O psicanalista François Sauvagnat, convidado para proferir a palestra “A toxicomania e suas relações com a criminalidade”, deu o tom das reflexões que iriam ser partilhadas com a numerosa audiência do evento, realizado na noite de 28 de outubro, no auditório da unidade Raja Gabaglia do TJMG. Ele afirmou, já na sua primeira consideração, que se tratava de um “tema dificílimo”.

O evento foi organizado pela Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes (Ejef) e contou com a participação da psicóloga e coordenadora do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental (PAI-PJ), Fernanda Otoni de Barros Brisset, do juiz José Eustáquio Lucas Pereira, da 2ª Vara de Família de Belo Horizonte, e da psicóloga Yolanda Vilela, responsável pela tradução simultânea da palestra.

Na abertura, Fernanda Otoni destacou a excelência da Ejef na realização de encontros de qualidade e na organização de eventos. Ela também salientou que as drogas constituem um problema complexo e cheio de nuances, a respeito do qual existem vários discursos e práticas.

Segundo a psicóloga, em geral existem duas frentes de combate à toxicomania. “Há a segurança pública, que encara as drogas como ‘questão de polícia’ e o consumidor delas como um marginal, e a saúde pública, que procura entender o processo de ruptura de laços sociais e a linha que separa o usuário do criminoso. Esses dois setores às vezes têm políticas antagônicas”, explicou.

Antes de passar a palavra ao conferencista, Fernanda Otoni ponderou sobre a pertinência de se discutir “esse problema candente na contemporaneidade” que transforma o indivíduo em incômodo e se mostra um desafio para a Justiça. Nesse cenário, a psicanálise tem se revelado um recurso importante, por meio do qual é possível obter uma interlocução com o problema das drogas.

As drogas e a ciência: uma relação conflituosa

O professor francês, especialista em Psicopatologia, chamou a atenção para dois aspectos que tornam a questão da toxicomania particularmente complicada: a antiguidade do uso de drogas, as quais, segundo ele, sempre existiram, e a dificuldade de separar a droga para consumo e o uso médico de uma substância. O pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica da França (CNRS) esclareceu que “é difícil distinguir entre a dependência, definida por uma tolerância excessiva, pela perda de controle e pelo abandono das responsabilidades sociais, e as perturbações ligadas a uma substância que pode levar a intoxicações." Além disso, frisou ele, "todo remédio é potencialmente tóxico".

Para Sauvagnat, o mecanismo da adição, isto é, a dependência de drogas, caracterizada pela incapacidade ou impossibilidade de interromper o consumo de uma substância ou uma conduta, acabou exigindo uma ampliação da noção de toxicomania. “Atualmente, a doutrina que prevalece na psiquiatria é que pode haver toxicomania sem tóxico. É o caso da compulsão pelo jogo a dinheiro, que tem as mesmas consequências que as drogas: a ruína e o crime”, afirmou, acrescentando que toda adição pode provocar efeitos diretos (no próprio usuário ou em outra pessoa) e indiretos, representados por desordens sociais difusas.

A variedade de casos de toxicomania inclui o uso de drogas para fugir de problemas, para combater dores (abuso de medicamentos analgésicos), para perder a noção do perigo (causa recorrente do alto consumo de drogas no âmbito da prostituição), para conservar um determinado estado psíquico e físico (motivo dos índices elevados de drogas no mundo do espetáculo e do esporte), por influência dos pais ou de grupos etc.

Apesar disso, a ciência ainda não conseguiu tirar conclusões definitivas sobre o perfil dos toxicômanos nem sobre os elementos que podem influir sobre o indivíduo gerando maior ou menor susceptibilidade à droga.

A Justiça e a Toxicomania

Com base na sua experiência anterior na Vara de Tóxicos e Entorpecentes, o juiz José Eustáquio Lucas Pereira iniciou o debate com François Sauvagnat alertando que a prática de delitos para sustentar o vício coloca o consumidor de drogas na mira de traficantes. Para Pereira, “o usuário caminha a passos largos para o tráfico”, razão pela qual muitas vezes o juiz, em sua sentença, deve ser rigoroso, já que não pode obrigar ninguém a se tratar.

À pergunta do magistrado sobre se haveria salvação para o toxicômano, o professor francês deu uma resposta que, como propôs Fernanda Otoni, estava simultaneamente à altura da gravidade do problema e da necessária confiança no ser humano. Sauvagnat contou que, ao final da Guerra do Vietnã, o governo dos Estados Unidos se viu diante de estatísticas assustadoras sobre o consumo de drogas pelos soldados norte-americanos. Os contingentes afetados atingiam um terço das tropas e eram tão alarmantes que a única solução encontrada foi cruzar os braços e esperar pelo pior.

Mas o inesperado aconteceu. Grande parte dos soldados abandonou as drogas espontaneamente, tão logo retornou aos seus lares. “A motivação pessoal é fundamental para qualquer processo de recuperação. Mas, em se tratando de drogas, não há dúvida: também é preciso acreditar em milagres”, finalizou Sauvagnat.


Fonte: TJMG