Nelson Missias de Morais*
Após quase duas décadas da Constituição cidadã, sustentáculo do Estado de Democrático de Direito, o país ainda convive com alguns problemas, que indicam a necessidade adequação de suas instituições e valores.
Coincidentemente, em igual período, convivemos com o que se convencionou chamar de ‘crise do Judiciário’, caracterizada, sobretudo, pela ineficiência e morosidade da prestação jurisdicional. No afã de encontrar suas causas, é comum imputarem-na aos profissionais da justiça. Fruto de ansiedades e paixões, muitas vezes motivadas por questões pessoais, tais convicções têm por sustentáculo o ‘achismo’, avaliações subjetivas, parciais.
As causas da ‘crise’, entretanto, resultam de uma conjugação de fatores. Longe de querer isentá-lo, o Poder Judiciário não é o único culpado, ao contrário, tem-se transformado em “bode expiatório” das falhas do sistema judicial. O Relatório 32.789-BR, do Banco Mundial, sob o título “Brasil – Fazendo com que a Justiça Conte”, provou que existem outros atores que contribuem tanto ou mais, para a ineficiência do sistema judicial. Essas revelações já eram conhecidas dos magistrados.
O número de ações apreciadas pelo nosso Judiciário está muito acima dos padrões internacionais. O criterioso estudo confirma a sobrecarga dos juízes brasileiros.
A quantidade de processos em trâmite, considerada exagerada pelo Banco Mundial, tem papel relevante na crise. No ano de referência para a pesquisa foram ajuizadas ou sentenciadas, em média, 1.357 ações para cada juiz federal, trabalhista ou estadual do país. No mesmo período, a demanda foi de 875 ações para os juízes argentinos e de 377 para os venezuelanos.
Paradoxalmente, o número de juízes brasileiros não acresceu na proporção necessária. Enquanto na Argentina, são 10,9 juízes para cada 100 mil habitantes, aqui, temos 5,3 magistrados.
A maioria das demandas cuida de questões do governo, em especial impostos e pensões. Assim, o excessivo ajuizamento de ações envolvendo o Executivo e o seu deliberado retardamento, ampliam a crise.
Se em vez de retardar o processo, recorrendo a uma taxa de recursos alta e crescente, o governo revisse a forma de prestação de seus serviços ou buscasse outra via de solução, a crise reduziria. Parece-nos necessário ainda rever a legislação, que prevê privilégios aos órgãos públicos (prazos em quádruplo para contestar, em dobro para recorrer, direito a reexame necessário nas hipóteses cabíveis, etc.).
Outra constatação é a de que os juizados especiais, ao invés de aliviar a jurisdição comum de sua carga de processos, atraíram apenas uma demanda reprimida, inobstante seu destacado papel no judiciário.
É inquestionável que a legislação concorre para a crise, propiciando partes como o governo, devedores e outros tirarem proveito com procrastinações, sob o amparo da norma vigente. É possível preservar o contraditório e a ampla defesa e, ao mesmo tempo, garantir prestação jurisdicional célere e eficaz, escoimada de atos protelatórios.
Mesmo com tantos atores da crise, ainda assim, o relatório concluiu que a produtividade do Judiciário brasileiro é a maior da América Latina. Ele alcançou novos usuários e os magistrados sempre compensaram a omissão de outros atores. Essa produtividade é marcada pelo elevado número de decisões proferidas e pela versatilidade dos meios de realização da justiça (juizados especiais, centrais de conciliação, além de outros).
Apesar da necessidade da formação de novos magistrados, a inclusão de juízes por si só não é suficiente para a agilidade almejada. É necessário um crivo no que necessita ser apreciado por eles. Aliás, o relatório diz que, tal como a população, os juízes também estão insatisfeitos com o sistema judicial do país, com a impunidade, a qualidade das leis, a estrutura penitenciária, a cultura das relações de trabalho e o sistema político-partidário.
Fundamental também - e o Banco Mundial reconheceu - é a ampliação racional das formas alternativas de Justiça. Entendemos que, concomitante a isso, a melhoria das condições de trabalho a juízes togados é crucial, podendo instituir os juízes leigos – sem demérito ou prejuízos aos togados – criar cargos de assessores de juízes, etc.
Os assessores de juízes são solução possível e eficaz ao judiciário, mesmo porque custos do cargo são infinitamente menores que os decorrentes de criação de novas varas. Em Minas Gerais, varas que já contam com este suporte detêm inquestionáveis resultados positivos.
O relatório é importante para subsidiar a segunda parte da reforma do Judiciário. Sua modernização deve centrar-se em dados quantitativos e qualitativos, para apontar diagnósticos de forma objetiva. A próxima fase da reforma deve ser feita à luz desses novos conhecimentos, mais técnicos, menos subjetivos, voltados às verdadeiras causas da ‘crise’.
Alguns passos já foram dados para o fim da crise, mas tais medidas têm que ser tomadas em conjunto, de modo sistêmico. Presenciamos, por exemplo, várias reformas do Código de Processo Civil. Mas pouco ou nada adiantará a busca de um processo mais célere, com um crescente ajuizamento de ações, um número insuficiente de juízes e sem o necessário suporte ao desempenho de seu trabalho.
Já vivemos momentos de transformação positiva, a magistratura está convencida da necessidade de mudanças e avanços e apóia uma reforma do poder baseada em meios objetivos, que envolvam os outros atores do sistema judicial. Particularmente não vislumbramos outro meio de se atingir o equilíbrio e eficiência desejados.
*Presidente da Amagis
Artigo publicado no jornal Estado de Minas do dia 16 de abril de 2008
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