Nos países civilizados, ocidentais-cristãos, a prisão decorrente de uma condenação criminal – que não se confunde com a cautelar (flagrante, temporária, preventiva) –, somente é possível depois de esgotada a ampla defesa e o contraditório. Portanto, após o trânsito em julgado da decisão. Não se trata de modernidade do direito, mas resultado da luta da humanidade através dos séculos contra injustiças e sofrimentos.
Nossa Constituição descreve entre as cláusulas pétreas, como garantias e direitos fundamentais, o inciso LVII do artigo 5º: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, equiparando ao patamar do direito à ampla defesa, ao contraditório, à inviolabilidade da vida privada, entre outras.
Antes de 1988 não existia o Superior Tribunal de Justiça (STJ), e, das decisões de 2º grau os eventuais recursos iam direto para o Supremo Tribunal Federal (STF). A Constituição de 88 inovou e criou o STJ como terceira instância, colocando o STF como uma quarta instância, diferentemente da maioria dos países ocidentais, que adotam apenas duas instâncias. Prova dessa distorção está na comparação da Suprema Corte brasileira (o STF), que julga aproximadamente 100 mil processos/ano, com a dos EUA, que julga apenas 100, muito embora eles tenham quase o dobro da população.
Esse excesso de julgados no STF e no STJ (400 mil) deriva dessa opção recursal com terceira e quarta instâncias. Se noutros países temos a decretação da prisão logo após a decisão do segundo grau, é porque não têm outras instâncias. Temos exemplos.
Alemanha: vigora o modelo federativo. Existe, como na maioria dos países europeus, a separação entre Justiça comum e a administrativa, e em cada estado-membro a segunda instância é praticada pelos tribunais estaduais superiores (Tribunal Regional Superior) como uma instância final para a grande maioria dos processos.
Portugal: os processos criminais, após julgados em primeira instância, podem ser revistos nos tribunais da Relação. Os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça são exceções, que não aprecia matéria de fato, e, em determinados casos, nem mesmo matéria de direito. É na segunda instância (Tribunal da Relação) que os julgamentos transitam em julgado.
Estados Unidos: a Justiça estadual norte-americana não é uniforme como no Brasil, pois cada um de seus 50 estados regulamenta sua estrutura jurídica e processual com forte autonomia federativa. Habitualmente, os estados têm um Tribunal de Apelação (Court of Appeals), onde, em geral, o processo é decidido em último grau.
França: a segunda instância criminal é formada pelos tribunais de Apelação. Acima deles existe a Corte de Cassação (Cour de Cassation), que não reexamina o mérito da matéria, mas apenas determina que outro Tribunal de Apelação julgue novamente a apelação. Na segunda instância, portanto, ocorre o trânsito em julgado na quase totalidade.
Entre nós, melhor seria se tivessem alterado a legislação penal-processual de modo a limitar, reduzir ou impedir recursos aos tribunais superiores, tal como fez a Lei 9.099/95, que criou a Turma Recursal como instância última-única (2º grau), em vez de se dar uma interpretação a permitir que o réu seja preso antes de estar condenado. Essa garantia do réu está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto de São José da Costa Rica e na Constituição Federal, além de no Código de Processo Penal.
No passado distante, o povo ia para as ruas aplaudir as crueldades penais praticadas pelo poder estatal, como o martírio de Jesus Cristo e o enforcamento de Tiradentes, sem falar das práticas da Inquisição. E depois, o nazismo e comunismo. No Brasil do século 20, tivemos ainda prisões sem motivação e/ou sem defesa na ditadura de Getúlio Vargas e na vigência do AI-5 no governo militar.
Ora, o direito penal não pode ser instrumento a socorrer a vontade dos gritos nos bares, da ruas e/ou suas fantasias, nem resultado da pressão da mídia, ou do eventual desejo intolerante da maioria, nem fruto da demagogia jurídica ou de decisões casuísticas em busca de aplausos ou de manchetes de jornais. Ao contrário, a justiça penal e a processual são a garantia do cidadão sempre apequenado diante do poder estatal, das forças econômicas e da mídia, porque no Estado democrático de direito as decisões não podem acolher imposições/desejos antijurídicos, ilegais, a desconsiderar a ampla defesa e o contraditório. O direito é uma ciência, e o juiz um profissional que trabalha com a técnica jurídica, compromissado com a Constituição e o direito.
Lembramos que foi necessária uma sangrenta revolução (francesa, de 1789) para que o direito à liberdade do inocente, a ampla defesa e ao contraditório fossem respeitados. E, nas democracias, as inovações e transformações jurídicas/legais são feitas pelos representantes do povo – o Parlamento. O Judiciário, como poder-técnico, garantirá a segurança jurídica e a estabilidade social-legal.
Vivenciamos a ‘judicialização da política’ – de modo pouco elogiável. Não devemos agora protagonizar a ‘politização da Justiça, ou, dos julgamentos’ (e/ou, o trabalho do Ministério Público), a causar ampla desconfiança e descrença nas instituições. Nenhuma decisão pode ferir direitos e garantias fundamentais nem o senso de justiça, sob o argumento de se fortalecer a efetividade da lei. Assim, a prisão de quem ainda se defende (recorrendo), sem uma condenação definitiva, é ilegítima. “O direito penal do cidadão exige que se olhe o direito processual penal como o direito por excelência dos inocentes” (O direito penal do cidadão in O direito penal do inimigo e o terrorismo”, p. 49, Manuel Valente. Ed. Almedina - Portugal).
Desembargador Doorgal Borges de Andrada -TJMG
Artigo publicado no jornal Estado de Minas, caderno Direito e Justiça, no dia 18 de agosto de 2017.