“O povo não pedia e não está pedindo reforma da Constituição, mas reforma, sim, de práticas governamentais, onde a corrupção está presente”. A afirmação é do ministro Carlos Velloso, em entrevista ao site da Amagis, para a série especial sobre os 25 anos da Constituição Federal.
Para Velloso, que presidiu o Supremo Tribunal Federal de 1999 a 2001, a Constituição, após 25 anos, não está envelhecida, mas, sim, com muita vida. Leia a entrevista:
Aos 25 anos, e após várias mudanças no Brasil e no mundo, podemos dizer que a Constituição Federal está envelhecida?
Não. A Constituição de 1988, a mais democrática das Constituições que tivemos, não está envelhecida. Ela completará 25 anos, no próximo dia 5 de outubro, com muita vida. Devo ressaltar que a Constituição foi elaborada antes de cair o muro de Berlim. Assim, em certos aspectos ela era atrasada. Entretanto, emendas constitucionais a modernizaram em importantes aspectos. E o Supremo Tribunal Federal, engajado na hermenêutica constitucional contemporânea, tem concorrido para torná-la mais eficaz mediante decisões progressistas. A Constituição é o que o juiz diz que ela é, proclamou, na Suprema Corte americana o justice Charles Hughes. A principal virtude da Constituição de 1988 é ser democrática, uma Constituição do seu tempo, que, para a sua feitura, concorreu toda a nação, todos os segmentos da sociedade, na Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988. Ela estabelece, com nitidez, a separação dos poderes. Por ser uma Constituição moderna, ela consagra formas de delegação legislativa. É que o Executivo, que administra, somente pode fazê-lo na forma da lei, dado que o ato administrativo nada mais é do que a execução, de ofício, da lei, na lição do incomparável e sempre lembrado Seabra Fagundes. Delegação legislativa, entretanto, sob a fiscalização do Congresso e do Judiciário, no controle de constitucionalidade. O Judiciário dela recebeu atribuições que não tinha, pelo que foi fortalecido. Ampliou-se a jurisdição constitucional nos seus dois aspectos, o controle de constitucionalidade, difuso e concentrado, e a jurisdição constitucional da liberdade, com as ações constitucionais, o habeas corpus, a ação popular, esta com o seu raio de ação ampliado, o mandado de segurança, inclusive o coletivo, o habeas data.
Uma nova constituinte atenderia às manifestações populares, na opinião do senhor?
O povo não pedia e não está pedindo reforma da Constituição, mas reforma, sim, de práticas governamentais, onde a corrupção está presente. O povo pedia e pede que se ponha fim à gastança desenfreada e sem critério do dinheiro público e que sejam os serviços públicos prestados de forma melhor, por exemplo, o serviço de transporte público. Quantos, nas grandes cidades, levam horas para chegar ao trabalho e, à tarde, tempo igual para retornarem às suas residências. Isso é uma maldade, pois os que mais sofrem são os pobres, que para se acomodarem recebem esmolas cognominadas de bolsas. As bolsas, distribuídas racionalmente, podem ser proveitosas. Mas distribuídas como esmolas, sem que se façam investimentos, que propiciem empregos, transporte público razoável, saúde, educação, desfibram as pessoas. O povo pedia e pede fim à violência, enfim, que a segurança pública seja tornada real. Sob o ponto de vista da teoria geral do Direito Constitucional, falar em constituinte exclusiva é um disparate próprio do denominado constitucionalismo bolivariano que certos “constitucionalistas” tupiniquins chamam de constitucionalismo latino-americano e que, na verdade, não passa de um meio para conquista do poder, ou sua perpetuação e a implantação de governos populistas.
Por que não se faz a reforma política por outras vias?
Reforma política depende de firme vontade dos poderes políticos, o Executivo e o Legislativo. Em alguns casos, ela exige emendas constitucionais. Na maioria das hipóteses, de normas infraconstitucionais, é dizer, leis complementares e leis ordinárias. O que ocorre é que está faltando – os portugueses diriam que está a faltar – vontade política, vontade de se fazer a reforma política. É aquela velha história: o povo tem o governo que merece, porque é o povo que escolhe os seus representantes, tanto no parlamento quanto no Executivo.
Aqui entra outra questão. É que a democracia tem pressupostos, o pressuposto econômico e o pressuposto social. Quanto ao primeiro, é necessário que o país esteja pelo menos no que é chamado de arranco para o desenvolvimento econômico. No que toca ao segundo, que o povo tenha um mínimo de conhecimento cultural. Aqui, temos um considerável número de analfabetos e de semialfabetizados, o que é um complicador. Onde esses pressupostos estão presentes, o regime democrático é eficaz. É fácil conferir. Mas não seria com atropelos à nossa democracia, que o nosso povo aprenderia a praticá-la plenamente. Vamos continuar educando a nossa gente, vamos continuar pregando que é preciso saber escolher os nossos representantes. Essa nossa tarefa, esse nosso testemunho, será benéfico.
Qual a influência que a realidade tem na Constituição?
Na verdade, pode-se distinguir, em qualquer país, duas constituições: uma, a constituição real, substancial, que se assenta nas realidades vivas da nação, na realidade econômica, social, histórica, religiosa, a realidade sociológica. A outra, formal, a constituição escrita, em termos jurídicos. A constituição formal há de estar ajustada à constituição real, substancial, a que se destina reger e regular. Se isso não ocorre, a constituição formal torna-se mera folha de papel. E como se faz esse ajuste? Nós, latinos, preferimos as emendas constitucionais por meio da ação do poder constituinte instituído ou derivado.
Já os americanos do norte, fazem esse ajuste por meio da atuação da Suprema Corte. A Constituição do Brasil, de 1988, já tem mais de 70 emendas. A Constituição norte-americana, de 1787, com mais de 200 anos, apenas 27 emendas. Mas será que a Constituição americana tem apenas 27 emendas? Não. Na biblioteca da Suprema Corte americana há uma prateleira repleta de acórdãos encadernados, acórdãos que consubstanciam mutações constitucionais, é dizer, ajustes da constituição formal à constituição real mediante a interpretação da Constituição pela Suprema Corte. Então, é possível concluir que a Constituição americana de 1787 não tem apenas 27 emendas, dado que, além dessas emendas, há um bom número de decisões da Suprema Corte que consubstanciam, mediante construções jurisprudenciais, mutações constitucionais.
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