O dia 22 de janeiro de 2020 está marcado na memória da família da cabeleireira Márcia Rodrigues das Neves Evangelista, 55 anos. Nesse dia, no Serviço de Reconhecimento de Paternidade (SRP), que funciona na Comarca de Santa Luzia, sua filha afetiva Marcela, 17 anos, recebeu o direito de ver escrito em sua certidão de nascimento o nome da mãe “do coração”. O documento de Marcela, que por anos só tinha o nome da mãe biológica, recebeu o nome de uma segunda mãe, que cuidou da adolescente desde que ela tinha seis meses. A família, que acolheu Marcela quando ela era apenas uma bebê, estava agora legal e oficialmente completa.
Assim como a história de Márcia e Marcela, muitas outras, com detalhes emocionantes, doloridos, sofridos ou com final feliz, são escritas todos os dias no SRP de Santa Luzia, serviço ligado ao Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) daquela comarca. Desde que a unidade foi implantada, em fevereiro de 2019, mais de 600 procedimentos de reconhecimento de paternidade ou maternidade já foram abertos no local.
O 3º vice-presidente do TJMG, desembargador Newton Teixeira Carvalho, explica que a meta é expandir o serviço de reconhecimento para todo o Estado (Crédito: Mirna de Moura/TJMG)
“Esse é o papel social e de cidadania do Cejusc. Por meio desse trabalho, evitamos uma demorada ação investigatória de paternidade. Além disso, contribuímos para uma aproximação mais rápida entre pai e filho, auxiliando na formação de vínculos e garantindo a prevalência do princípio do afeto”, afirma o 3° vice-presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, desembargador Newton Teixeira Carvalho, responsável, no TJMG, pelas iniciativas de conciliação e mediação realizadas nos Cejuscs. O magistrado lembra que, se o processo de reconhecimento dos genitores demorar, pode ocorrer um afastamento em relação à criança, o que não é desejável para o desenvolvimento humano.
Expansão
A unidade de Santa Luzia integra um projeto-piloto do TJMG que pretende, futuramente, transformar a iniciativa em uma política definitiva, que será expandida para as demais comarcas do Estado. O SRP de Santa Luzia se espelhou no já consolidado Centro de Reconhecimento de Paternidade (CRP), que funciona em Belo Horizonte desde 2011. “Temos trabalhado para que os serviços de reconhecimento de paternidade sejam expandidos para todo o Estado. É importante que todo juiz coordenador de Cejusc faça esse tipo de atendimento. Sobretudo no interior, muitas dessas crianças que têm o registro incompleto são filhas de mães humildes, que têm dificuldade de acessar o Poder Judiciário e de contratar um advogado”, explica o 3° vice-presidente do TJMG.
O desembargador ressalta que, ao abraçar o serviço de reconhecimento de paternidade, o Cejusc contribui para o exercício da cidadania. “Só podemos parabenizar a equipe de Santa Luzia”, disse. O magistrado afirmou ainda que, além do reconhecimento formal do genitor na certidão, o trabalho do SRP garante outros direitos às crianças e adolescentes, como a pensão alimentícia e a possibilidade de visita, nos casos devidos. “Sem falar na aproximação entre pais e filhos e nos laços de afeto, que se constroem no dia a dia”, enumera.
Resgate
A juíza Edna Márcia Lopes Caetano, titular da 3ª Vara Cível de Santa Luzia e coordenadora do Cejusc, confirma esse importante papel social da iniciativa: “Trabalhamos no resgate da cidadania, ajudando a preencher uma lacuna na família, onde falta o nome do pai ou da mãe. Não estamos falando apenas das questões patrimoniais e de direito civil que advêm do reconhecimento de um ascendente, mas também de afetividade”.
A magistrada explica que o SRP é um braço do Cejusc que atua no reconhecimento de paternidade e maternidade nos casos sem judicialização. “Temos uma demanda que vem dos cartórios de registro civil. Sempre que uma criança nasce e não há o nome de um dos genitores no documento, somos automaticamente informados. Também atendemos a demanda que vem do cidadão que quer fazer o reconhecimento espontâneo — pai ou mãe — ou do próprio filho já maior de idade”, detalha.
