A Lei 1.533, de 31.12.1951, que regulamenta o mandado de segurança, como é do
conhecimento geral, veda, em seu art. 5º, I, a impetração na hipótese “de ato de que caiba recurso administrativo com efeito suspensivo, independente de caução”.
As disposições legais editadas após a mencionada Lei 1.533, a exemplo das Leis 2.770, de 04.05.1956; 4.116, de 04.12.1962; 4.348, de 26.06.1964; 4.410, de 24.09.1964; 5.021, de 09.06.1966; 6.014, de 27.12.1973; 6.017, de 03.07.1974; 6.978, de 19.01.1982; 7.969, de 22.12.1989; 8.076, de 23.08.1990; 9.259, de 09.01.1996; 10.910, de 15.07.2004, e, finalmente, até o momento, a MP 2.180-35, de 24.08.2001, não trouxeram qualquer modificação ao aludido inciso, que se mantém, sem alteração, desde sua edição.
O Supremo Tribunal Federal, em sessão plenária de 1º.06.1964, com base em precedentes da lavra dos eminentes Relatores Hahnemann Guimarães, Henrique D’Ávila, A. H. Ribeiro da Costa e Victor Nunes Leal e no art. 141, § 24, da Constituição de 1946, editou a Súmula 430.2
Logo, se o art. 5º, I, da Lei 1.533/51 veda a impetração da ordem de segurança quando cabível o recurso administrativo, e este, por seu turno, não interrompe o prazo para o mandado de segurança, como estabelecido no art. 18 da Lei 1.533/51, não há dúvidas de que ao interessado se está a negar a aplicação do art. 5º, XXXV e LV,3 da CF/88.
Ora, ainda que haja pendência de recurso administrativo, não pode a Lei 1.533/51 ou qualquer outra impor restrições e limitações ao acesso à Justiça.
Tenho, assim, da exegese do art. 5º, I, da Lei 1.533/51, a rigor da disposição expressa do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil,4 que ele se afigura plenamente incompatível com a literalidade e o espírito do art. 5º, XXXV e LV, da CF/88.
É que posições autorizadas, de peso, como a do eminente Ministro Carlos Velloso (ADIN n. 927-3/RS, Medida Liminar, 04.11.1993, apud Uadi Lammêgo Bulos (Constituição Federal anotada, 5. ed. São Paulo: Saraiva), reputam que “[...] os direitos e garantias fundamentais constituem-se em normas gerais, nacionais, e, como tal, lhe devem obediência todas as demais



2 “Pedido de reconsideração na via administrativa não interrompe o prazo para o mandado de segurança”.
3 XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; [...]
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes; [...].
4 Art. 2º, § 1º - A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou
quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
disposições legais”, de modo que considero que aquele preceito restritivo impresso no art. 5º, I, da
Lei 1.533/51 não tem mais qualquer sobrevivência ou consistência jurídica, estando ab-rogado pela
CF/88.

José Afonso da Silva (Curso de direito constitucional positivo, 12. ed., Editora M, 1996, p. 11) acentua:

O art. 5º, XXXV, consagra o direito de invocar a atividade jurisdicional, como
direito público subjetivo. [...]. Garante-se a plenitude da defesa, agora mais
incisivamente assegurada no inc. LV do mesmo artigo: aos litigantes, em processo
judicial e administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. Agora a seguinte
passagem do magistério de Liebman tem ainda maior adequação ao Direito
Constitucional brasileiro: ‘O poder de agir em juízo e o de defender-se de qualquer
pretensão de outrem representam a garantia fundamental da pessoa para a defesa
de seus direitos e competem a todos indistintamente, pessoa física e jurídica,
italianos [brasileiros] e estrangeiros, como atributo imediato da personalidade, e
pertencem por isso à categoria dos denominados direitos cívicos’. (g.)

A propósito do tema em debate, Uadi Lammêgo Bulos (Constituição Federal anotada. 5. ed. ão Paulo: Saraiva, p. 561-563) assenta que:

Muito se tem dito a respeito das ‘normas gerais’ [...] vale transcrever excerto do
voto do Ministro Carlos Mário da Silva Velloso, do Supremo Tribunal Federal: ‘A
formulação do conceito de ‘normas gerais’ é tanto mais complexa quando se tem
presente o conceito de lei em sentido material - norma geral, abstrata. Ora, se a lei,
em sentido material, é norma geral, como seria a lei de ‘normas gerais’ referida na
Constituição? Penso que essas ‘normas gerais’ devem apresentar generalidade
maior do que apresentam, de regra, as leis. Penso que ‘norma geral’, tal como
posta na Constituição, tem o sentido de diretriz, de princípio geral. A norma geral
federal, melhor será dizer nacional, seria a moldura do quadro a ser pintado pelos
Estados e Municípios no âmbito de suas competências (STF, voto na ADIN n. 927-
3, Rio Grande do Sul, Medida Liminar, 04.11.1993).’ (g.)

