Entrevista concedida pelo pianista e compositor sírio Malek Jandali ao jornalista Jorge Pontual, para o programa Milênio, da Globo News. O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura Globo News às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30.
Há 3.400 anos, no porto de Ugarit, frente às águas azuis do Mediterrâneo, um compositor imprimiu num tablete de argila uma canção para a deusa da lua. Um dos berços da civilização, onde surgiu o primeiro alfabeto. Ugarit é hoje um monte de ruínas. Fica na Síria, país que se tornou independente da França há 67 anos, em 17 de abril de 1946. Arqueólogos encontraram o tablete de argila, decifraram as inscrições e a canção de Ugarit passou a ser a mais antiga partitura musical da humanidade. Antes de virar colônia francesa, a Síria pertenceu ao império otomano, e antes disso, na encruzilhada entre Ocidente e Oriente, viu passar inúmeros exércitos e civilizações. Sua cultura milenar resiste à passagem do tempo e, agora, a uma guerra civil que começou há dois anos e já causou a morte de 70 mil pessoas. O músico Malek Jandali, de família síria, fez carreira nos Estados Unidos como pianista e compositor. Ganhou destaque ao ressuscitar num arranjo para piano a música da antiga Ugarit. Figura de destaque no movimento pela democracia em seu país de origem, Malek recebeu o Milênio para falar da vitalidade da cultura de seu povo e da esperança de que das cinzas da guerra nasça uma nova síria.
Jorge Pontual — Nós ouvimos o tempo todo sobre a guerra na Síria, sobre mortes e todas essas coisas que têm acontecido, mas queremos que você nos conte sobre o povo da Síria. Quem eles são? Qual é a cultura deles? Como é a música? O que eles defendem? E você os representa aqui, neste momento.
Malek Jandali — Para começar, eu queria cumprimentar você e seus telespectadores dizendo: “Que a paz esteja com vocês.” Salam. E é assim que os sírios se cumprimentam. Salam tem muitos significados. Significa “paz”. A nossa cultura é uma cultura de paz. Quando Ramsés foi do Egito para a Síria, por volta de 1200 a.C., com seu exército, seus arsenais e todo tipo de soldados, para iniciar uma guerra, perto de Homs, que é minha cidade na Síria. A palavra para a “guerra”, em árabe, é “hurbb”. O povo sírio disse: “Não, é uma palavra muito comprida e muito feia. Vamos encurtá-la e tirar o “R” do meio. Vamos transformá-la, de hurbb, em hubb, que significa “amor”. Assim, durante a Batalha de Kadesh, por volta de 1200 a.C., a História foi testemunha do primeiro tratado de paz da humanidade e foi na Síria. Em vez de travar uma guerra, eles fizeram um tratado de paz, e a ONU até usou alguns artigos dele em sua Carta. A situação atual não é uma guerra. É uma revolução histórica feita pelo povo, para o povo, em busca de algo muito nobre e simples: a liberdade. É o que as pessoas querem. Todos nós nascemos livres e é chegada a hora de o povo sírio ser livre após décadas de ditadura.
Jorge Pontual — É uma civilização muito antiga, um país muito antigo.
Malek Jandali — Eu sempre levo comigo uma réplica da mais antiga notação musical do mundo. E eu sou um sírio muito orgulhoso de poder dizer que meus ancestrais, na Síria, inventaram a maneira como escrevemos música, a notação musical. Eles também inventaram o alfabeto.
Jorge Pontual — Mais recentemente, a civilização árabe teve tanto contato com a Andaluzia, com a Espanha. A música típica daquele país é muito parecida com a música que os árabes tocam na Síria, não é?
Malek Jandali — É verdade que meus antepassados em Ugarit, na Síria, inventaram a notação musical em primeiro lugar. E eu acredito que a formação dos coros, da música de câmara e da orquestra também teve início nessa região. Quando essa cultura se estendeu para a Europa, para o que hoje nós chamamos de Ocidente. Eu não acredito nisso de Ocidente e Oriente, porque onde termina o Ocidente e começa o Oriente, e onde termina o Oriente e começa o Ocidente? Somos todos iguais.
