por Arnaldo Malheiros Filho

É importante distinguir dois aspectos da questão: em primeiro lugar, é preciso deixar claro que o ajuizamento de um processo é informação pública, ao alcance de qualquer pessoa e — como tudo o mais que envolve um candidato, de sua aparência física a sua opção ideológica — é passível de ser tomado em conta pelo eleitor para sua escolha; imprensa, ONGs, blogs prestariam relevante serviço público com essa divulgação. O segundo ponto é relativo ao acerto ou não da publicação de uma \"lista suja\" por associação de juízes e, nesse caso, minha opinião é negativa.

A percepção pública é que uma associação de magistrados é a reunião das pessoas que exercem o poder judiciário, daí a enorme autoridade moral, confundível até mesmo com a instituição que os associados encarnam.

Ora, como podem aqueles que têm a missão de julgar emitir um juízo de valor antes desse pronunciamento e da própria defesa? E, por mais que o neguem, emitem — sim! — juízo de valor, que se traduz no adjetivo \"suja\" que acabou pespegado à tal lista.

Não é função da AMB dar informações ao eleitorado. Seu gesto não foi, portanto, puramente informativo. Na verdade, o juízo de valor negado está embutido na mensagem de que os magistrados brasileiros reprovam as candidaturas de acusados que não foram julgados ou dos que nem sequer puderam se defender. É um passo político em direção à inelegibilidade. Nas trevas do regime militar, o general Médici sancionou lei complementar que tornava inelegíveis — \"enquanto não absolvidos\" — os meramente acusados por alguns crimes, como de corrupção ou o delito então criado de argüir inelegibilidade por engano, se o erro fosse \"grosseiro\".

Todos os que tinham um mínimo de apreço ao direito bradavam contra essa violência da ditadura, derrogada com seu declínio. E eis que agora a idéia ressurge, mais violenta ainda.

De fato, a lista engloba acusações por todo e qualquer delito, bem como simples ações civis de improbidade, por fatos nem sequer criminosos.

Rebaixam-se os juízes quando conferem tanto poder a uma das partes no processo, o Ministério Público. Basta que seja ele o requerente para que o ferrete caia sobre o demandado, havendo ou não imputação de crime.

Tomemos um exemplo: Luiza Erundina, uma das pessoas mais honestas que já ocuparam cargo público em São Paulo, foi processada pelo Ministério Público — sim, por ele mesmo — porque firmou um contrato, sem ônus para os cofres públicos, que permitiu a reforma do autódromo de Interlagos em troca de publicidade na pista e colocou a cidade no calendário da Fórmula 1, com enormes benefícios. Ficha suja?

Esse termo é fascistóide. O que é ficha suja? Acusação sem defesa, anotação no Serasa, condomínio não pago e protestado em cartório, sussurros de \"não sei, não\", é muito fácil sujar a ficha de alguém. Como disse Paulo Sérgio Leite Fernandes, isso vem da tosca idéia de que, \"onde há fumaça, há fogo\", e, acrescento, \"não basta à mulher de César ser honesta, tem que parecer honesta\", ou seja, devemos julgar as pessoas pelas aparências, não pelo que são. E são juízes os proponentes...

Escravos aos leões, enforcamentos em praça pública, autos-de-fé com gente ardendo na fogueira sempre foram, ao longo da história, campeões de audiência. Nossa sociedade midiática só aprofunda o sucesso das execuções sem julgamento e sem \"formalidades\" que protejam os direitos individuais.

Na verdade, o patrocínio da AMB à divulgação da lista — obtida com a colaboração de seus associados, que usaram recursos públicos para atender a entidade — prenuncia um movimento para dar a uma só parte, o Ministério Público, o poder absoluto e unilateral de proibir o povo de escolher certos candidatos. Isso atropela, de uma só vez, as garantias constitucionais do direito de defesa, do devido processo legal e da presunção de inocência. Dessa tutela, tão própria das ditaduras, ninguém precisa.

Democracia se faz com escolhas populares, fundadas ou infundadas, boas ou más. É um regime muito ruim, reconheceu Churchill, pena que não inventaram outro melhor.

Melhor deixar as decisões políticas nas mãos do povo que dos sábios.

Artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo deste sábado (27/7)


Arnaldo Malheiros Filho: é advogado criminalista e presidente do Conselho Deliberativo do Instituto de Defesa do Direito de Defesa.

Fonte: Consultor Jurídico