Em seguida, pondera o constitucionalista: “Numa palavra, tais normas são gerais, devendo levar em conta, por exemplo, o princípio republicano, a autonomia municipal, a independência dos Poderes, os direitos e garantias fundamentais etc.”.
Logo, não pode a lei especial do MS estabelecer, na hipótese em apreciação, resistência à aplicação do comando constitucional explícito no art. 5º, XXXV e LV, que, como visto, não recepcionou aquela.
Aliás, o autor Lammêgo Bulos dá, com precisão, a real extensão desses preceitos
constitucionais, intitulando-os de “elementos mínimo-irredutíveis”. Confira-se:

Elementos mínimo-irredutíveis das constituições são itens imprescindíveis à
conformação dos textos constitucionais. A doutrina constitucional clássica,
capitaneada por Carl Schmitt, Manuel Garcia-Pelayo, Adolfo Posada, Karl
Loewenstein, Garnet et alli abordaram o tema em epígrafe sob o título elementos
das constituições, sem mencionar o qualificativo mínimo-irredutíveis. Tal adjetivo
encontra origem no pensamento de Kenneth C. Wheare (Modern Constitutions, p.
46 e s.). [...] Esses elementos são mínimo-irredutíveis, porquanto não podem faltar
num documento constitucional. [...] No Brasil, a estrutura normativa da
Constituição de 1988 evidencia os seguintes elementos mínimo-irredutíveis: [...] 2)
elementos mínimo-irredutíveis limitativos: freiam o poder estatal perante os
cidadãos, evitando o arbítrio, o abuso de autoridade, o desrespeito aos direitos
garantias fundamentais. Exemplos: art. 5º, I a LXXVII; arts. 14 a 17. (g.)

André Ramos Tavares, no excerto “Elementos para uma Teoria Geral dos Princípios na Perspectiva Constitucional” (f. 21/51) na obra Dos princípios na perspectiva constitucional - Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição, organizada por Geraldo Salomão Leite, São Paulo: Malheiros Editores, outubro de 2003, pontua:

[...] Princípios infraconstitucionais - Tem-se por certo que os princípios
constitucionais desempenham a função de cimentação sistemática do ordenamento
- ou seja, reduzem o ordenamento a uma unidade congruente de normas. Todas as
leis, decretos e atos normativos de qualquer índole devem obediência e
acatamento aos mais altos padrões normativos - ou seja, aos princípios
constitucionais. [...] Os princípios constitucionais, especialmente os direitos
fundamentais, possuem a condição de abertura normativo-material - quer dizer,
têm a capacidade de expandir seu comando consoante as situações concretas que
se forem apresentando. É o que se pode denominar de 'eficácia irradiante’. (g.)

O Desembargador José Tarcízio de Almeida Melo, em sua notável obra Reformas
administrativa - previdenciária - do Judiciário, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2000, p. 131, salienta:

O direito, estando na Declaração, é intangível e imutável. Já o ensinou Leon
Duguit, há muitos anos, quando lhe questionaram que a Constituição francesa de
1899 não consagrava, no seu texto, a Declaração de Direitos, como era o propósito
de todas as Constituições. O sentido da Constituição escrita foi, sobretudo, declarar
direitos para a posteridade, e não organizar Estado. Duguit disse que as normas de
declaração de direitos são as chamadas normas da superlegitimidade
constitucional, normas que não precisam de estar escritas na Constituição para
valerem, normas de primeira grandeza, que são chamadas normas de decisão
fundamental, por Carl Schmitt. Há uma gradação das normas constitucionais e,
dentro desta estrutura, a Declaração de Direitos ocupa uma grandeza superior a
outras normas constitucionais. No conjunto constitucional, se tivermos de fazer
uma interpretação, devemos tê-la harmônica, orgânica, e dando valor principal às
normas constitucionais relativas à Declaração de Direitos. As normas
secundárias, que são aquelas acessíveis à emenda constitucional, são inferiores às
normas da Declaração de Direitos’. (g.)

O Desembargador Kildare Carvalho, em sua indispensável obra Direito constitucional didático, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2002, p. 215-218, cuidando da extensão dos direitos fundamentais, expõe:

A Constituição Federal de 1988 foi promulgada com 315 artigos, sendo 245 na
parte permanente e 70 do ato das disposições transitórias, superando em extensão
normativa as Constituições brasileiras anteriores. Essa circunstância poderia
contribuir para o agravamento de conflitos ou tensões normativas, não fosse a
existência, no texto constitucional, de princípios fundamentais (Título I),
harmonizando e dando coerência e consistência ao complexo normativo da
Constituição, além de fixar as bases e os fundamentos da nova ordem
constitucional. [...] De se notar que os princípios expressam valores fundamentais
adotados pela sociedade política, vertidos no ordenamento jurídico, e informam
materialmente as demais normas, determinando integralmente qual deve ser a
substância e o limite do ato que os executam”. (g.)

Conclui-se, dessa forma, aliado a melhor doutrina, que, com a edição da Constituição Federal, houve autêntica ab-rogação do art. 5º, I, da Lei 1.533/51 pelo art. 5º, incisos XXXV e LV, da CF/88.

1* Assessor de Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais.

Referências bibliográficas
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal anotada. 5. ed. São Paulo: Saraiva.
CARVALHO, Kildare. Direito constitucional didático. Belo Horizonte: Del Rey Editora,
2002.
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 12. ed., Editora M, 1996.
TAVARES, André Ramos. Elementos para uma teoria geral dos princípios na perspectiva
constitucional, p. 21-51. In: LEITE, Geraldo Salomão (Org.). Dos princípios na perspectiva
constitucional - Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São
Paulo: Malheiros, 2003.