A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, estabelece como fundamentos a prevalência dos direitos humanos, o respeito à cidadania, a dignidade da pessoa humana e a tutela dos direitos e garantias individuais, o que se aplica, indistintamente, aos cidadãos apenados e presos de nosso país. No entanto, o sistema carcerário brasileiro, com raríssimas exceções, evidencia, de longa data, a abissal distância entre a existência formal dos preceitos normativos e sua eficácia concreta, como meios de contenção do arbítrio estatal sobre o indivíduo.
A visível dissociação entre a existência formal e a eficácia material das normas legais e constitucionais se deve, fundamentalmente, à histórica visão segregacionista e retributiva da pena, a despeito da falácia pseudo-humanista da ressocialização, amplamente disseminada.
E mais, certo é que os processos de cominação, aplicação e execução de penas em nosso país, quase sempre, refletem a incessante busca da ordem, disciplina e segurança sociais, deixando para um plano secundário a satisfação das garantias mínimas dos presos.
Exemplo disso, a equivocada alteração legislativa introduzida pela Lei n. 10.792/03, que retirou da Lei de Execução Penal a previsão da avaliação técnica do preso, através do parecer da Comissão Técnica de Avaliação (C.T.C.), instrumento de relevante importância para se saber a resposta que o preso vem dando aos programas individualizadores, às oportunidades que lhe têm sido oferecidas durante a execução de sua pena.
O parecer da C.T.C. - tal como era previsto na lei de execução penal (na redação anterior do artigo 6° da LEP)- não se centrava na avaliação do ato criminoso e, muito menos, no prognóstico da reincidência. Sua natureza consistia na avaliação da resposta que o preso dava ao tratamento que lhe era dispensado no estabelecimento penal. Daí, a importância do trabalho da comissão técnica de classificação, lamentavelmente suprimido de nossa legislação de execução penal, porque conhecedora da realidade de cada preso, incumbia à comissão definir as metas a serem cumpridas para recuperação individual de cada um deles.
Noutro giro, tramita no Congresso Nacional projeto de lei que traz alterações na Lei de Execução Penal e prevê a reintrodução do exame criminológico para instrução de pedidos de benefícios legais. Outro equívoco legislativo se avizinha, porque tal instrumento consiste numa perícia acerca da dinâmica do ato criminoso, que mais tem a ver com a probabilidade da reincidência e não se presta para a necessária avaliação do cotidiano do preso no estabelecimento penal.
Acrescente-se, mais, o problema não está unicamente em saber como foi o histórico do preso e quais são suas características psicológicas associadas à prática delitiva, à época dos fatos, mas, sim, saber como ele atualmente está lidando com tudo isso, como vem direcionando sua conduta frente a toda sua bagagem pessoal, consideradas as limitações do cárcere. Para isso, inegavelmente, o instrumento mais eficaz e adequado é o parecer da comissão técnica de classificação, e não o cogitado exame criminológico.
Em resumo, o ideal é que a referida iniciativa legislativa seja objeto de maiores reflexões, antes de finalmente aprovada, e se faça de maneira mais prestável aos verdadeiros propósitos ressocializadores da pena, de modo a reintroduzir, obrigatoriamente, o parecer da C.T.C. no texto legal, quando se tratar da previsão de concessão de benefício para o preso, e mais, em alguns casos, considerando a natureza e a gravidade do crime cometido, que se faça obrigatório, também, o exame criminológico. Destarte, a lei de execução penal passará a ser mais condizente com os fundamentos constitucionais citados.
O desembargador Herbert Carneiro atua na 4ª Câmara Criminal do TJMG; é vice-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e vice-presidente Administrativo da Associação dos Magistrados Mineiros (Amagis).
* O artigo Punir e (res) socializar foi publicado no jornal Estado de Minas, editoria de Opinião, na edição do dia 24 de fevereiro de 2010.