Os processos judiciais gerados das chamadas "operações da PF" apresentam duas características centrais. Enquanto na origem há inquéritos turbinados por investigações mal feitas e até fantasiosas, nos tribunais regionais e no Superior Tribunal de Justiça, "o temor de enfrentar a opinião pública é maior que a obediência ao modelo legal". Um tipo de covardia que transforma essas cortes em instâncias de passagem, deixando a responsabilidade para o Supremo Tribunal Federal.
Essas são algumas das ideias expostas pelo ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF e vice-presidente do TSE, expostas nesta segunda parte da entrevista concedida à ConJur. Passada a catarse coletiva dessas investigações, diz o ministro, o país bem poderia atualizar sua lei de responsabilidade das autoridades para fazer com que os agentes públicos praticantes de abusos respondam por seus atos, inclusive criminalmente.
Sobre o exibicionismo dos protagonistas da “lava jato”, Gilmar Mendes enxerga um tipo de voluntarismo que prejudica a seriedade que deve prevalecer no rito judicial. “Não venham nos impor orientações filosóficas”, repele o ministro, que vê nos agentes do processo na primeira instância laivos de quem pensa comandar uma revolução ou a refundação da República.
Na sua ácida crítica aos crimes revelados nesse processo, Gilmar chega a admitir que o “mensalão” foi hiperdimensionado, em comparação ao que hoje se testemunha. Opinião que o ministro estende também à Justiça Eleitoral, que ele vê “como um São Jorge no prostíbulo”, em razão da capacidade de sempre manter o semblante sereno diante das maiores obscenidades.
O ex-presidente do STF e do CNJ analisa ainda grandes falhas descobertas no texto aprovado do novo Código de Processo Civil e faz considerações de profundidade em relação ao tratamento que o sistema Penal e Penitenciário dá à sua clientela — e parafraseia seu colega Ricardo Lewandowski, no sentido de que o Brasil “prende muito e mal” — e sobre os mecanismos necessários para reduzir o prazo de solução dos processos judiciais de uma forma geral.
Leia a entrevista do ministro Gilmar Mendes:
ConJur — A previsão do tempo anuncia temporal político que promete desaguar no Judiciário. O STF está preparado para enfrentar situações como essa?
Gilmar Mendes — Há que se fazer distinções. Certamente há temas que serão ou estão sendo tratados pelo Judiciário, especialmente os de caráter criminal. Processos na primeira instância que chegam ao STF pela via recursal ou por Habeas Corpus. E há temas inconfundivelmente políticos, que vão exigir uma solução institucional e política. O tribunal deu respostas adequadas quando foi chamado a decidir nos casos momentosos no contexto político institucional, como foi o caso do mensalão. E também quando foi chamado a decidir no caso do impeachment do presidente Collor. Nessa perspectiva eu entendo que o tribunal tem todas as condições para dar respostas adequadas. De qualquer forma, volto a dizer, o tribunal não pode atuar com sentimento de onipotência, como um órgão capaz de solver todas as pendências existentes. Porque muitas delas demandam soluções eminentemente políticas.
ConJur — Um procurador da República que atua na chamada operação “lava jato” apresentou uma tese, que tem tido alguma divulgação. Ele conclui que processos judiciais, hoje apelidados de “operações da PF”, não avançam por que o Supremo e o STJ são lenientes com o crime de colarinho branco. É isso?
Gilmar Mendes — Qualquer avaliação histórica mostrará que a análise está equivocada. Muitos casos que chegaram ao STF, e suponho que também ao STJ, eram investigações carregadas de um entusiasmo juvenil ou embaladas às vezes por wishful thinking. São muitos exemplos, como o do caso do juiz Casem Mazloum, em cuja declaração de imposto de renda, por erro de digitação, constou que ele tinha dinheiro no Afeganistão — erro que mesmo corrigido foi usado para supor uma imaginosa evasão de divisas. Ou então o caso do ex-presidente do TRF-3, Roberto Haddad, a quem se tentou atribuir posse ilegal de uma caneta-revólver em sua coleção de armas porque o registro no Ministério da Defesa atribuiu a origem da caneta aos Estados Unidos, quando ela fora fabricada em Taiwan. São investigações que resultam em denúncias pífias, porque eram já na origem pífias, norteadas por propósitos pouco profissionais, sem solidez. Os tribunais, nesse sentido, têm cumprido uma função de controle, de freios aos abusos cometidos. Veja o que se sabe hoje da operação satiagraha. Um episódio muito felizmente freado pelo STJ e pelo STF. Uma passagem que não fala bem dos investigadores envolvidos. A propósito, o CNJ já orientou todos os juízes a não valorarem essas “operações” com essas denominações, porque no fundo é uma tática de marketing, uma jogada midiática, que não condiz com a sobriedade que deve marcar a atividade judicial. Salvo engano, ainda está em vigor essa orientação do CNJ, da minha gestão 2008/2010, orientando os juízes a não consagrar essas denominações, quase sempre equivocadas, como “politeia”, “erga omnes” ou erros gramaticais crassos, como “lava jato”, que revelam mais ignorância que qualquer outra coisa.
