Entrou em vigor no dia 1º de setembro de 2013 o novo Código de Processo Civil português (doravante referido como CPCp/2013), aprovado pela Lei 41/2013, de 26 de junho de 2013, publicada nessa data no Diário da República 121, Primeira Série, páginas 3518 a 3665.[1] Nesta coluna, examinar-se-ão alguns aspectos do processo legislativo, dos antecedentes políticos da aprovação do CPCp/2013 e de mudanças específicas introduzidas com a nova lei. Sem compromisso de uma ordem sequencial de colunas, esse tema voltará a este espaço, sempre que oportuno. A razão é bem simples: não é possível realizar o inventário de mais de mil artigos do CPCp/2013 em 2 mil caracteres.

A primeira questão a ser enfrentada seria: Portugal realmente precisava de um novo Código de Processo?

O código revogado[2], que se aprovou pelo Decreto-lei 44.129, de 28 de dezembro de 1961, sofreu profundas modificações em 1967 e, em seguida, diversas leis alteraram seu conteúdo, marcadamente nos anos de 1977, 1979, 1985, 1995, 1996, 2000, 2003, 2007 e 2008. Mesmo com o projeto do CPCp/2013 em tramitação na Assembleia da República, em 2013 aprovaram-se duas leis que alteraram o regime do processo de inventário e da mediação civil, comercial e pública. As causas de tantos câmbios legislativos podem ser atribuídas à Revolução de Abril, que derrubou o governo ditatorial do professor Marcelo Caetano (sucessor do presidente do Conselho de Ministros António de Oliveira Salazar); à Constituição da República de 1976, que, por efeito de seus dispositivos, sofre permanentes revisões constitucionais; à entrada de Portugal na Comunidade Europeia (hoje União Europeia), o que tem exigido sucessivas mudanças em sua legislação interna, a fim de adaptá-la às frequentes diretivas da Comunidade (depois União).

Outro ponto digno de nota é o sentimento social de que a Justiça portuguesa é lenta e incapaz de atender às expectativas populares de isonomia. Ao CPCp/1961 foi atribuída certa responsabilidade por esses problemas, o que também justifica a enorme quantidade de leis que o modificaram nos últimos 50 anos. De fato, esse foi um dos argumentos utilizados pela ministra da Justiça de Portugal Paula Teixeira da Cruz ao defender a aprovação do CPCp/2013 na Assembleia da República, quando sustentou que “as alterações profundas” levadas a efeito pelo código “não podem ser inviabilizadas por questiúnculas político-partidárias ou por interesses corporativos”. Em complemento, a ministra enfatizou que: “Temos de encarar de forma resoluta a falta de produtividade do sistema de justiça e o significativo aumento das pendências”.[3]

Se esse sentimento corresponde à realidade, é algo sobre o que não se pode emitir juízos assertivos, até por absoluta falta de elementos objetivos para se encampar tal afirmação. Uma coisa, no entanto, é certa: essa não é uma percepção exclusivamente portuguesa. A celeridade judicial é um dos temas comuns à maior parte das nações ocidentais, quase sempre premidas pela dialética que se forma com o confronto entre garantias do réu e direitos do autor.

No entanto, parece que a razão determinante para essa mudança tão profunda no quadro legislativo foi o compromisso português com reformas no sistema judiciário e processual, a fim de atender às exigências das autoridades econômicas e monetárias da União Europeia. Como sempre, a segurança jurídica (dos investidores e dos credores), a previsibilidade das decisões judiciais (em favor desses dois grupos) e a celeridade das ações executivas (idem, ibidem) foram os argumentos manejados para dar lastro à aprovação de um novo Código de Processo Civil.