A juíza explica que o serviço foi planejado para ser democrático e acessível. Por isso, não há custos. “A pessoa interessada deve comparecer ao SRP, onde vamos fazer o acolhimento e verificar os documentos e os dados do suposto genitor. Esse genitor recebe uma carta-convite para comparecer ao SRP, onde explicamos todo o procedimento. Se há dúvidas quanto à paternidade, o TJMG providencia a realização do exame de DNA. Se não há dúvidas, o genitor pode fazer o reconhecimento espontâneo”, diz a magistrada.
Caso o genitor se recuse a fazer o reconhecimento, o caso é remetido para a esfera judicial. “Mas o nosso trabalho é sempre no sentido de tentar resolver o conflito da forma mais simples. Ouvimos esse pai e essa mãe e mostramos o significado e a importância dessa convivência e desse reconhecimento”, lembra a magistrada. Com a conclusão do procedimento, há a emissão de um novo documento e são verificados os demais direitos que esse filho ou filha tem.
Reconhecimento socioafetivo
Além do reconhecimento de maternidade ou paternidade biológica, o SRP também faz o reconhecimento socioafetivo, fruto da longa convivência familiar entre pessoas que não têm laços sanguíneos. “Nesses casos, fazemos entrevistas e uma investigação do histórico para constatar se os relacionamentos estão estreitados. Isso é muito importante, porque o reconhecimento de paternidade é irrevogável e dele decorrem obrigações que não poderão ser recusadas pelo pai. Então, o pai afetivo precisa ter essa consciência”, explica a juíza Edna Márcia Lopes Caetano.
O SRP de Santa Luzia foi implantado após uma fase de expansão dos Cejuscs no Estado. Isso ocorreu a partir de 2019, quando a Assessoria da Gestão da Inovação (Agin), ligada à 3ª Vice-Presidência do TJMG, elaborou um plano de expansão da iniciativa, dando início à construção de uma sistemática para que o serviço fosse replicado nas comarcas do interior. A primeira delas a receber uma unidade foi Santa Luzia.
Dos 668 procedimentos instaurados de fevereiro de 2019 a julho de 2021 no SRP de Santa Luzia, 480 tiveram início a partir da notificação dos cartórios e 188 foram de demandas espontâneas. Ao longo desse período, o SRP realizou 112 exames de DNA.
Expansão
A chegada do serviço de reconhecimento de paternidade na Região Metropolitana de Belo Horizonte elevou o patamar do projeto desenvolvido pelo TJMG nessa área, que passou a ter abrangência estadual e foi rebatizado com o nome de Paternidade para Todos. Essa iniciativa ampliada rendeu ao TJMG, em 2020, o Prêmio Conciliar é Legal, na categoria Tribunais, concedido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). “Sabemos que há muitas outras crianças, no interior, precisando de um serviço como esse. A premiação nos mostrou que o esforço vale a pena e que, trabalhando em equipe, podemos fazer diferença na vida e na realidade das pessoas. O prêmio também confirma a importância de que a construção da solução dos conflitos seja feita pelos próprios envolvidos, o que traz resultados muito mais efetivos”, pontua a juíza.
Ao longo do trabalho, a juíza Edna Márcia Lopes Caetano diz que foi possível presenciar histórias emocionantes, que despertam sentimentos variados. “A gente vê nascer um relacionamento entre as pessoas. É um pai, é um nome na certidão, é uma justificativa para a sociedade. Mostramos aos genitores que uma relação afetiva que não deu certo ou que ficou mal resolvida precisa ser diferenciada da criança ou adolescente que nasceu e que não tem culpa dos problemas vivenciados pelo casal. O menor não pode deixar de exercer os seus direitos civis por causa da situação entre os pais”, afirma.
A juíza diz que as histórias felizes registradas no SRP só confirmam que magistrados, servidores e colaboradores, ao unir forças e acreditar, podem ser agentes de transformação na vida das pessoas que procuram o Cejusc. “Elas vêm em busca de que o sonho vire realidade. Nós levamos esse trabalho muito a sério e o realizamos com amor e carinho, fruto de um esforço de equipe”, disse.
