O Poder Judiciário brasileiro vem se ressentindo, desde o advento da Emenda Constitucional 45/2004, de uma complementação da reforma parcial então iniciada, bem como da instrumentalização, por via legislativa, dos seus direitos, garantias e prerrogativas. Das novidades introduzidas pelo poder constituinte derivado, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afigura-se como a mais proeminente, de maior espectro de efeitos e, talvez, a mais problemática.
Dentre as críticas que se fazem ao CNJ, várias, por certo a maioria, decorrem da falta de regras próprias e adequadas a regulamentar os poderes normativo e correicional do órgão. A ausência de um novo Estatuto da Magistratura, cuja iniciativa é privativa do Supremo Tribunal Federal (STF) e se encontra em gestação, condena a magistratura brasileira ao tratamento de uma legislação já deslegitimada pela origem e de duvidosa constitucionalidade em diversos aspectos (Lei Complementar 35/79, Lei Orgânica da Magistratura Nacional - Loman).
Seja como for, o atraso institucional imposto à magistratura nacional por sua mais alta corte (passados mais de vinte anos de vigência da Constituição, ainda não se desincumbiu o STF da tarefa de encaminhar ao Congresso Nacional, para os necessários debates e aperfeiçoamentos, um anteprojeto de Estatuto da Magistratura) apresenta-se como torniquete a estancar e impedir progressos democratizantes reclamados pelo regime de liberdades em vigor. Curiosamente, uma concepção verticalizada das relações entre as diversas instâncias do Judiciário contaminou a criação do CNJ, atribuindo a presidência do órgão ao presidente do STF, justo a corte que não se revelou, até o momento, apta a atender com a necessária celeridade os reclamos da iniciativa legislativa constitucionalmente estabelecida.
Breve comparativo com outras instituições integrantes do mecanismo da Justiça em nada favorece a magistratura brasileira: a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB tem seu renovado estatuto desde 1994 (Lei 8.904), o Ministério Público e a Defensoria Pública têm suas leis orgânicas nacionais vigentes há mais de 15 anos (respectivamente, Lei 8.625/93 e Lei Complementar 80/94).
Autêntico desafio assincrônico está a exigir redobrados esforços de superação pelas entidades associativas de classe, do que não se tem desincumbido, lamentavelmente, a atual administração da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Se o STF não cumpre a missão constitucional de apresentar anteprojeto de lei do novo Estatuto da Magistratura, não deveria a AMB omitir-se de discutir o tema para fazer nossa mais elevada corte enxergar que a magistratura de carreira deseja e necessita da democratização e desconcentração das instâncias decisórias, bem como de participação na formulação da legislação que definirá seus rumos neste século.
O modelo verticalizado das relações entre instâncias no Judiciário reclama revisão a se efetivar na esfera constitucional. Entretanto, grande passo daria o STF se assumisse o papel de senhor da democratização dos destinos da magistratura brasileira, apresentando, após tramitação interna com participação efetiva dos interessados, o esperado anteprojeto de lei. Não há como aguardar uma suposta complementação da reforma constitucional do Judiciário para só então pensar em substituir a vigente Loman.
A posição de timoneiro da América Latina, por superioridade de indicadores econômico/sociais, já não pertence ao nosso país, como retratam todas as pesquisas e os informes internacionais, especialmente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Como não poderia deixar de ser, vem perdendo o Judiciário brasileiro a condição de referência para nossos vizinhos de recentes e cambaleantes democracias. O movimento democrático, que varreu nosso subcontinente nas últimas décadas, não surtiu ainda efeitos na estrutura das relações entre instâncias judiciárias brasileiras, não fez do Judiciário pátrio uma instituição, no que concerne a relações internas, democrática na concepção e no funcionamento.
Um moderno Estatuto da Magistratura, que contemple institutos democratizantes da administração judiciária, certamente obviará os males que sua ausência vem causando. O próprio CNJ (não discuto aqui as qualidades ou deficiências estruturais de que possa padecer, ou ainda se se trata de instituição adequada ou não ao modelo constitucional de Judiciário vigente à época de sua criação), que vem de registrar confusões entre matérias administrativas e judicializadas, administração judiciária e autonomia das assembléias legislativas na criação de normas conformes ao desenvolvimento histórico/político de cada estado da federação, haverá de ser contemplado e de se beneficiar dos limites que legitimamente serão construídos na arena de debates do Congresso Nacional.
Se a cidadania pede, e os magistrados brasileiros necessitam, não há razão para que democracia e desconcentração das instâncias decisórias no Judiciário sejam postergadas.
(*) Presidente da Amagis