“ A esperança é o alimento da alma, que se mistura ao veneno do medo”
A frase, célebre na Revolução Francesa, do poeta, filósofo e historiador iluminista, Voltaire, autor da teoria da liberdade de ser e pensar, e “do julgamento justo, pelas leis”, centrou movimentos, os primeiros, de contra-ação ao conservadorismo da década de setenta, oposto à automação da indústria.
O espírito da Revolução Industrial do final do século XIX havia induzido o emprego da computação, do uso dos circuitos eletrônicos – a informação codificada pela eletricidade – como fator de fomento da produção.
Rebites, montagem, “praxis” do “chão-de-fábrica”, cederiam, nos anos setenta, à robótica informatizada, à industrialização computadorizada, à telemonitorização da produção em série; os espaços cativos do “mundo operário”-manufaturista seriam “duramente atingidos”, proclamava a histeria.
A frase voltairiana tornou-se instrumento filosófico do combate à idéia de que o robô – o “mal da mão-robótica” e a “faca da amputação” (o “termo do terror”), eliminaria a “arte-artesã” da produção.
Anos antes, a telemetria já media dados funcionais-orgânicos dos primeiros astronautas no espaço; enchia computadores de Houston/USA e, com eles, os olhos da “ciência-da-terra” conferia batimentos cardíacos, pressão arterial, dos “homens do espaço”. A telemetria substituiu, amputou, a “mão” da medição pneumática do “chão-de-fábrica”.
E, assim, o robô, os chips, as telas “do mundo novo” aterrorizaram as relatorias do “senso humano”, fazendo pulularem as advertências sobre o “cenário negro do emprego”, que “viraria pó”; o argumento foi às ruas e às esquinas das discussões.
Adiantou pouco. O robô se instalou, sereno, frio, na linha de produção, sob o anátema filosófico de Voltaire.
A telemetria tirou as correias da medição pneumática. Os rebites foram programados previamente, por tempo, por espaço, por locação.
E, a automação (da indústria) dinamizou a produção, reduziu o tempo da “resposta” das linhas de montagem; os produtos se multiplicaram; o custo caiu; o consumo explodiu. A mão-de-obra, “injustamente substituída”, se reestruturou, foi submetida a re-educação, e se re-empregou em novas opções de trabalho; controlou “o robô”, e, paradoxalmente, aderiu ao computador.
O “mundo da indústria” então se re-harmonizou” e “casou com a robótica-infiel”. Década seguinte – anos oitenta. Cenário novo. Sistemas Financeiros. “A máquina-do-mal de volta” !
De novo a resistência conservadora. Novamente o medo, o pavor.
Agências. Escriturários. Aprendizes do “ofício bancário”. O velho “fator humano” sob “nova ameaça”. Tudo de “novo no mundo velho”.
Agências ? “Viraram pó”. O “SPB-Sistema de Pagamentos” eletrônico montou as “terríveis agências virtuais”; veio o “smart-card”, que demitiu “o caixa”. O “escritutário foi destruído”. O “computador venceu”. O “e-banking” se instalou. Reduziu custos da produção, dinamizou o financiamento, capilarizou o sistema de distribuição do dinheiro. Fomentou a riqueza e viabilizou o consumo, reabrindo postos de trabalho na produção. “Casou com a indústria”. E o “mundo mudou” (“de novo mudou” !).
À automação da indústria, do sistema financeiro, seguiu o dos serviços – até a medicina; a telemedicina, que começara com a “quase-metafísica conexão dos astronautas”, trouxe a magia da teleeletrocardiografia do novo século; ambulâncias de antendimento medem, hoje, pressão arterial à distância; postos de saúde do sertão do Ceará investiram em tecnologia e dispensam o custo-alto da cardiologia presencial. Sinais da “bomba mística-do-lado-esquerdo do peito” saíram “do ambiente da coleta” e entraram nos “canais de voz” da telefonia móvel, sob a forma de sinais eletrônicos; chegam aos data-centers de SP, MG, em frações de segundos, onde médicos de alta especialização orientam à distância doentes e tratamentos. O custo do atendimento especializado caiu.