Jorge Pontual — Eles se encontram.
Malek Jandali — Exato. Quando chegamos à Espanha, à Andaluzia e a Córdoba, meus ancestrais levaram consigo instrumentos, pesquisas, a academia e permita-me surpreendê-lo: o músico árabe iraquiano Ziryab fundou o primeiro conservatório de música da Europa, em Córdoba. Você imagina isso? Era uma instituição acadêmica para ensinar música e notação musical. Ele levou todos aqueles maqams, como nós chamamos, que são as partituras árabes, as escalas. Acho que isso foi mais uma revolução, que criou as bases da música ocidental. Um exemplo disso é uma peça minha chamada “Yafa”. Eu usei as escalas ocidentais, mas, ao mesmo tempo, eu faço tentativas de tocar quartos de tom, pois a música árabe tem quartos de tom. Esse foi um exemplo dos pequenos motivos musicais que eu uso. E é interessante, porque o piano é um instrumento ocidental, mas, ao mesmo tempo, eu tenho minha rica herança.
Jorge Pontual — Mas essa cultura vai sobreviver?
Malek Jandali — A cultura vai sobreviver enquanto tivermos artistas verdadeiros. O que eu faço é uma pequena tentativa de pegar essas lindas melodias de Aleppo, como o tarab, o muwashshah e o qudoods, que são nossas músicas tradicionais e antigas sírias, e tentar fazer um arranjo para piano e para orquestra, para preservá-las em primeiro lugar, e para apresentá-las de uma maneira nova, em uma tentativa de cuidar da minha pátria. É isso que é tão importante. A cultura protege os povos das invasões e de qualquer destruição. É por isso que a cultura é tão importante para qualquer sociedade.
Jorge Pontual — Você compôs uma música que ficou muito famosa por homenagear a Revolução, chamada Watani Ana. E o que aconteceu? Sua família sofreu retaliações por parte dos ditadores depois que você a tocou em Washington, não foi?
Malek Jandali — Exato. Isso foi no início de 2011, um mês depois das rebeliões. Quando eu vi crianças pequenas sendo feridas e mortas sem motivo algum... Eles sempre atingem as crianças, pois elas não têm religião. Quando se tem um bebê de 4 meses na incubadora, esse bebê não tem ideologia política e não tem uma religião com a qual possa pensar. Então, matar crianças é simplesmente inaceitável. Como artista e ser humano, como ativista sírio, eu me senti na obrigação de ser a voz daquelas crianças. Então, eu compus uma música universal, que nem tinha a palavra “Síria” na letra, pois a watani, sua terra, pode ser qualquer lugar. Mas ela foi lançada no Dia da Independência, que é dia 17 de abril. Eu a toquei em Washington e, em 72 horas, o regime percebeu o poder da música, o soft power da arte, e mandou seus algozes atacarem minha mãe e meu pai. Para ser sincero, foi sorte eles não terem sido mortos, porque, poucos meses depois, eles destruíram a cidade inteira. Eles bombardearam igrejas, hospitais, minhas escolas, minha casa e minhas lembranças. Eles atacaram monumentos em Aleppo. Foi um ataque brutal à minha pátria. Era uma canção simples, que saiu do meu coração para o mundo. Uma tentativa de contar a história desses homens corajosos e da histórica Revolução Síria.
Jorge Pontual — Seu pai e sua mãe vieram morar com você por um tempo, mas seu pai acabou voltando para a Síria. O que aconteceu?
