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Para especialista, tráfico de pessoas para obter órgãos é crime protegido
02/09/2014 16h17 - Atualizado em 09/05/2018 16h01
Desde o início da década de 1990, a antropóloga americana Nancy Scheper-Hughes estuda o tráfico humano para a venda de órgãos, como os rins. Sua pesquisa começou no Brasil, em 1987, em Pernambuco, quando ouviu boatos sobre crianças sequestradas por estrangeiros que eram evisceradas e depois tinham seus corpos abandonados perto de estradas e hospitais.
Ao tentar entender de onde vinham esses rumores (que as autoridades públicas contestavam), ela passou a pesquisar o assunto, desvendando redes internacionais e criminosas de tráfico de órgãos. A partir daí, passou a colaborar com a polícia e com a Justiça de diversos países para a condenação de traficantes e médicos envolvidos.
Em 1999, fundou a organização Organs Watch, que reúne dados sobre o tema.
Veja trechos da entrevista concedida à Folha por e-mail:
Folha - Quem são as principais vítimas do tráfico de órgãos hoje?
Nancy Scheper-Hughes - Comunidades pobres, em geral, como as de agricultores e de favelas. São pessoas em situação muito vulnerável, que precisam desesperadamente de dinheiro. Em alguns lugares, como no sul da Ásia, nas Filipinas e em favelas da América Central, a obrigação de vender um rim para salvar a família é passada de pai para mulher, depois para os filhos mais velhos e até para crianças. Os corpos dessas pessoas passam a ser como "bancos". Todos os anos, 15 mil rins são vendidos no mercado negro, segundo a ONU.
Quais são as consequências para as vítimas do tráfico?
A longo prazo, há perda do bem-estar físico e mental. Como muitos dos vendedores de rins trabalham usando sua força física –carregando coisas, mexendo na terra etc–, eles acabam perdendo seus empregos. Também sofrem estigma social e sentem que vão morrer cedo. É uma mistura de culpa, vergonha, medo e desinformação. Muitas das pessoas que recebem um rim mencionam que o dia da cirurgia é aquele em que elas renasceram. Já vendedores de rim em Bangladesh se referem ao dia da nefrectomia como "o dia em que eu morri", ligando-a a uma morte econômica, psicológica, espiritual e social.
Há alguma especificidade no tráfico de órgãos no Brasil?
Toda pessoa que vende seu rim precisa de dinheiro, claro, mas os homens brasileiros que entrevistei, em Pernambuco, diziam que também queriam viajar e conhecer o mundo, no caso, a África do Sul, onde aconteciam as cirurgias. Alguns também diziam que queriam ir em um safári.
Mas as vítimas brasileiras sabiam que o que estavam fazendo era ilegal? Ou eram ludibriadas pelos aliciadores?
Eles sabiam que a venda de órgãos era provavelmente ilegal, mas foram recrutados por dois homens de alta patente militar, Gedalya Tauber da reserva do Exército israelense] e Ivan Bonifácio da Silva [capitão da reserva da PM de Pernambuco]. Então eles pensavam que estavam protegidos, embora tivessem sido enganados em muitos pontos: em quanto iam ganhar pelo rim, quanto tempo duraria a cirurgia, o quanto ela doía, se ela era segura.
Como o Estado pode prevenir o tráfico de órgãos?
Punindo os cirurgiões envolvidos no processo. Até agora, apenas os traficantes estão indo para a prisão. Muitos médicos e hospitais dizem que foram enganados, mas muitas vezes eles consentem com o que está acontecendo. Os cirurgiões são responsáveis, por lei, de saber de onde está vindo o órgão que eles estão transplantando: se ele é saudável, se ele tem procedência legal etc. A responsabilidade final é do cirurgião. Afinal, quem está segurando o bisturi?
O que leva pessoas de alto nível financeiro, como médicos, a participarem desse tipo de esquema?
Cirurgiões gostam de fazer transplantes. É a profissão deles, e uma profissão muito bonita. Muitas vezes, eles ficam frustrados em não conseguir os órgãos que precisam. Eles são levados pelo amor que tem pelo trabalho, mas também pela cobiça, tem muito dinheiro envolvido nessas transações. Alguns veem a si mesmos como "acima da lei". Há diversos motivos. Um cirurgião que conheci em Tel Aviv me disse –meio brincando, meio sério– que o mundo devia aos judeus ao menos 8 milhões de rins, em compensação ao nazismo.