ConJur — Nessa “lava jato” criou-se a figura fantástica da “força tarefa”, algo como “os intocáveis”, que se utiliza inclusive como papel timbrado. Ou então uma “fase” da investigação chamada de “que país é esse?” Desperta desconfiança sobre a seriedade do processo. Da forma como o MPF conduz seu trabalho. Que análise o senhor faz da qualidade das investigações no Brasil?
Gilmar Mendes — Temos tido processos calcados em investigações exitosas. Trabalhos primorosos de alto profissionalismo. Alguns que sequer foram feitos pela polícia judiciária, como foi o caso do mensalão. A opção do procurador-geral Antonio Fernando de aproveitar o trabalho da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito foi bem sucedida. A investigação foi amplamente validada pelo Supremo. Talvez, lamentavelmente, ela não tenha tido depois o devido seguimento. A CPMI recomendava que se prosseguissem as investigações nos fundos de pensão. Hoje eles estão novamente no olho do furacão. Nisso pode ter faltado algo. Mas temos tido, certamente, trabalhos importantes tanto da autoria da polícia como do Ministério Público. Agora mesmo o Supremo reconheceu a competência investigatória do MP. E também das comissões parlamentares de inquérito, que não só no caso do “mensalão”, mas também no caso Collor/PC, que resultou no impeachment do presidente. Mas temos testemunhado muitos casos de abusos que acabaram levando ao comprometimento e anulação de algumas dessas iniciativas. O abuso deve mesmo ser coibido e evitado.
ConJur — Como o senhor vê o grau de exposição dos agentes desse processo?
Gilmar Mendes — Li algumas entrevistas de protagonistas desse complexo processo. Minha sensação é a de que se eu fosse fazer uma recomendação é a de que “não vá o sapateiro além das sapatas”. Não tentem achar que estão a refundar a República. De que este é a matriz de todos os escândalos e coisas do tipo. Ou seja: dedique-se o procurador a procurar. O delegado a fazer o seu trabalho e o juiz a julgar. Não venham nos impor orientações filosóficas. A interpretação desse fenômeno vai caber aos historiadores, tendo em vista que vamos precisar de tempo para a compreensão completa do fenômeno. Se os investigadores e juízes cumprirem bem suas missões institucionais, já terão dado boa contribuição. Talvez possamos até acrescentar uma observação a latere de que alguns dos vícios dessas operações estão associados exatamente a essa distorção ótica.
ConJur —Na maneira de enxergar as operações policiais?
Gilmar Mendes — O de vislumbrar uma revolução institucional ou reforma política a partir de uma operação policial. Vamos nos limitar a nossas funções. O que se revela até aqui, nesse episódio, é algo preocupante. Nós que olhávamos o “mensalão” em um plano hiperdimensionado, hoje vemos o quão modesto ele foi diante dessa tessitura intrincada nesse chamado “petrolão”. Já não se pode falar que se trata de “um ponto fora da curva” ou mais um desvio, mas sim de uma forma de governar, de administrar. Uma forma de ver o interesse público e o privado. Talvez explique a defesa que alguns políticos fazem das estatais. O argumento para o público é que precisamos das estatais porque são um patrimônio nacional, quando o que se vê é que a Petrobras foi privatizada para atender interesses partidários, como também a outras finalidades. E isso precisa ser compreendido em toda a sua extensão para que a gente não reincida nesse tipo de prática no futuro.
ConJur — O senhor diz que o “mensalão” e a “lava jato” têm o mesmo DNA. Nos dois casos prevalece o “toma-lá-dá-cá” e uma promiscuidade que passa pelo financiamento de campanha. Por que o senhor insiste em que se deve manter o atual sistema de financiamento eleitoral se é isso que está na raiz desses escândalos todos?
Gilmar Mendes — Primeiro que eu não estou certo de que a corrupção está associada, necessariamente, ao modelo de financiamento eleitoral. Essa é uma das possíveis causas. Agora estamos a ver que há enriquecimento de pessoas para finalidades outras que não o altruísmo suposto da luta partidária. De qualquer sorte, minha objeção nem vai a tanto. O que entendo é que qualquer mudança no sistema de financiamento de campanha tem que ser precedido de discussão sobre o modelo político eleitoral. Para se chegar à proposta que se desenha na discussão no Supremo, a proibição do financiamento por empresas privadas, tem que se dizer qual será o modelo eleitoral. Do contrário, vamos reincidir nisso no futuro em um equívoco histórico. Lembremo-nos que foi a CPMI Collor/PC que sugeriu que saíssemos do modelo eleitoral anterior.
