A necessidade de uma reforma administrativa que modernize o Estado sem retirar direitos dos servidores públicos é o tema do artigo “A reforma administrativa não pode subtrair direitos”, de autoria do presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), juiz Frederico Mendes Junior.
Publicado no jornal Correio Braziliense, na edição desta quinta-feira, dia 9 de outubro, o texto do magistrado defende que o Brasil precisa de uma reforma administrativa voltada para o futuro, que modernize processos, incorpore tecnologia e estabeleça mcanismos de transparência que coíbam o desvio de dinheiro e a improdutividade estrutural. No entanto, o autor afirma que "o progresso não virá da precarização de quem sustenta o Estado nos próprios punhos".
Para Frederico Mendes Junior, o fortalecimento do serviço público depende da valorização dos profissionais que garantem o funcionamento do Estado e da adoção de medidas que aprimorem a gestão pública sem comprometer garantias constitucionais.
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A reforma administrativa não pode subtrair direitos
Poucas discussões têm se repetido com tanta frequência na agenda política do país neste século quanto a da reforma administrativa, que, entra governo, sai governo, volta aos holofotes, para sumir em seguida. Emergiu na primeira passagem de Lula pelo Palácio do Planalto, vingou timidamente com Dilma Rousseff, foi aventada por Michel Temer e chegou a tramitar sob Jair Bolsonaro. Em todos os casos, a mesma razão do insucesso: os projetos avançavam sobre direitos dos servidores — o que é inaceitável.
Lamentavelmente, parece ser de novo essa a tônica do texto elaborado pelo grupo da Câmara dos Deputados coordenado pelo deputado federal Pedro Paulo (PSD-RJ). Não obstante, as boas intenções do relator, como as tentativas anteriores, essa insiste no erro de foco ao culpabilizar os trabalhadores do Poder Público pelos gargalos que impedem a melhoria dos serviços oferecidos aos cidadãos. Na realidade, as dificuldades são de outra ordem.
Todos os debates da reforma administrativa foram sepultados no Congresso Nacional por pressão da sociedade, que percebeu a manobra para blindar as verdadeiras causas do mau uso dos cofres públicos. As mesmas vozes com certeza se levantarão contra essa que já se demonstra uma espada de corte duplo: de um lado, viola garantias dos servidores, de outro, diminui benefícios colhidos pela população.
Recursos humanos são imprescindíveis para o funcionamento do Estado, pois asseguram préstimos essenciais — desde o médico do posto de saúde da família de um bairro afastado até o professor que educa crianças e jovens, sem falar do serventuário que, no balcão do fórum, representa a primeira face da Justiça. A presença desses profissionais é determinante para a efetividade das políticas públicas, a despeito das trocas de governo, na medida em que provê estabilidade e segurança à atuação das instituições.
No episódio dramático das enchentes que assolaram o Rio Grande do Sul em 2024, por exemplo, foi a perseverança de servidores públicos, com dedicação ininterrupta, que permitiu o salvamento de incontáveis vidas. No momento crítico, eles se empenharam na mitigação dos impactos da tragédia, com magistrados participando da Justiça Itinerante Emergencial, em deslocamentos até os abrigos onde se encontravam as famílias atingidas.
Durante a pandemia de covid-19, iniciada em 2020 e cujos efeitos perduram ainda hoje, não fosse a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) — que reconheceu a competência dos entes federativos para a adoção de medidas de isolamento —, muito mais pessoas teriam sucumbido. Com essa decisão, possibilitou-se que os trabalhadores do Poder Público, sobretudo médicos e enfermeiros do Sistema Único de Saúde (SUS), pudessem proteger os vulneráveis.
O financiamento do Orçamento público é um problema contábil que demanda resolução, obviamente; todavia, não existe urgência que justifique prejuízos àqueles que jamais hesitam em arriscar a saúde e o bem-estar para fazer valer os direitos de todos.
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Edson Fachin, afirmou que a proposta lhe provoca um "sentimento de perturbação" e que o Judiciário não irá aquiescer "em qualquer tipo de reforma que vá tolher a autonomia e a independência da magistratura no Brasil". A avaliação é lúcida e dá uma dimensão da reação às possíveis tentativas de afronta à separação dos Poderes estabelecida pela Constituição de 1988.
Como bem disse o presidente do STF, uma reforma "efetivamente merecedora desse nome", que seja "de todo o Estado, de todos os Poderes", terá a participação do Judiciário — a única instância com legitimidade para propor modificações nas prerrogativas dos magistrados e na organização dos tribunais.
A controvérsia, portanto, não está na necessidade da reforma administrativa, mas na repetição de três erros: equívoco do propósito (subtrair garantias dos servidores), indiferença à consequência (ineficácia no atendimento à população) e vício de iniciativa (nenhuma proposição legislativa de um Poder pode implicar restrições para outro).
O Brasil precisa de uma reforma administrativa voltada para o futuro, que modernize processos, incorpore tecnologia, profissionalize a gestão e estabeleça mecanismos de transparência que coíbam o desvio de dinheiro e a improdutividade estrutural. O progresso não virá da precarização de quem sustenta o Estado nos próprios punhos. O rumo deve ser corrigido, ou seguiremos tropeçando na mesma pedra. Uma administração enfraquecida, mais do que uma máquina com defeito, é um risco à própria democracia. *Frederico Mendes Junior