O mundo público copiou. O “e-gov” brasileiro gostou. Certidões (INSS, Receita Federal), declaração de renda pela Internet, formulários de ocorrências policiais à distância, inquérito policial sem papel, digitalização dos arquivos estratégicos da marinha, automação do controle aéreo, viraram o “novo must” da tecnologia do Estado.
A Justiça entrou na “idéia da automação”.
Primeiro, a eleição eletrônica. “Bits da cidadania” aposentaram os “votos de papel”. A apuração eletrônica pulverizou “a realidade do passado”. Horas, minutos, tornaram-se novo “padrão de exigência da eficiência eleitoral”. CPDs dos TREs viraram o centro do processo eleitoral. A UE-Urna Eletrônica encantou o mundo; o país “dos paradoxos” deu novo salto “com a vara eletrônica da votação sem papel”.
Um roteiro, voltairiano-filosófico, da nova “vitória dos fatos”; da “esperança sobre o medo”.
Agora, a automação do processo judicial.
65 milhões de processos judiciais-físicos, “de papel”; “cases” do meio social, que deposita outros 25 novos na disputa, a cada ano.
650 mil advogados-inscritos/OAB; aumentam 15% a cada ano (90 mil novos profissionais a cada ano); profissionais do peticionamento em representação social.
Tudo no papel; preto, “da tinta”, no “branco alvo das folhas”. “Justiça em folhas” ! Justiça de papel (literal, das árvores). Prédios, pessoas, papéis: a “PPP-da-Jurisdição ! O “Peso da burocracia” !
Hora de mudar. Hora de otimizar. Hora de automatizar.
A justiça brasileira decidiu. Quis o computador. Ele entrou, pela porta do lado, mas entrou. “Vive”, hoje, com os processos “de papel”. Já está lá, no centro do serviço judiciário.
“Budgets” orçamentários cresceram. Plantas computacionais foram adquiridas pelos Tribunais. Departamentos de TI-Tecnologia da Informação assumiram relevância nos organogramas do Judiciário.
E a automação prossegue. Agora, no seu sentido máximo: o da otimização da relação custo x benefício da própria jurisdição, através da supressão do papel-vegetal como matriz física do processo (“em nome das árvores” - também, por que não ?).
“O Processo da mudança começou”. Não é projeto. É fato.
As estatísticas pontuam, do “Oiapoque ao Chuí”.
27 Tribunais Estaduais já adotaram o “Sistema CNJ” de processo eletrônico, em pilotos experimentais (Varas e Juizados).
Tribunais Federais e do Trabalho já instalaram seus primeiros sistemas de processamento de feitos sem papel em primeira e segunda instância.
Diários da Justiça eletrônicos terminaram, em treze Tribunais – a começar da Suprema Corte e do Superior Tribunal de Justiça – a vigência do papel clássico dos órgãos oficiais para publicidade dos atos da Justiça.
A estatística robustece, a cada dia, as discussões “da novidade”.
Milhares de processos totalmente sem papel já tomam corpo em jurisdições de prestígio. O Fórum da Freguesia do Ó, em SP, programado para ser instalado com 120 pessoas, totalmente em papel, terminou inaugurado com Secretaria Única, com 32 servidores, 5 Varas comuns, 6 juízes – família, cível, crime – e 6.500 processos totalmente sem papel em apenas 60 dias de funcionamento.
O TJSC extinguiu jurisdições de execução fiscal no entorno da Comarca de Lages, substituindo-as pela Vara “virtual” de Lages, com processos fiscais totalmente eletrônicos.
A Vara de Família de Florianópolis, sem papel, foi instalada quase ao tempo em que se inaugurou o fórum eletrônico de Manaus, na Amazônia, com mais de cinco mil processos totalmente sem papel (varas-crime-precatórias-família, totalmente eletrônicas).