ConJur – E qual era esse modelo?
Gilmar Mendes – Era o que proibia a doação de pessoas jurídicas. E isso resultou naquele enorme caixa 2. Por isso a CPMI veio e recomendou a abertura para doação de pessoas jurídicas e que houvesse controle sobre isso. Quando se desenhou essa ação no STF, que, a meu ver, atendia a desígnios partidários, o propósito da discussão era também induzir a uma mudança do sistema eleitoral. Chegar a uma votação em lista. Mas isso precisa ser combinado. Tem que ser aprovado. É preciso ver se as pessoas querem isso. É claro que o sistema político em vigor dá sinais de exaustão. Mas é preciso que isso seja devidamente discutido e avaliado, de modo que não assumo uma posição em prol do financiamento privado ou em prol do financiamento público. Ou da pessoa física. Só lembro que não temos até aqui tradição de doação das pessoas físicas — o que não significa que não venhamos a ter. Veja que uma campanha como a da presidente Dilma, que teria recebido algo como R$ 380 milhões em doações teve apenas R$ 800 mil de pessoas físicas.
ConJur — Esse volume de dinheiro gera distorções em uma campanha, não? Um marqueteiro chega a receber R$ 20 milhões por que havia dinheiro para isso.
Gilmar Mendes — Não, não. Corrija aí. Com o João Santana foram gastos, segundo dados da campanha, algo em torno de R$ 80 milhões.
ConJur — O que só aumenta a distorção.
Gilmar Mendes — Só uma empresa montadora de palanques de São Bernardo, a Focal, recebeu R$ 25 milhões da campanha. E pelo que se sabe, palanques são da responsabilidade dos candidatos locais. Tudo é aprendizado. Eu tenho a impressão de que a Justiça Eleitoral cumpre papel pouco elogiável no que diz respeito ao controle da campanha eleitoral, tendo por base esse episódio. Atua um pouco como um São Jorge no prostíbulo, porque olha esses números e não consegue decifrar. É notório que há firmas hoje especializadas em prestar serviços de lavagem de dinheiro para o sistema político.
ConJur — Empresas prestadoras de contas.
Gilmar Mendes — Sim, fornecem notas. Surgem ou ressurgem no período, porque depois fecham. Em geral são pequenas sedes, como a imprensa tem mostrado. Mas canalizam dinheiro para finalidades outras. Não que não seja utilizado também para a campanha. Mas pode ser utilizado até em compra de votos. Mas não está sendo utilizado com o propósito declarado. Talvez seja esse o caso dessa empresa montadora de palanques.
ConJur — Nos votos no TSE, o senhor mostra grande preocupação com o equilíbrio entre as forças políticas, o que não é fácil, já que no Brasil o Estado é muito grande e a vantagem de quem está na situação é evidente. O senhor entende que a mudança no financiamento eleitoral, que o senhor analisa em seu pedido de vista no STF, vai favorecer o PT?
Gilmar Mendes — Não afirmo que só o partido do governo se beneficia com uma fórmula ou outra. Até porque temos uma estrutura estatal complexa, em que você tem um partido no plano federal e partidos diferentes no plano estadual. São Paulo, por exemplo, está nas mãos da oposição. Isso contribui para um certo equilíbrio no plano geral — o que alguns professores têm chamado de “separação de poderes no plano vertical”. Isso acaba distribuindo os efeitos. Quando se tem uma disputa eleitoral em São Paulo, enfrentam-se titãs: a máquina do governo federal e a máquina do governo estadual. O que me preocupa é a mudança das regras do jogo sem que tenhamos um quadro adequado para avaliar. É só isso. Tenho dúvidas se uma mudança para um sistema de financiamento público seria factível. Boa parte do financiamento hoje já é público. O fundo partidário já está em quase R$ 1 bilhão; fora o horário eleitoral, chamado impropriamente de gratuito, já que é subsidiado pelo Estado. Em suma, já temos uma parcela de financiamento público. Mas temos que perguntar ao distinto público se ele quer pagar mais. Veja: ano que vem teremos uma disputa eleitoral com cerca de 530 mil candidatos. Vereadores e prefeitos. Quanto se vai dar a cada um, imaginando que se vá partir para o financiamento público? Por outro lado, vamos supor que se vá partir para o financiamento por pessoas físicas. Quem vai se beneficiar com isso? Nós já vimos um pequeno exemplo — claro que pode haver distorção — no episódio das multas penais impostas pelo STF, no caso do mensalão. Ali já houve dinheiro do Youssef, pelo que se diz. Algo em torno de R$ 3 milhões. Será que isso não aconteceria também no caso de a doação ser no valor de R$ 10 mil? Não apareceria um monte de dinheiro, quem sabe dessas mesmas fontes, para alimentar a campanha? Veja a dificuldade: se não conseguimos fiscalizar 500 empresas, como faremos para fiscalizar depois 500 mil pessoas ou 1 milhão de doadores? Vamos imaginar que, de acordo com a fórmula, como fazer para conferir se um receptor de bolsa família pode doar R$ 10 mil para um candidato, ainda que fictamente? Tudo isso precisa ser pensado. Não quero assumir posição num ou noutro sentido, mas é certo que precisa regulação e disciplina. E que a reforma se implemente completa, global. Mas me parece que essa discussão de que agora vamos resolver tudo com a proibição da doação da pessoa jurídica, com o sistema público ou com a pessoa física está marcada por certo infantilismo, de imaginar que isso vai se fazer num passe de mágica: as pessoas que disputam o poder vão passar a observar regras que até agora não observaram.
