O monopólio investigativo no Brasil significará “um evidente retrocesso no regime democrático, republicano e de combate ao crime organizado, tendo a sociedade brasileira como a maior prejudicada”.

Este é o entendimento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), em Nota Técnica publicada no “Diário Oficial da União” na edição desta segunda-feira (20/5).

O documento assinado pelo Procurador-Geral da República e presidente do CNMP, Roberto Gurgel, reforça a posição do órgão contra a aprovação da Proposta da Emenda à Constituição 37.

O CNMP reafirma que o Ministério Público tem prerrogativa constitucional de realizar investigações criminais; que não tem a pretensão de ser exclusivo nessa competência e que a atuação conjunta e a parceria entre os vários órgãos é a melhor fórmula.

“O Ministério Público não deverá ter ceifado do poder de buscar a verdade, através de procedimentos investigatórios”, afirma o CNMP, ao alertar sobre a gravidade e as consequências da eventual aprovação da proposta de emenda constitucional.

Eis a íntegra da Nota Técnica:

NOTA TÉCNICA Nº 2, DE 24 DE ABRIL DE 2013

Nota Técnica que expede o Conselho Nacional do Ministério Público, no exercício das competências previstas no art. 130-A, § 2o, I, da Constituição Federal, e no artigo 19, VI, do seu Regimento Interno, conforme deliberação deste Conselho na 5ª Sessão Ordinária, ocorrida no dia 24 de abril de 2013.

O CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO, no exercício das competências previstas no art. 130-A, § 2º, II, da Constituição da República, e no art. 5º, V, do seu Regimento Interno, elabora a presente nota técnica com o fim de reafirmar entendimento contrário aos termos da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, de 2011, e de oferecer, respeitosamente, subsídios e contribuições aos debates sobre o tema pelos Excelentíssimos Senhores Deputados Federais e Senadores da República.

1. Inicialmente, é necessário assentar que a resistência que vem sendo oferecida pelo Ministério Público brasileiro à aprovação da PEC 37 origina-se da profunda preocupação de todos os membros da instituição e de muitos setores da sociedade, com o estabelecimento do monopólio investigativo no Brasil, situação que, uma vez implantada, significará um evidente retrocesso no regime democrático, republicano e de combate ao crime organizado, tendo a sociedade brasileira como a maior prejudicada.

2. A realidade vem demonstrando que as iniciativas de melhor resultado no plano investigativo originaram-se de uma atuação integrada, articulada e harmônica entre as diversas instituições que receberam do sistema jurídico brasileiro atribuições de natureza investigativa, dentre estas, além da polícia judiciária e do Ministério Público, estão a Receita Federal do Brasil, o Banco Central, os Tribunais de Contas, as Comissões Parlamentares de Inquérito e outras.

3. Esta integração parte do pressuposto da corresponsabilidade dos agentes e impulsiona-os ao comprometimento com os bons resultados de sua atuação.

4.O trabalho em regime de exclusividade, ao contrário, conduz à desarticulação de ações que são, por natureza, interdependentes, complementares, voltadas à adequada persecução penal e ao esclarecimento da verdade. Esta desarticulação está entre as maiores causas, historicamente, dos altos índices de impunidade que afetam o sistema penal e a segurança pública. Este fato tem sido determinante, inclusive, do estabelecimento de diversas estratégias nacionais, originadas de Pactos de Estado firmados entre todos os agentes envolvidos, e cujos resultados já são concretos, mensuráveis e altamente positivos.

5. Sem embargo da atuação integrada que deve haver entre os órgãos, há algumas situações em que não se poderá afastar a investigação originária pelo Ministério Público, sob pena de restar inviabilizada ou extremamente dificultada a própria persecução penal.

6. Como órgão constitucionalmente habilitado para a propositura da ação penal, a cujos membros, em defesa da própria sociedade, o constituinte originário atribuiu independência funcional, inamovibilidade e vitaliciedade, o Ministério Público não deverá ter ceifado do poder de buscar a verdade, através de procedimentos investigatórios.

