Transformar a colcha de retalhos que hoje é a proposta de reforma de Judiciário em algo que efetivamente signifique uma melhor prestação de serviço à sociedade é o grande desafio de legisladores e administradores, que parece estar longe do fim. A queda de braço dentro das próprias estruturas do Judiciário e ainda com os poderes Legislativo e Executivo ajuda a complicar o problema, que tem a sua dimensão mais visível com os números de Minas, onde o déficit de juízes chega a 260 cargos, de um total de 865 no estado, ou seja, mais de 30%.
No Brasil, são 16 mil juízes nas justiças estaduais e federais para atender uma população hoje de 180 milhões de habitantes com as mais diversas demandas. Para dar apenas um exemplo no estado com 853 municípios, Cambuquira, cidade turística no Circuito das Águas, está há mais de três anos sem juiz. Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasilde Minas (OAB/MG), Raimundo Cândido, o grande entrave da reforma do Judiciário está na falta de vontade política do Legislativo em promover a modernização do poder. “Os políticos não querem o Judiciário forte porque muitos deles são réus em processos e seriam vítimas dessa agilidade”, aponta Cândido, sem titubear em dizer o que para ele é a principal causa.
Uma afirmativa que encontra sustentação quando se analisa, por exemplo, o caso dos suspeitos de envolvimento com a Máfia dos Sanguessugas – venda de ambulâncias superfaturadas –, que tinha participação de deputados e prefeitos. O grupo agia desde 1999 e a tramitação dos processos é tão lenta que somente agora as denúncias criminais do Ministério Público estão sendo recebidas. Levantamento do MP Estadual demonstra ainda que, dos 853 prefeitos mineiros, 411 são investigados, na maioria dos casos por fraude em licitação, superfaturamento, desvio de verba e improbidade administrativa.
Para ter ideia das inúmeras propostas de lei e emendas constitucionais em tramitação na Câmara dos Deputados para mudar o Judiciário, basta acessar a página da Secretaria de Reforma do Judiciário, órgão da estrutura do Ministério da Justiça criado pelo governo Lula para dar ordenamento no imbróglio em que se transformou o problema. As propostas vão desde o tempo de duração do mandato dos ministros do Supremo Tribunal Federal até a mudança de competência dos juízes eleitorais.
Com a experiência de quem vive na carne o problema, o presidente da Associação Mineira dos Magistrados (Amagis), Nelson Missias, afirma que a dificuldade está nos ouvidos de mercadores que se faz quando as propostas partem do próprio Poder Judiciário, especialmente aquelas apresentadas pelos juízes de primeira instância, a base da pirâmide da Justiça. “Nunca somos ouvidos e, no entanto, somos quem está em contato direto com a sociedade. Portanto, aqueles que conhecem de perto o problema”, afirma Missias, ressaltando que sempre ouviu falar de reforma no poder, sem que efetivamente algo aconteça.
Nelson Missias também não titubeia ao apontar o dedo para a responsabilidade do Executivo no fracasso das iniciativas de melhoria. “O Estado é o primeiro que deveria dar o exemplo. Para oferecer um acesso maior, deveria, entre outras coisas, abrir mão da contagem de prazo em quádruplo para contestar ação, em dobro no caso de recursos, e ainda a revisão necessária das sentenças”, defende Missias, explicando: “Isso emperra os processos, põe obstáculos à Justiça e é preciso considerar que alguns setores do poder público estão muito mais bem equipados para se defender que o próprio cidadão comum. Portanto, esses privilégios do Estado não se justificam nos dias atuais”.
Com a responsabilidade de quem deve elaborar e aprovar justamente novas regras para o Judiciário, o deputado federal Maurício Rands (PT-PE) – que foi relator da súmula vinculante – aponta o dedo na direção contrária e diz que o lobby de setores da Justiça é o grande entrave para que ocorram mudanças. Garante que são os próprios integrantes do Judiciário que têm dificultado a reforma. “São muitos os conflitos internos com embates sérios entre os juízes e ministros dos tribunais superiores. Também os advogados, Ministério Público, Defensoria Pública apresentam posições conflitantes. É o lobby de cada categoria em detrimento do todo”, conclui.
Na avaliação de Rands, mesmo que lentamente, a reforma vem avançando e destaca como um grande passo a Emenda Constitucional 45, que criou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão de controle externo. “Atualmente, é o poder menos conectado com a sociedade e tem assumido uma prática perigosa que é o ativismo judicial. Eles querem substituir o Legislativo e Executivo, fazendo e executando leis, mas não têm a legitimidade do princípio democrático. Assim se tornam supercidadãos, com pretensões de substituir o povo com seu voto”, critica.
Uma PEC na contramão
Se não existe unanimidade entre diferentes setores sobre as causas que atravancam a reforma, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC ) 351/2009, a PEC dos Precatórios, foi capaz de unir todos em coro nas críticas. O presidente da OAB/MG, Raimundo Cândido, considerou a nova norma, já aprovada, uma vergonha nacional por institucionalizar o calote. “Um dos pontos chaves do problema é que o maior número de processos é contra o poder público, cerca de 60% das causas em tramitação, que quando é vencido não paga”, afirma.
De acordo com o texto, que estabelece regras para o pagamento dos precatórios, devem ser observados o seguintes critérios: leilões para pagar primeiro os credores que oferecerem os maiores descontos; parcelamento dos débitos em até 15 anos; vinculação de um percentual das receitas dos entes federativos para pagamento dessas dívidas; ordenação da fila de precatórios em ordem crescente de valores, e não pelo critério cronológico; e coeficiente que atualiza cadernetas de poupança como o índice de correção dos precatórios — hoje, são corrigidos à taxa de 6% ao ano mais o IPCA. Uma parte do valor destinado a pagar os precatórios, no entanto, será destinada para uma outra lista, esta respeitando a ordem cronológica.
Efetividade Para o presidente da Amagis, Nelson Missias, a PEC dos Precatórios anda no sentido contrário do que deve ser a reforma do Judiciário porque retira a efetividade da Justiça. “É como se o estado admitisse que deve, mas não vai pagar, ou melhor, quitar apenas os valores ínfimo. Isso equivale dizer que a decisão judicial deixa de ter valor efetivo”. Nesta mesma linha, o deputado federal Maurício Rands afirma que a PEC dos Precatórios está longe de ser uma solução, uma vez que adia o pagamento do precatório. Para o parlamentar o necessário é criar celeridade para o Judiciário, uniformidade para afastar a sensação de dois pesos e duas medidas e a isenção.
Fonte: Jornal Estado de Minas