ConJur — Mas será infantilismo constatar que a empresa doa em troca de contrapartida futura do eleito?
Gilmar Mendes — Eu acredito que há interesses em jogo não ligados à expectativa de retorno material. Há interesses em jogo associados mantença de determinado modelo. Por exemplo, o da iniciativa privada. Eu já disse isso em Plenário, no Supremo: o banco que doa para um candidato como o Delfim Netto obviamente não espera dele nenhuma retribuição em espécie. Mas confia que ele vá continuar atuando como atua na sua vida acadêmica e na sua vida pública. E assim há muitas campanhas. Agora, é possível que tenhamos normas de organização e procedimento e possamos aprimorar para definir — isso está cada vez mais complexo — os bloqueios, a recepção de benefícios, e está complexo porque as empresa hoje têm estruturas também enormes. São conglomerados. Uma dada empresa pode fazer a doação e a outra pode ser a beneficiária. O que não podemos é fingir, dado o volume de recursos que as campanhas demandam, que a mera proibição de doação de pessoas jurídicas vá fazer com que elas fiquem ausentes da disputa. Até porque, recentemente, na eleição de 90, elas não ficavam. E acabavam colocando recursos no sistema de caixa 2.
ConJur — Como o senhor já disse, se a cultura admite a desonestidade, haverá desonestidade em qualquer sistema.
Gilmar Mendes — Exatamente. E o que vemos até aqui é que até as doações formalizadas, pelo que se diz, nesse caso do “petrolão”, corresponderiam a um percentual daquilo que foi pactuado em termos de corrupção. Portanto, a doação foi uma forma de lavagem da propina. Veja como é complexo e quanta vocação para fazer as coisas erradas.
ConJur — O senhor falou da necessidade de profissionalizar o controle das contas eleitorais. No entanto, o funcionalismo vive hoje uma convulsão, uma crise em torno da remuneração do servidor. Isso pode comprometer a qualidade das eleições do ano que vem?
Gilmar Mendes — Espero que não. A minha expectativa é que, em algum momento, encontremos um tratamento racional para essa temática. Acredito que, como em outros campos, aqui também, no que diz respeito à remuneração dos funcionários públicos, fomos da euforia à depressão em pouco tempo. Fizemos certa farra, com aumento de vencimentos, talvez de forma indiscriminada para muitas categorias, e agora estamos pagando o preço. Não se dá aumento e também não se tem dinheiro — que é o que se informa de maneira muito transparente pelo Ministério da Fazenda. Temos realmente uma crise. No próprio Tribunal Superior Eleitoral. A receita tributária está caindo, a atividade econômica está em queda. Logo, faltam recursos. E não faz muito tempo o presidente Lula festejava os aumentos de salários. Dizia que assim é que se fazia política de remuneração de pessoal. Hoje a gente também percebe que falta um órgão, com o papel do Dasp, que vinha do Estado Novo, para disciplina e regulação de pessoal. Esse tema hoje pede uma agenda própria e exige responsabilidade. Mas tenho confiança de que o sentimento cívico e o patriotismo dos servidores do Eleitoral vão contribuir para que façamos uma boa eleição independentemente da questão remuneratória.
ConJur — O senhor chegou ao Supremo em 2002, um tribunal que tinha como principal personagem o ministro Moreira Alves. Época em que o Ministério Público Federal tinha como ator principal, simbolicamente, o procurador Luiz Francisco. O que mudou de lá para cá, no STF e no MPF?