É de se recordar a situação econômico-financeira dramática que vive Portugal, especialmente após o último governo do Partido Socialista, cujo primeiro-ministro foi o engenheiro José Sócrates. No final de sua gestão, Sócrates firmou, em nome da República Portuguesa, com o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional, um “Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Econômica”, datado de 17 de maio de 2011.[4] Nos termos desse documento, a reforma processual era, ao lado das privatizações, da reestruturação dos serviços públicos e do aperto orçamentário, um dos pontos centrais na agenda do Governo português. Os objetivos, nesse campo, eram assim descritos:

“Melhorar o funcionamento do sistema judicial, que é essencial para o funcionamento correcto e justo da economia: (i) assegurando de forma efectiva e atempada o cumprimento de contratos e de regras da concorrência; (ii) aumentando a eficiência através da reestruturação do sistema judicial e adoptando novos modelos de gestão dos tribunais; (iii) reduzindo a lentidão do sistema através da eliminação de pendências e facilitando mecanismos de resolução extra‐judiciais”.

Quanto ao Código de Processo, o memorando prescrevia que:

“7.13. O Governo irá rever o Código de Processo Civil e preparará uma proposta até ao final de 2011, identificando as áreas‐chave para aperfeiçoamento, nomeadamente (i) consolidando legislação para todos os processos de execução presentes a tribunal; (ii) conferindo aos juízes poderes para despachar processos de forma mais célere; (iii) reduzindo a carga administrativa dos juízes e; (iv) impondo o cumprimento de prazos legais para os processos judiciais e em particular, para os procedimentos de injunção e para processos executivos e de insolvência”.

De uma “revisão” do CPCp/1961, passou-se a um novo código. Se colocado o problema sob a óptica puramente técnico-processual, a resposta quanto à necessidade de um código inteiramente novo pode ser oferecida após o conhecimento de um dado muito relevante: o quadro comparativo dos artigos do código de 1961 e do código de 2013.

Esse quadro, que se confeccionou no âmbito do Centro de Estudos Judiciários (órgão de formação dos magistrados do Poder Judiciário e do Ministério Público de Portugal), é revelador da enorme quantidade de artigos do CPCp/1961 que se manteve literalmente no CPCp/2013.[5]

Os princípios processuais fundamentais do processo civil português foram conservados: a) proibição de autodefesa; b) garantia de acesso aos tribunais; c) necessidade do pedido e da contradição; d) igualdade das partes. O novo Código de Processo introduziu o princípio ou o “dever de gestão processual” (art. 6º), segundo o qual cabe ao juiz, sem prejuízo da iniciativa das partes, “dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável”.

Além disso, criou-se o “princípio da cooperação” (artigo 7º), que vincula as partes, os juízes e os advogados, em ordem a assegurar a cooperação entre si, para que se obtenha, “com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio”. Como decorrência desse princípio, o juiz poderá, a qualquer momento, “ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência”.

Dois outros princípios foram acrescidos. O primeiro é o da “boa-fé processual”, segundo o qual “[a]s partes devem agir de boa -fé e observar os deveres de cooperação” (artigo 8º) resultantes do quanto fixado no artigo 7º do CPCp/2013. O segundo é o “dever de recíproca correção” (artigo 9º), que exige de todos os que atuam no processo o dever de se comportar corretamente entre si, sendo que, nas relações entre juiz e advogado, existirá um “especial dever de urbanidade”. Sendo certo que, ainda de acordo com o artigo 9º, “nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessária ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra, ou do respeito devido às instituições”.

Outras mudanças na lei processual portuguesa em vigor dizem respeito ao combate aos expedientes dilatórios.

O artigo 528º, que trata da “taxa de justiça”, um equivalente às custas judiciais brasileiras, devida pelas partes litigantes, em seu item 7, trouxe uma espécie de circunstância agravante no cálculo desse valor:

“7 - Para efeitos de condenação no pagamento de taxa de justiça, consideram-se de especial complexidade as ações e os procedimentos cautelares que:
a) Contenham articulados ou alegações prolixas;
b) Digam respeito a questões de elevada especialização jurídica, especificidade técnica ou importem a análise combinada de questões jurídicas de âmbito muito diverso; ou
c) Impliquem a audição de um elevado número de testemunhas, a análise de meios de prova complexos ou a realização de várias diligências de produção de prova morosa”

A condição de ação de “especial complexidade” deve ser levada em consideração na definição do quantum da taxa de justiça, evidentemente para majorá-la.