O tráfico de órgãos motiva muitos boatos de difícil comprovação. Por exemplo, de moradores de ruas ou pessoas em situação vulnerável que são sequestrados, tem seus órgãos retirados e depois são enterrados como indigentes. A senhora entrou em contato com algum caso como este? Se eles existem, acredita que sejam maioria no esquema de tráfico de órgãos?
Muitos dos rumores são falsos, mas alguns estão baseados em fatos reais. Por exemplo, pude comprovar por meio de entrevistas e com a ajuda de um especialista em transplantes que o caso Pavesi [ocorrido em Poços de Caldas, MG, em 2000; os médicos envolvidos respondem na Justiça] realmente aconteceu. Este foi apenas um entre muitos casos de retirada de órgãos de pacientes antes de sua morte cerebral. Também há sólidas evidências de casos –na Argentina, no Brasil, na Turquia e nos Estados Unidos– de pessoas que fizeram cirurgias de rotina ou ginecológicas e tiveram um de seus rins retirado
A legalização da venda e compra de rins é uma saída?
Não. Mesmo um sistema regulado ainda predará os corpos dos jovens, dos pobres, dos socialmente marginalizados, dos economicamente e mentalmente vulneráveis para servir aos corpos dos velhos, dos mortalmente doentes e dos relativamente ricos. Ainda que algumas vidas sejam salvas, a maioria é apenas prolongada por transplantes que só foram possíveis por conta do desespero de quem não tem nada a vender, a não ser seu próprio corpo. Mesmo países onde a venda de rins é legalizada, como Irã e Filipinas, não conseguiram eliminar traficantes que se infiltraram no sistema legal.
Você chegou a conhecer Gedalya Tauber, que recrutava vendedores de rins em Pernambuco?
Sim, a primeira vez que tentei entrevistá-lo foi em 2004, quando vim ao Brasil para testemunhar na CPI sobre tráfico de órgãos. Mas ele não quis me receber. Voltei em 2005, para entrevistar vendedores de rins, e ele então aceitou conversar comigo na prisão. "Gaddy" foi muito aberto e me contou toda a sua história de vida, inclusive seus traumas como sobrevivente do Holocausto. Ele dizia que pensava estar servindo o seu país, fazendo o bem para Israel e os israelenses doentes.
O que achou da recente extradição dele o Brasil?
Fiquei chocada ao saber, quando ele foi recapturado em 2013, que Tauber havia fugido do Brasil em 2009 e estava se escondendo desde então. Porque ele me convidou para visitá-lo em Israel, em Natanya, em setembro de 2009! Fomos juntos a um restaurante, e ele me disse que estava tudo bem, que ele havia sido solto.
Na época, eu estava participando de um documentário, chamado "Kidney Pirates", sobre o tema. Disse a ele que, na véspera de nosso encontro, um dos seus "colegas" havia quebrado nossa câmera de vídeo e batido em nossa equipe. Ele me disse: 'Por que você não me ligou? Eu poderia ter protegido vocês! Além disso, esse cara que bateu em vocês é um idiota, ele não tem ética nem moral'.
"Gaddy" nos chamou para jantar na casa dele, para conhecer seus amigos. Mas, depois de ter sido atacada, eu não quis correr o risco.
Ou seja, se ele estava escondido, era à plena vista. Esse é um dos motivos que me fazem dizer que tráfico de pessoas para obter órgãos é um crime protegido.
A polícia brasileira considerava-o um dos líderes da rede de tráfico. É isso mesmo? Ou ele era uma peça facilmente substituível?
Ele era central para o esquema do tráfico em Recife, mas não era o líder da rede, que era Ilan Perry.
As autoridades brasileiras, como policiais, estão se esforçando para dar um fim ao tráfico de órgãos?
A polícia fez um bom trabalho no caso do Recife. Mas ela também levou 25 anos para prender e processar os cirurgiões corruptos no famoso caso de Taubaté : Rui Sacramento, Pedro Torrecillas e Mariano Fiore Jr, que foram sentenciados à prisão por remover órgãos de pessoas que ainda não haviam tido morte cerebral e distribuí-los em hospitais particulares do país.
Fonte: Folha de São Paulo