Gilmar Mendes — O Supremo tinha uma composição bastante estável, com poucas mudanças nesse período de 1987, 89 a 1990. O Tribunal teve seus momentos, nessa fase imediatamente posterior à promulgação da nova Constituição, de certa perplexidade, o que levou a um processo de self restraint, ou autocontenção. E até foi bom, porque se olharmos as propostas do processo constituinte, veremos que houve proposições ousadas como a regulação da omissão constitucional, por exemplo. E cobrava-se do tribunal, desde logo, uma posição proativa. Mas o tribunal inicialmente mostrou-se claramente respeitoso em relação às incumbências do Legislativo. Quanto ao Mandado de Injunção, o STF decidiu que se limitaria a fazer um apelo ao legislador para que a omissão fosse corrigida. Era um mote.
ConJur — Era um colegiado condicionado e preso à Constituição anterior.
Gilmar Mendes — E também com alguma perplexidade em relação a todas as novidades. Mais que isso: já estávamos em um contexto de crise econômica. Por que essa transição se deu entre 1988, 1990, com inflação que chega ao Plano Collor de 84,32% por mês. Na transição Sarney-Collor. Então o tribunal atuou também como moderador, com olhos na realidade. Outra proposta que veio com o texto constitucional: juros de 12% ao ano. Uma reação retórica ao exagero dos juros altíssimos. E veja que de novo estamos acima dos 12% ao ano. Mas com uma inflação próxima dos 100% ao mês, como seria possível calcular juros? E veja que o tribunal acabou por aceitar uma proposta do consultor-geral Saulo Ramos no sentido de que aquilo só poderia ser implementado num contexto de reforma geral do sistema financeiro. E o que aconteceu? Quando essa reforma ocorreu, o dispositivo foi revogado.
ConJur — Foi quando o limite começou a vigorar.
Gilmar Mendes — Então veja que o tribunal, nessa transição, atuou de forma condizente com a implantação gradual do novo modelo constitucional.
ConJur — Sobre o Ministério Público, no governo FHC, todos os ministros de Estado foram alvo de ações de improbidade administrativa, até o próprio presidente e o senhor também. O que acontece agora? O MPF tornou-se menos agressivo ou houve um amadurecimento?
Gilmar Mendes — À época tínhamos aquelas figuras emblemáticas do MPF. Em geral consorciadas com partidos políticos. Veja o caso do Luiz Francisco ou do Guilherme Schelb. Basta lembrar que algumas ações, como o próprioConJur divulgou à época, apresentadas pelo Luiz Francisco eram elaboradas em São Paulo por advogados ligados à oposição. Isso foi uma conduta maquiavélica. O dado curioso é que na transição, quando o PT chega ao governo, essas figuras desaparecem. Ninguém mais ouve falar delas. E tampouco aparecem figuras emblemáticas como aquelas, o que talvez seja até positivo. Mostra que quem era situação e virou oposição não quis ou não conseguiu instrumentalizar o MP a seu serviço, o que mostra, espero, possível amadurecimento institucional.
ConJur — Ou as duas coisas.
Gilmar Mendes — Ou isso. Agora, tenho a impressão de que é chegada a hora, inclusive, tendo em vista esse histórico de abusos que se repetem aqui, nesses casos de ações de improbidade espalhadas, ou investigações criminais que resultam inúteis, mas que causam danos, creio ter chegado a hora de o país, feita toda essa catarse, aprovar um estatuto de abuso de autoridade. Algo que defendo desde que presidi o Supremo. Foi incluído no Pacto Republicano. Estou convencido de que é preciso atualizar a velha lei de abuso de autoridade, que data de 1965 e tem tipos totalmente superados, diante da sistemática de abusos. E digo em todos os âmbitos. Seja no âmbito policial, judicial, do Ministério Público, no âmbito parlamentar, das CPIs. Já passa da hora de se aprovar uma lei para de fato ter um quadro institucional mais respeitoso das regras básicas civilizatórias do Estado de Direito.
ConJur — Seria fazer com que pessoas que causam danos a outras deliberadamente respondam pessoalmente por isso sem deixar a conta para a viúva.
Gilmar Mendes — Exato. Mas inclusive criminalmente.
ConJur — A população carcerária no país cresce em proporção geométrica, enquanto o número de vagas sequer aumenta em proporção aritmética. Como se resolverá o problema do regime semiaberto? Todas as prisões passarão a ser domiciliares?
