Para que se considere prequestionada a questão de Direito Constitucional ou Federal, deve o tema ter sido examinado na decisão que se pretende impugnar, por recurso extraordinário ou especial. Caso, embora suscitada previamente pelas partes, haja omissão a respeito da questão, devem ser opostos Embargos de Declaração.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que, rejeitados tais Embargos de Declaração, não poderá o Recurso Especial versar sobre a questão federal não examinada no tribunal de origem, devendo a parte alegar, em seu recurso, violação ao artigo 535, inciso II do Código de Processo Civil. Essa orientação, consolidada na Súmula 211 daquele tribunal, significou um afastamento do que o Supremo Tribunal Federal vinha decidindo até então, com base no que dispõe em sua Súmula 356: opostos embargos de declaração, considera-se prequestionada a questão, ainda que não suprida a omissão pelo tribunal local.[1] Trata-se daquilo que se convencionou chamar de “prequestionamento ficto”.
Ambos os tribunais reconhecem a existência de tal divergência.[2]
Há, aí, o primeiro problema: embora tenham objetos distintos (essa afirmação não é isenta de críticas, como apontei no texto anterior da coluna), o sentido dos artigos 102, inciso III e 105, inciso III da Constituição é o mesmo. É inadmissível, diante disso, que os tribunais superiores adotem orientação diferente, a respeito da configuração do prequestionamento.
Mais recentemente, alguns julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal têm se afastado da orientação que, antes, era pacífica, nesse tribunal, não mais admitindo o denominado “prequestionamento ficto.[3] As decisões que adotam esse novo entendimento, porém, não deixam claras as razões dessa viragem jurisprudencial.
Aqui, estamos diante do segundo problema: aparentemente, ensaia-se, no Supremo Tribunal Federal, o abandono da doutrina do “prequestionamento ficto”, e tenderá esse tribunal a aproximar-se da orientação firmada pelo Superior Tribunal de Justiça, em sua Súmula 211.
O que justificou, contudo, essa mudança de entendimento a respeito do tema? Não se tem notícia de alteração na Constituição ou na lei, no que se refere ao assunto. Se o entendimento adotado anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal era errado — eu, pessoalmente, entendo que a doutrina do “prequestiomento ficto” é contrária à Constituição[4] —, o abandono de tal orientação não poderia ser realizado, sem que se expressassem as razões que levariam à mudança.
Os problemas relativos ao prequestionamento são os mais variados. O tema é complexo, e certamente voltarei a ele, muitas vezes, nesta coluna. Hoje, porém, desejo tratar da integridade da jurisprudência. Desejo fazer isso, também, porque, para muitos, o direito brasileiro é cada vez mais influenciado pelo common law, especialmente no sentido de que, há algum tempo, nosso direito é mais “jurisprudencial” que “legal”. A jurisprudência assumiria, sob esse ponto de vista, papel mais importante que a lei, na construção da solução jurídica...
Isso está correto? Pode-se mesmo dizer que, entre nós, vigora um modelo de precedentes semelhante ao de common law? A resposta a essa questão não é simples. Afinal, estamos falando do modelo norteamericano, inglês ou outro? Antes de se buscar a resposta a essa pergunta, devemos saber se há identidade entre os modelos adotados no common law e no Brasil: As normas constitucionais e as leis desses países são iguais às nossas? Entre nós, os precedentes deveriam ser mais importantes que a lei? Juízes de common law não decidem de acordo com a lei?
Penso que estamos, de um lado, superestimando a influência do common law, entre nós, e, de outro, aplicando, erroneamente, algumas das ideias marcantes da regra de precedentes de alguns dos países que adotam tal modelo.
Afirma-se, por exemplo, no site do Supremo Tribunal de Federal, que recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, embora ainda não julgado no mérito, é considerado um leading case (cf. lista disponível aqui, para download). Parece não ser adequado, contudo, atribuir tal qualidade a um caso que sequer foi julgado. O leading case é assim considerado posteriormente, e não com antecedência: são os julgados posteriores que o reconhecem como tal, e o seguem.[5] Não parece correto, assim, afirmar-se que um caso a ser julgado deve ser considerado, desde já, um leading case...
A doutrina do stare decisis (ou, em sua fórmula mais extensa, “stare decisis et non quieta movere”) por outro lado, tem por pressuposto a existência de uma jurisprudência íntegra. Há mais de dez anos, escrevi, aqui na ConJur, que o Estado não respeita as decisões do Poder Judiciário, e nem os próprios órgãos do Poder Judiciário respeitam as decisões que proferem. De fato, parece não haver, entre nós, preocupação em se criar decisões das quais se poderá extrair um precedente (no sentido de orientação, e não de “uma decisão judicial” qualquer) que deverá ser seguido pelo próprio tribunal ou pelos demais tribunais do País (ou stare decisis vertical e horizontal).[6] À época, tratando da súmula vinculante, afirmei que com essa figura havia a preocupação de impor um dado entendimento “sem se ocupar de convencer”. A criação de mecanismos tendentes a forçar a observância de entendimentos sumulados, se não respaldada em uma prática jurisprudencial consistente, tende a fracassar.