Malek Jandali — Logo depois do ataque, eu consegui tirar meus pais de lá, para a segurança deles, pois a vida deles corria risco. Houve essa escalada de crimes contra a humanidade por parte do regime contra o povo sírio. Até o momento, são mais de 100 mil civis mortos, dos quais 15 mil são mulheres e crianças, mas meu pai não conseguiu ficar aqui nos EUA, e decidiu voltar. Por ser médico e um ser humano bondoso, ele decidiu voltar para ajudar as pessoas como médico. Ele ficou lá por mais de três meses ajudando os feridos, as crianças, e foi uma boa terapia para ele, depois do que aconteceu, ficar ao lado do povo.
Jorge Pontual — Você compôs uma música em homenagem a Ibrahim Qashoush. Fale um pouco sobre ele.
Malek Jandali — Ibrahim Qashoush, na minha opinião, foi o primeiro verdadeiro artista sírio da história contemporânea. Ele era um bombeiro sírio, mas era verdadeiro e teve a coragem de romper a lei do silêncio na Síria, na cidade de Hama. Ele cantava, do fundo do coração: “Vá embora, ditadura. Vá embora, ditador”. E a maior manifestação reuniu mais de 600 mil civis. Ele mobilizava as pessoas e o regime não podia permitir aquilo. Eles são contrários ao povo, à música, à liberdade, eles são contrários à arte, então capturaram a pessoa que acreditavam ser Ibrahim Qashoush, cortaram sua garganta e o jogaram no mesmo rio por onde Ramsés chegou em 200 a.C. para travar aquela guerra que acabou se tornando um tratado de paz. Eles jogaram o corpo dele nesse rio, o Orontes. Para mim, aquilo foi histórico. Para mim, aquilo foi histórico, e, para levar adiante sua mensagem artística, para mobilizar as pessoas — a mensagem dele era de “liberdade” —, eu dei à minha música o nome de “liberdade”, “Freedom (Qashoush Symphony)”. Eu resolvi orquestrá-la para piano e orquestra, sem uma única palavra, para fazer dela uma mensagem universal e dar ao povo da síria uma voz universal através da música e da arte.
Jorge Pontual — Agora, existe essa nova coalizão síria, que foi reconhecida por mais de 100 países, inclusive os EUA, como o governo da Síria no exterior. Alguma coisa vai sair disso. A oposição agora está se organizando e há esperança de que isso chegue ao fim. Mas você compôs um hino para a nova Síria? Como foi isso?
Malek Jandali — Eu compus o que eu chamo de “hino sírio dos livres”. É um hino para as pessoas livres da Síria. Deixe-me explicar uma coisa. O poder das pessoas é muito maior do que as pessoas no poder. Por isso, o hino é uma tentativa de expressar meus sentimentos e começa com a palavra “Síria”, que não consta do nosso hino nacional atual. Você consegue imaginar um hino nacional que não tem o nome do país? Então, eu fiz questão de começar com “Síria” e de terminar com a palavra “liberdade”, que é nossa esperança. Muitas pessoas me perguntam por que eu me envolvo nisso, o que o piano e a arte têm a ver com revoluções, com política e com esse mundo cruel imposto ao povo pela ditadura. Mas deixe-me dizer uma coisa. Quando o Brasil participa de uma Copa do Mundo ou das Olimpíadas, como o país se apresenta? Através de duas formas de arte: a bandeira, que é uma obra de arte colorida, com cores lindas — o verde, o amarelo — e uma música, que às vezes vem acompanhada de uma bela poesia, que é a letra, mas, às vezes, não tem letra. O hino da Espanha não tem uma única palavra. Esse é o poderoso soft power da arte e da música, e é por isso que ditaduras temem a música, temem a arte e temem pessoas verdadeiras.
Jorge Pontual — Você acha que podemos dizer “até o ano que vem, em Homs”?
Malek Jandali — Eu convido você e seus espectadores para um belo concerto gratuito em uma Síria livre no teatro de ópera, que pertence ao povo sírio, não a um ditador. E eu garanto que teremos uma bela sinfonia síria ao ritmo da liberdade.
Revista Consultor Jurídico, 10 de maio de 2013