Gilmar Mendes — O Supremo Tribunal Federal vai decidir a respeito dessa matéria. Diante da condenação para o regime semiaberto e diante da falta de vagas, para onde irão os cidadãos? Para o regime fechado ou para casa? É uma resposta complexa. Mandá-lo para casa pode ser um risco, caso ele tenha sido condenado por crime grave. E ele foi condenado: referimo-nos a crimes que chegam a penas de até oito anos. Mas se optamos pelo regime fechado, estamos encarcerando, um regime mais gravoso do que aquele para o qual foi condenado. Esse processo foi qualificado para merecer repercussão geral, portanto estamos falando de uma regra que vai nortear todos os casos semelhantes. Por isso estamos discutindo no tribunal a possibilidade de uma medida mandatória para interferir na própria construção de vagas. Ou a viabilidade de um cadastro geral de vagas, para que se saiba quem está prestes a cumprir o regime semiaberto na sua integralidade ou sair desse regime, para que possamos induzir essa pessoa a ser liberada. Como já disse o presidente Lewandowski, o Brasil prende muito e mal.
ConJur — Isso foi feito na gestão do senhor no CNJ, não foi?
Gilmar Mendes — Já vínhamos tentando organizar. Mas estamos falando de organizar isso a partir dessa decisão judicial em outro plano. E também buscarmos construir vagas, porque é uma situação peculiar. Temos mais de 500 mil presos para 360 mil vagas no regime fechado. Aqui já temos um excedente. Temos poucas vagas para o regime semiaberto e nenhuma para o regime aberto. É um tema negligenciado. Uma das iniciativas que estão sendo tomadas, em muitos pontos, é a diminuição de presos provisórios. Em 2011 veio a alteração do Código de Processo Penal para que houvesse as medidas alternativas à prisão, como uso de tornozeleira, e agora a audiência de custódia que se vem implantando com grande êxito em São Paulo, para aliviar esse excesso de prisões. De qualquer forma, já estamos em terceiro ou quarto lugar em população carcerária no mundo, o que é um campeonato que não se quer ganhar. Precisamos de uma sentença atípica e heterodoxa para que possamos estimular uma solução para esse grave problema. Lateralmente, como no Evangelho, é preciso atentar para o risco de quando a gente quer fazer o bem e acaba fazendo o mal. Isso ocorreu com a chamada Lei de Drogas. A expectativa era de que pudéssemos diminuir as penas para o uso de drogas, de forma que ficasse praticamente sem prisão. E também que tratássemos de maneira diferenciada o pequeno traficante. O que ocorreu é que essa indistinção entre o usuário e o pequeno traficante acabou por aumentar substancialmente o número de presos.
ConJur – E de presos provisórios também.
Gilmar Mendes – Especialmente o preso provisório. Isso explica um pouco o aumento da população carcerária. Portanto, a lei veio com um propósito e o resultado foi outro. Talvez a audiência de custódia ajude agora a fazer essa distinção, com a submissão do réu ao juiz que poderá valorar mais precisamente a situação e verificar se o flagrante pode ser convertido em prisão provisória ou não. Mas em suma, é um todo complexo e eu espero que essa decisão do Supremo sobre o regime semiaberto seja um marco para que possamos de fato refletir sobre a mudança do sistema prisional como um todo.
ConJur — O Recurso Extraordinário que trata de posse de drogas para consumo tem data para ser julgado?
Gilmar Mendes — Talvez neste semestre. E nesse caso o que iremos discutir é o não tratamento criminal do usuário.
ConJur — O efeito vinculante nas suas diversas denominações, seja efeito repetitivo, a repercussão geral, foi concebido para atacar a crise de volume de processos do Judiciário. Pelo tempo decorrido, a experiência mostra que o instrumento, essa ferramenta cumpriu o seu papel?
Gilmar Mendes— Tenho a impressão de que sim, vem cumprindo um papel importante. Há sempre reclamações de que o efeito vinculante acaba trazendo ao Supremo mais uma leva de processos, já que vêm Reclamações contra o possível descumprimento. Mas, em geral o tribunal lida bem com essas reclamações, até de forma individual, monocrática. Não me parece que seja um tormento específico. É bem verdade também que talvez seja muito cedo para fazer uma análise mais elaborada, porque tivemos algo como sete ou oito meses das atividades do tribunal praticamente dedicadas à tarefa de julgar o "mensalão". Isso comprometeu muito a sequência de julgamentos da repercussão geral e da conversão das decisões em súmula vinculante, de modo que talvez nós necessitaríamos de mais tempo. Mas acredito que o resultado é positivo até aqui. E acho que o mesmo se pode dizer do processo repetitivo no STJ. São tribunais, o STF e o STJ, que podem fixar orientações a partir dessa chamada repetição ou dessa crise numérica. Temos um dado que existem em todo o âmbito nacional 1 milhão de processos [sobrestados], então é razoável que haja esse entendimento com força vinculante depois de uma ampla discussão.
