva centralização hierarquizada é uma das causas da lentidão da administração da justiça. Que não se resolve por tentativas de limitar o direito de se associar dos juízes.


A maioria dos tribunais caminha para mudança cultural de suas direções. Um jovem juiz caracterizou as direções recalcitrantes como uma aristocracia de duques, condes e viscondes com um rei mutante de dois em dois anos.

Depois das reclamações sobre lentidão, os maiores demandantes do CNJ são, surpreendentemente, os próprios magistrados, com suas disputas internas. Desembargadores entre si, e contra juízes de primeiro grau, e estes entre si. Algumas direções dos maiores Tribunais de Justiça têm relação de amor e ódio com o CNJ. Opõem-se às suas modernizações, mas são os primeiros a procurá-lo para resolver disputas.

De resto, como diz o conselheiro Marcelo Neves do CNJ, o direito de se associar é direito fundamental. Não é competência de tribunal estadual limitá-lo. Nem mesmo do CNJ. Na democracia, isso cabe ao Congresso.


Artigo publicado no jornal Estado de São Paulo do dia 23/10/2009