Voltemos, então, ao exame do que está havendo na jurisprudência dos tribunais superiores em relação ao prequestionamento.
Além de nenhum dos tribunais superiores explicar por que adotam (ou adotavam) entendimentos diferentes a respeito do “prequestionamento ficto”, a possível mudança de entendimento, manifestada em julgados recentes do Supremo Tribunal Federal, não foi explicada. Logo alguém chamará o que está ocorrendo de overruling. Mas o que mudou no direito ou na sociedade, para se justificar tal viragem jurisprudencial? Se se trata de correção de um entendimento equivocado, a mudança não poderia ocorrer sem, ao menos, se referir à orientação anterior, apontando o erro, justificando precisamente os porquês da mudança etc. E mais: em se tratando de mudança de orientação a respeito do cabimento do recurso extraordinário, não deveria ser observada, no caso (e valendo-se de outra expressão “da moda”, entre nós), a técnica do prospective overruling, aplicando-se a nova orientação jurisprudencial apenas a recursos extraordinários interpostos após noticiada a viragem jurisprudencial?
Questões como essas devem ser seriamente discutidas, antes de afirmarmos que “vivemos em um sistema de precedentes parecido com o do common law”. Ao contrário, penso que vivemos num sistema de stare (in)decisis.
Talvez a atenção com o que sucede no common law seja excessiva. Afinal, a preocupação com a qualidade da fundamentação dos julgados e com a estabilidade das orientações jurisprudenciais não é restrita a países que adotam tal modelo. Para que a regra do stare decisis seja aceita entre nós, é desnecessário invocar as bases da common law,[7] ou pensar que o direito brasileiro está se transformando em um modelo de common law. Ora, o ponto de partida para qualquer análise do que se deve fazer entre nós é a nossa própria Constituição Federal. Se levarmos a sério a afirmação de que o Brasil “constitui-se em Estado Democrático de Direito” (CF, artigo 1º), e entendermos as consequências disso, já teremos dado um grande passo.
Viragens jurisprudenciais não justificadas — como a que se anuncia na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do “prequestionamento ficto” — não condizem com a ideia de estabilidade e previsibilidade, ínsitas ao Estado de Direito; a falta de harmonia na jurisprudência, manifestada pela diversidade de orientação adotada pelos tribunais superiores a respeito do prequestionamento, também não.
O projeto de novo CPC, ao preocupar-se com o modo de fundamentação das decisões judiciais, bem como com a necessidade de a jurisprudência ser uniforme e estável, pode contribuir para que esse estado de incerteza e insegurança jurídica seja minimizado.
O que precisamos é de uma jurisprudência íntegra.
Até a próxima semana!
[1] Podem ser citadas, dentre outras, as seguintes decisões do STF, nesse sentido: RE 210638-SP, RE 214724-RJ, RE 219934-SP, RE 231452-PR, AI 439930 ED-SP, AI 591391 AgR-SC, AI 648760 AgR-SP.
[2] Cf., por exemplo, decidiram STF e STJ, aqui e aqui.
[3] Cf., por exemplo, RE 611937 AgR-BA, RE 728753 AgR-SC, AI 739580 AgR-SP, RE 591961 AgR-RJ.
[4] Tratei do tema, com vagar, no livro Prequestionamento e repercussão geral (6. ed., Ed. Revista dos Tribunais, 2012).
[5] Henry Campbell Black, há muito tempo, escreveu que “a leading case is one which, being either the first to deal with a given rule or principle of law or the first to investigate and discuss the same with special care, thoroughness, and learning, has been generally accepted as definitely settling the law on that point, and has been subscribed to and followed in many subsequent decisions” (Handbook on the Construction and Interpretation of the Laws, with a Chapter on the Interpretation of Judicial Decisions and the Doctrine of Precedents, reimpressão da ed. de 1896, The Lawbook Exchange, 2008, p. 413).
[6] Evidentemente, não se devem confundir precedente e jurisprudência. Das decisões proferidas no passado não se extraem, necessariamente, precedentes que influenciarão no julgamento de casos futuros.
[7] No texto antes referido, que escrevemos em coautoria com Alexandre Freire e Alonso Freire, procuramos deixar claro que o stare decisis não se confunde com o common law.
José Miguel Garcia Medina é doutor em Direito, advogado, professor e membro da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto de Código de Processo Civil. Acompanhe-o no Twitter, no Facebook e em seu blog.
Revista Consultor Jurídico, 12 de agosto de 2013