7. Não desconhece este Conselho Nacional do Ministério Público que a autoridade policial, também por atribuição do constituinte originário, deva presidir o inquérito. Também não se defende, ao contrário do que possa ter sido propalado para justificar posições favoráveis à PEC, que o Ministério Público queira dispor de poderes absolutos em sua atuação investigativa. Ou que, com base na independência funcional dos membros, seus atos não possam ser questionados, revisados ou invalidados, inclusive mediante os meios internos e externos de controle, nas hipóteses de ilegalidade ou abuso de poder. Defende-se, com toda a veemência, a imprescindibilidade de se assegurar os direitos e garantias fundamentais dos investigados.

8. Partindo desses pressupostos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem reconhecido a legitimidade dos poderes investigatórios do Ministério Público, na ausência dos quais a instituição ficaria sempre à mercê da polícia, criando-se uma relação de dependência que definitivamente não encontra amparo na Constituição da República. Estando o Ministério Público na condição de dominus litis, necessário que se lhe reconheça a possibilidade do uso dos meios necessários à propositura da ação penal. Em suma, cominando-lhe os fins, não poderia a Constituição subtrair-lhe os meios.

9. A propósito, mencionem-se como representativas da posição da Suprema Corte em favor dos poderes investigatórios do Ministério Público, as decisões proferidas no RE 535.478/SC (2008), no HC 93.224/SP (2008), no HC 89.837/DF (2009), no HC 103.877/RS (2010), no HC 97.969/RS (2011), HC 84.965 (2011), entre outros julgados. Colhe-se da ementa desse último julgado, da relatoria do Ministro Gilmar Mendes, que: “A celeuma sobre a exclusividade do poder de investigação da polícia judiciária perpassa a dispensabilidade do inquérito policial para ajuizamento da ação penal e o poder de produzir provas conferido às partes. Não se confundem, ademais, eventuais diligências realizadas pelo Ministério Público em procedimento por ele instaurado com o inquérito policial. E esta atividade preparatória, consentânea com a responsabilidade do poder acusatório, não interfere na relação de equilíbrio entre acusação e defesa, na medida em que não está imune ao controle judicial – simultâneo ou posterior. O próprio Código de Processo Penal, em seu art. 4º, parágrafo único, dispõe que a apuração das infrações penais e da sua autoria não excluirá a competência de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função. À guisa de exemplo, são comumente citadas, dentre outras, a atuação das comissões parlamentares de inquérito (CF, art. 58, § 3º), as investigações realizadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras – COAF (Lei 9.613/98), pela Receita Federal, pelo Bacen, pela CVM, pelo TCU, pelo INSS e, por que não lembrar, mutatis mutandis, as sindicâncias e os processos administrativos no âmbito dos poderes do Estado.”

10. Assentou o relator, invocando inclusive precedentes anteriores da Corte, que não é o caso de se aceitar que o Ministério Público substitua a atividade policial incondicionalmente. Defendeu, como assentado pelo Min. Celso de Mello quando do julgamento do HC 89.837/DF, que tal atuação justifica-se em “situações de lesão ao patrimônio público, [...] excessos cometidos pelos próprios agentes e organismos policiais, como tortura, abuso de poder, violências arbitrárias, concussão ou corrupção, ou, ainda, nos casos em que se verificar uma intencional omissão da Polícia na apuração de determinados delitos ou se configurar o deliberado intuito da própria corporação policial de frustrar, em função da qualidade da vítima ou da condição do suspeito, a adequada apuração de determinadas infrações penais”.

11. Como se vê, todo o esforço hermenêutico que tem sido realizado pelo STF acerca do tema da investigação pelo Ministério Público não tem como foco o próprio poder de investigar, que a Corte Constitucional considera implícito nas atribuições do dominus litis. Centra-se, isto sim, na definição dos respectivos contornos, já que a regra geral é a atuação da polícia judiciária, mediante instauração de inquérito, e porque a atuação eventual do MP, como condutor de uma investigação, reclama, como não poderia deixar de ser, a plena atenção às garantias fundamentais.

12. Reafirma este Conselho Nacional seu compromisso com a missão constitucional que lhe foi atribuída por esse Poder Constituinte derivado , de exercer, com independência, o controle externo da instituição e do mais estrito cumprimento das funções por seus membros, ao tempo em que pede vênia e invoca a sensibilidade desse Parlamento quanto à gravidade e às consequências para a sociedade brasileira, da eventual aprovação da proposta de emenda constitucional.

ROBERTO MONTEIRO GURGEL SANTOS

Presidente do Conselho