A região de São Gonçalo, no RJ, recebeu, há mais de dois anos, o seu Juizado Especial Federal totalmente eletrônico, com mais de cinco mil processos sem papel, em andamento.
Em Minas Gerais, Juizados Especiais Eletrônicos foram instalados na Capital – contabilizando mais de uma dezena de milhares de processos sem papel - e experiência idêntica de processo eletrônico se iniciou na Vara de Registros Públicos, para habilitações de casamento, totalmente eletrônicas, processadas em frações de segundos e não mais em dias de idas-e-vindas de certidões e papelório.
Alvarás de soltura eletrônicos – sem papel – foram implantados na VEC-Vara de Execuções Criminais de Belo Horizonte, conectando, pela “mística-quase-metafísica do ar”, 15 estabelecimentos penais ao “botão-eletrônico, da soltura”, fazendo com que o maior volume de solturas do Estado não mais se processe por horas, mas por minutos.
Nos juízos do processamento eletrônico dos feitos, a estatística é de redução de até 2/3 do tempo total de tramitação dos feitos – com a derrocada das etapas burocratizantes, da carimbação, da autuação, da entrada-saída, da vista-sucessiva, e dos prazos somados de manipulação dos autos; foram todos derrotados pela automação, que vence o tempo da burocracia e extingue o “tempo inútil” da tramitação.
O DJe-Diário da Justiça Eletrônico do TJMG já atinge, em menos de sessenta dias de funcionamento, a espantosa “cifra” de 20 mil acessos por dia.
O processo eletrônico é mais veloz, mais célere, menos burocrático; permite a juntada de provas inéditas, como a digilitalização de fatos do cotidiano, a exonerar pautas de audiência, e a eliminar termos e ofícios da formalização dos atos.
Para a tristeza da reação-clássica conservadora, ele é, especialmente, inclusivo, pois permite que coeficientes espaciais históricos sejam rompidos em favor justamente dos menos favorecidos – como advogados e partes do interior do país (a população de maior número), que, classicamente excluídos da atuação em segundo grau, podem, agora, atuar, e não só consultar, de seus próprios pontos de origem, processos eletrônicos em curso nos Tribunais (da revisão), e Superiores, situados nas capitais, a qualquer hora do dia ou da noite, neles peticionando e funcionando sem qualquer custo acrescido; lembrando o que não se deve esquecer: que a lei (a LIP-Lei de Informatização do Processo Eletrônico/Lei 11.419/2006) impõe obrigação pública ao Estado-Jurisdição, de instalar, em cada ponto de implantação do processo eletrônico, meio de acesso gratuito ao processo eletrônico (uma “essential facility” da jurisdição eletrônica).
Contra fatos, não há argumentos. Contra números, não há retórica.
A reação à inovação continuará, porque democraticamente franqueada, além de habilitada, como fator histórico conhecido.
Ela compõe o cenário da mudança e integra o traço (filosófico) do conservadorismo.
Cumpre, em suma, o papel – físico-quase – da história clássica da automação.
Lá na frente, no entanto, quando o “mundo dos fatos eletrônicos” (da Justiça) se unir, em matrimônio “inevitável”, ao “o das teorias passadas”, a velha máxima de Voltaire será de novo lembrada; aí, já não mais como alerta, mas como expressão de que o poder “da esperança sobre o medo” terá conferido, também à Justiça, um novo papel; mais nobre, que o que extrai Ela hoje das árvores.
Sobre o autor: Desembargador Fernando Neto Botelho
(*)* Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (8ª. Câmara Cível)
* Assessor Especial e Representante de TI-Tecnologia da Informação da Presidência do TJMG junto ao CNJ-Conselho Nacional de Justiça.
* Membro do CGTI-CNJ-Comitê Gestor de Tecnologia da Informação do Conselho Nacional de Justiça
* MBA em Gestão de Telecomunicações, pela Fundação Getúlio Vargas/Ohio University-USA (2001/2002).