Atendimento
Carla Lara, servidora que atua na linha de frente no SRP de Santa Luzia, explica que os atendimentos têm sido feitos remotamente, nos últimos meses, por meio da plataforma eletrônica Cisco Webex. “Os atendimentos presenciais foram retomados há cerca de um mês. Porém, eles são priorizados apenas quando as partes envolvidas não têm acesso aos recursos tecnológicos”, detalha.
A servidora explica que, assim que o cartório notifica o SRP de que uma criança nasceu e não tem o nome do pai no registro, a mãe é notificada e convidada para uma conversa para que tenha início um procedimento de investigação de paternidade. “Também atendemos muitos casos de reconstrução familiar, que é quando o pai não está mais vivo e é preciso fazer o exame de DNA a partir de algum outro parente”, conta.
Conquista
No caso da adolescente Marcela, o documento com o nome da mãe afetiva trouxe alívio. “Era sempre difícil resolver questões relacionadas à escola e à confecção de documentos pessoais. Daí, precisávamos ficar explicando que eu era adotada”, conta Marcela.
A adolescente é filha natural de uma ex-colega de escola de sua irmã adotiva. “Minha filha tinha uma colega de escola que foi mãe aos 16 anos. Enquanto eu saía para trabalhar, meus filhos ficavam com pena da Marcela, que era um bebê e ficava muitas horas na companhia da mãe dela, em um bar perto da minha casa. Daí, meus filhos pediam à jovem mãe para cuidar da bebê durante o dia, assim que eu saía, e a devolviam à mãe antes que eu retornasse. Só que um dia a mãe da Marcela foi embora do bar e não voltou para buscá-la. E meus filhos não sabiam o que fazer”, relembra Márcia.
Na ocasião, a cabeleireira tinha duas filhas, com 16 e 14 anos, além de gêmeos, com 10. “Percorremos um longo caminho para regularizar a situação. Procurei a mãe da Marcela várias vezes. Ela me disse que não me daria ela de papel passado, mas que eu podia cuidar da bebê, desde que a menina soubesse quem era a mãe biológica e que ela tivesse direito de visitá-la. Eu já tinha quatro filhos e passava por um momento complicado da vida. Então, tomar a decisão de ficar com a Marcela foi difícil. Foi nessa época que eu me lembrei de um sonho que sempre tinha e que não conseguia explicar. Nesse sonho, sempre aparecia uma menininha que puxava a barra da minha roupa. Eu entendi que essa menina era a Marcela”, conta.
Márcia explica que procurou ajuda em diversos locais para tentar resolver a situação, mas nunca conseguiu orientação e atendimento adequados e claros quanto ao que fazer, até conhecer o SRP.
Alívio
Marcela explica que o reconhecimento da maternidade socioafetiva e a nova certidão trouxeram alívio, sobretudo por questões práticas da vida civil. “Eu nunca tive dúvidas de que pertencia a essa família. Foi uma conquista para mim, pois tentávamos resolver isso há muitos anos. Sei que minha mãe biológica teve outras duas filhas, que ela também não criou. Uma delas também conseguiu o reconhecimento socioafetivo no SRP de Santa Luzia em relação à família que a adotou. Mas a minha outra irmã eu não consegui descobrir ainda onde está”, revela.
Por enquanto, a adolescente não tem o nome do pai no registro, porque a mãe e o pai adotivo se separaram. “No dia do reconhecimento no SRP, eu havia brigado com o meu pai. Então, eu estava chateada com ele e não falei para ele ir com a gente”, diz. Márcia conta que, no dia do reconhecimento no SRP, a família ria e chorava com o desfecho tão esperado e tão procurado.
CRP
Em Belo Horizonte, o CRP funciona na Vara de Registros Públicos e também é vinculado ao Cejusc. Criado em 2011, o serviço já promoveu diversos mutirões de reconhecimento de paternidade, promovendo edições itinerantes em vários locais da capital. Em outubro deste ano, o CRP fará o primeiro mutirão virtual para a inclusão do nome de mães e pais nas certidões de nascimento. As inscrições para participar do evento podem ser feitas até 31 de agosto no Portal TJMG.
Fonte: Assessoria de Comunicação Institucional – Ascom
Tribunal de Justiça de Minas Gerais – TJMG