De qualquer sorte, quando temos um volume tão intenso de processos e uma judicialização tão intensa — estamos falando algo em torno de 100 milhões de processos —, temos que tomar outras medidas, combater a cultura da judicialização. Muitos dos casos que enchem as gavetas e os computadores dos tribunais são casos de execução já de uma jurisprudência fixada: o assunto já foi de alguma forma definido, não obstante a pessoa precisa ir à Justiça para ver o seu direito concretizado. Talvez pudéssemos retrabalhar essa concepção, induzir o sistema de seguros, o sistema de previdência, o sistema bancário, o sistema comercial, a adotar essas orientações. Alguns países trabalham com os chamados ombudsman — o ministro Beneti tem falado nisso a partir de exemplos alemães. Então, acredito que no próprio âmbito do Serviço Público nós deveríamos estimular mais essa aplicação do precedente com força vinculante, evitando essa massa de demandas no âmbito do INSS, da assistência social e assim por diante. É preciso retrabalhar essa cultura da judicialização.
ConJur— Um advogado esta semana observou que a Justiça Criminal local se preocupa cada vez mais com Segurança Pública e pouco com garantia de direito e justiça. Os Tribunais Superiores restringiram muito o acesso, o que contribuiu bastante para um endurecimento do Judiciário e aumento da população carcerária. O senhor concorda com essa visão?
Gilmar Mendes — Temos que examinar isso com maior detalhamento, maior profundidade, até porque esses movimentos podem também ter um caráter cíclico. Mas eu tenho a impressão, e tenho falado muito sobre isso, que a Justiça Criminal no Brasil tem que passar por uma reforma. Quem se preocupa com Segurança Pública no Brasil teria que inserir a Justiça Criminal, o aparato da Justiça Criminal como um todo — e aí eu estou falando da polícia judiciária, do Ministério Público, da própria Justiça Criminal —, nesse contexto de reforma, para ter decisões mais sérias, tanto no sentido da condenação quanto da absolvição. E isso é importante.
ConJur — Por quê?
Gilmar Mendes — Vivenciei essa realidade quando estive, por exemplo, em Pernambuco. O governador da época, o saudoso Eduardo Campos, dizia que faziam um grande esforço para prender autores de crimes bárbaros, crimes de mando, pistolagem, e depois de um certo tempo a Justiça, o júri liberava. Ela não conseguia levar a instrução a cabo no prazo razoável e por isso eles acabavam soltos, o que mostra que a Justiça Criminal precisa passar por um processo de reforma, tendo em vista razões de Segurança Pública. Essa teria que ser uma prioridade, isso é fundamental. Mas, em relação ao seu ponto, eu sou contra, e tenho me manifestado nesse sentido.
ConJur — É contra restringir o acesso?
Gilmar Mendes — Há impulsos no Supremo Tribunal Federal de restrição do acesso via Habeas Corpus, porque essa é a porta, é do que dispõe o indivíduo, cidadão, para, eventualmente, fazer corrigendas. Não estamos afogados, a nossa crise não é a crise do Habeas Corpus, mas há impulsos nesse sentido e nós já tivemos inclusive na 1ª Turma decisões que tentavam restringir o HC, e que encontraram também apelo no STJ. Mas a 2ª Turma, a minha turma, mantém-se fiel à jurisprudência tradicional. Acredito que a 1ª Turma tenha feito uma viagem de volta à jurisprudência antiga. O problema que pode ocorrer é, que diante da sensação de que há um quadro de impunidade generalizada, os juízes comecem a não se animar mais a fazer exames de questões formais, por exemplo. E isso nós estamos vendo, em parte, neste caso dessa chamada operação "lava jato", em que tanto o TRF do Rio Grande do Sul, como o STJ tornaram-se apenas locais de passagem. Se houve Habeas Corpus concedido, pode ter algum engano meu, mas acho que não, só no Supremo Tribunal Federal, e assim tem sido…
ConJur— É uma distorção, não?
Gilmar Mendes — É, pois é. O temor de enfrentar a opinião pública, as críticas que possam vir, é maior que a obediência ao modelo legal, ao modelo institucional, e isto não é bom para o sistema. O Rui Barbosa já dizia que temia muito juiz covarde, e isto é um problema, certamente. Nós precisamos estar muito atentos.
ConJur— O senhor examina a hipótese da antecipação da pena após a manutenção da condenação na segunda instância?