O regime das cautelares também foi alterado. O antigo princípio da acessoriedade das cautelares mostrou-se bastante mitigado: o juiz, a requerimento da parte, na decisão que decrete a liminar, “pode dispensar o requerente do ónus de propositura da ação principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio” (artigo 369º, item 1).

Os tribunais de segunda instância passam a ter poderes de revisão de matéria fática, sob certas circunstâncias, para além da tradicional função cassatória (combinação de diversos artigos, como o 636º, 640º, 662º e 663º). Especificamente em relação ao Supremo Tribunal de Justiça (equivalente parcial de nosso Superior Tribunal de Justiça), tem-se que “[a]os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido”, essa Corte aplicará “definitivamente o regime jurídico que julgue adequado” (artigo 682º, item 1). No entanto, é possível a alteração do decisum do tribunal recorrido, quanto à matéria de fato, em caráter excepcional, na hipótese do item 3 do artigo 674º:

“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

No que se refere à execução, os títulos executivos advindos de documentos particulares perderam essa condição, salvo quanto aos títulos de crédito e aqueles que, por disposição especial de lei, venham a receber força executiva. É o que se lê do artigo 703º, cuja epígrafe é “Espécies de títulos executivos”:

“1 — À execução apenas podem servir de base:
a) As sentenças condenatórias;
b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação;
c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo;
d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.
2 — Consideram -se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante.”

As críticas ao novo CPCp partiram de diversos setores da sociedade portuguesa. A Ordem dos Advogados, por seu polêmico e combativo bastonário, Marinho Pinto, guarda profundas reservas sobre a lei, por ele considerada um “veemente descalabro legislativo”, seja por ocultar os verdadeiros problemas da Justiça, seja por aumentar os poderes judiciais. Haveria um deliberado objetivo de “afastar os cidadãos dos tribunais”.[6]

O Fórum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), uma agremiação de importantes organizações não governamentais, sindicatos, federações e coletivos, também expressou grande contrariedade ao novo código, em face do tratamento dado pelo CPCp/2013 à audiência prévia nos conflitos coletivos.

A despeito de ser um projeto concebido na gestão socialista do engenheiro José Sócrates, o novo Código de Processo Civil foi apresentado pelo primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, que se mantém, com grandes dificuldades, graças a uma coalização de partidos conservadores. Uma das reclamações dos socialistas, quando dos debates sobre o projeto na Assembleia da República, recaía sobre a suposta apropriação do governo de Passos Coelho de todo o trabalho de codificação da era Sócrates.

Muitas das soluções apresentadas na codificação processual portuguesa, ora em vigor, já se encontram previstas no atual Código de Processo Civil de 1973. O CPCp/2013, salvo algumas exceções, não servirá como fonte de inspiração muito fecunda a nosso Direito. A não ser que se pretenda importar a tal exótica regra sobre a punição dos advogados por prolixidade nas petições ou o redundante princípio da cooperação.

Como a matéria é vasta e, ao estilo do que já se advertiu na abertura da coluna, não é possível expungir toda a reforma processual portuguesa neste espaço, fica ao leitor o convite para o exame direto das fontes, todas indicadas nas notas de pé de página. Especificamente sobre reforma de códigos, deixa-se a lembrança do quanto foi escrito na coluna Reforma dos Códigos deve ser democrática e pluralista.

Por último, uma nota de ironia: a leitura dos artigos do CPCp/2013, transcritos em sua literalidade, deixa patente que nossos irmãos portugueses efetivamente não adotaram a Reforma Ortográfica. Seria o caso de revermos também essa incompreensível e contraditória alteração de nosso idioma, que nos levou o trema e não nos trouxe paz na correção vernacular?

Fonte: Conjur