Gilmar Mendes— Sim, nós tínhamos uma jurisprudência sólida, consolidada, que permitia a execução da pena já com a decisão de segundo grau. Depois, a partir de um impulso, uma proposta trazida pelo ministro Cezar Peluso, revertemos essa orientação, entendendo que era preciso trânsito em julgado. E parece que a ortodoxia deveria rezar nesse sentido. Mas, se examinarmos os casos concretos, em geral, vamos ver que cada vez mais se afigura difícil chegar ao trânsito em julgado, e até que essa jurisprudência estimulou bastante os expedientes para dificultar o trânsito em julgado, com reiterados embargos de declaração, por exemplo, com reiterados recursos de nítido caráter protelatório, quando já se sabe que não vai mudar a jurisprudência, a decisão que já foi fixada. Aí me parece que acabamos por nos divorciar do sistema geral que é hoje existente no mundo. E temos situações graves, que repercutem sobre a própria sensação de impunidade da população. Casos em que alguém que respondeu a processo estava solto, mas, autor de homicídio, vai a júri, é condenado e sai de lá livre porque não houve ainda o trânsito em julgado. Isso repercute de uma forma extremamente negativa nas pequenas comunas. Pelo menos se pudéssemos dizer "se a decisão for confirmada em segundo grau, pelo menos ele já poderá ser preso". Acho que devemos rediscutir essa temática, claro, deixando sempre a possibilidade de, para casos eventualmente teratológicos, recorrer à instância superior, de se obter uma medida cautelar etc.
ConJur— Por que o Judiciário convive com manobras deliberadamente protelatórias? Por que não aplicar litigância de má fé, lide temerária?
Gilmar Mendes— Tivemos um caso no Supremo, da relatoria do ministro Toffoli, em que ele simplesmente recusou um desses recursos e reconheceu desde logo o trânsito em julgado. Mas a rotina de milhares de processos, às vezes pela não percepção naquele momento de que se trata de um recurso protelatório, acaba por estimular esse tipo de prática e ao final nós não temos a certidão de trânsito em julgado. Nós estamos falando de cortes, como é o caso do Supremo, não especializadas, de cortes que não estão voltadas apenas para matéria criminal. E me parece que há um fosso: criamos uma jurisprudência que estabelece um fosso com a experiência hoje dominante no direito comparado. Se olharmos o direito americano, até de forma mais radical, depois da sentença já é o réu recolhido à prisão. Também no modelo europeu, com variações, consagra-se a ideia da decisão de segundo grau como o bastante, até os tratados internacionais, de modo que, tocado um pouco por essa reflexão comparativa, e também por um juízo de consequências, me parece que nós deveríamos fazer uma reanálise dessa jurisprudência última.
ConJur— Nesse caso significaria diminuir o número de recursos?
Gilmar Mendes — Pois é, e é uma matéria que não está à disposição necessariamente do Judiciário. E toda vez que se faz reforma, tendo em vista as múltiplas influências, em geral, como agora no novo CPC nós estamos reampliando os recursos, o número de recursos e não reduzindo. No contexto atual, a proposta mais condizente com a realidade é esta, de reduzir recursos. Sem prejuízo, claro, de termos sempre recursos e para evitar, por exemplo, a prisão imediata. E sempre poderá ter um Habeas Corpus ou uma medida de caráter cautelar.
ConJur— O senhor propõe adiar a vigência, o início da vigência do CPC. O que se poderia fazer nesse meio tempo?
Gilmar Mendes— Minha preocupação central é com a questão da admissibilidade. Hoje há juízos seguros de que o exame de admissibilidade nos tribunais de origem reduz significativamente a remessa de processos para o Supremo ou para o STJ. Ora, se agora se optou por mandar todos os processos para o Supremo ou para o STJ, nós vamos ter questões comezinhas como, tempestividade, intempestividade, falta de procuração, tudo isto examinado já na instância ad quem, e não lá na instância local. Isso significa que vamos receber toda essa massa de processos. Esse ponto teria que ser revisto, mas há outras dúvidas. A toda hora surgem dúvidas sobre multiplicação de recursos, criação de recursos novos. A questão do prazo, que agora se tornou mais generoso: o discurso em favor do Código é que ele está acelerando a prestação jurisdicional, mas os 15 dias corridos que se contavam segundo o Código antigo, e são da nossa tradição, foram alongados para 15 dias úteis. Será que é isso o que se quer? Por isso devíamos dilargar o prazo de vacatio para que a sociedade realmente tivesse tempo de discutir a temática. É claro, os autores do Código dizem que tiveram muitas sessões com a comunidade e etc. Eu até já brinquei, já que o Supremo notoriamente não ouvido nessa matéria, se houve muitas sessões talvez tenham sido sessões espíritas.
Fonte: Conjur