O atual sistema de seguridade social brasileiro foi inaugurado com a Constituição Federal de 1988, tendo ampliado consideravelmente os direitos do cidadão. Mas, mesmo com uma legislação detalhada, com regulamentação de leis posteriores e anteriores à nova Carta Magna, ainda existem lacunas e obscuridades no sistema previdenciário e assistencial. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no seu papel de unificador da jurisprudência, tem assumido um papel de vanguarda nessa área.

Uma das grandes mudanças que vieram na esteira da Constituição de 1988 foi a aposentadoria para os trabalhadores rurais. A Lei n. 8.212/1999, alterada pela Medida Provisória 951, garantiu que, se o trabalhador comprovar atividade rural, pode se aposentar por idade, iniciando a contagem a partir dos 14 anos e não necessitando comprovar a contribuição para a previdência social. Mas diversos julgados do STJ têm ampliado esse direito e abaixado a idade para contagem de tempo para 12 anos.

Os ministros do Tribunal têm entendido que o trabalhador rural geralmente começa suas atividades muito cedo e que trabalham em condições severas, o que justifica uma aposentadoria precoce. A professora de Direito da PUC de Curitiba e presidente o Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário (IBDP), Melissa Folmann, aponta que essa jurisprudência do STJ tem beneficiado milhares de trabalhadores que estavam à margem da previdência.

Em um dos processos que tratam dessa matéria, o Agravo de Instrumento 922625, seu relator, ministro Paulo Gallotti, destacou que a legislação que veda o trabalho infantil tem como objetivo proteger a criança e não prejudicar o trabalhador rural no momento de sua aposentadoria. No mesmo sentido, foi o voto do ministro Jorge Scartezzini no Recurso Especial 541103, destacando ser comum que crianças até mais jovens do que 12 anos trabalhem na terra em regime de economia familiar. Também votaram nesse sentido os ministros Maria Thereza de Assis Moura (Ação Rescisória 3629) e Felix Fischer no mesmo processo.
O ministro Arnaldo Esteves Lima, que também já julgou diversos processos dessa natureza, destacou que o STJ não trata apenas da questão da idade. Segundo o magistrado, o Tribunal tem pacificado diversos pontos nebulosos da aplicação da lei, criando uma doutrina que já beneficiou milhares de trabalhadores. “É importante para o julgador lembrar do caráter social do direito previdenciário. O juiz não pode deixar de ver a função de proteção social deste”, completou.

Outra novidade introduzida pela jurisprudência da Casa foi na questão da atividade especial, quando a atividade laboral envolve insalubridade ou periculosidade. Desde 1995, a nova legislação (Lei nº 9.032/1995 e a Medida Provisória 1.523, de 1996) passou a exigir laudo técnico comprovando o efetivo exercício para a concessão dos benefícios. Entretanto, os ministros do STJ entenderam que a lei não se aplica a situações anteriores.

Em um dos seus votos sobre o tema, o ministro Gilson Dipp, no Resp 924827, destacou exatamente esse ponto. “A legislação anterior exigia a comprovação da exposição a agentes nocivos, mas não limitava os meios de prova. A lei posterior, exigindo laudo técnico, tem inegável caráter restritivo ao exercício do direito, não podendo ser aplicada a situações pretéritas”, completou o magistrado.

O professor de direito e especialista em previdência, Roberto Amorim, apontou que não se pode surpreender o beneficiado com mudanças na lei. “Um princípio básico do Direito é a segurança jurídica. Isso é especialmente importante na previdência, onde lidamos com grandes intervalos de tempo”, comentou. A mesma fundamentação foi usado em outros julgados do STJ, como Resp 551917, relatado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura, e o Resp 436661, relatado pelo ministro Jorge Scartezzini, agora aposentado.

Desaposentação

Outra questão importante na qual o STJ inovou foi na possibilidade da desaposentação. A situação típica é quando a pessoa se aposenta proporcionalmente, mas continua trabalhando e contribuindo para o INSS e, posteriormente, usa esse tempo para conseguir aposentadoria integral. Na primeira e segunda instância, tem sido admitida essa possibilidade, mas é exigida a devolução dos benefícios já pagos. Já o STJ tem entendido que, como a pessoa já contribuiu com a seguridade, não haveria por que devolver os benefícios pagos.

O ministro Hamilton Carvalhido, no Resp 600419, considerou que abdicar da aposentadoria é um direito do beneficiado que depende apenas de sua própria deliberação. “A aposentadoria é um direito patrimonial disponível [a pessoa pode abrir mão] e o interessado pode escolher o sistema que melhor lhe assiste”, afirmou o magistrado. A ministra Laurita Vaz também entendeu nesse sentido no Resp 310884, no qual admitiu que um aposentado abrisse mão do benefício que recebia como trabalhador rural para poder receber outro mais vantajoso como trabalhador urbano.

Polêmica

Um entendimento do STJ que ainda levanta polêmica é a possibilidade de cobertura previdenciária para ligações homoafetivas, tema amplamente debatido na sociedade, no Legislativo e nos meios jurídicos. Em diversas ocasiões, os membros da Casa têm julgado em favor dessa hipótese. Um exemplo é o Resp 413198, relatado pelo ministro Hamilton Carvalhido, em que se considerou possível a abrangência de dependente do mesmo sexo no conceito de companheiro previsto no artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição Federal, frente à Previdência Social.

Além dos direitos previdenciários, o STJ também tem defendido outros direitos da seguridade social como o direito à saúde. O ministro Arnaldo Esteves Lima cita como exemplo a garantia dada aos portadores de HIV de receber medicação não prevista pelo Sistema Único de Saúde (SUS). “Por suas características, a aids é uma doença que exige tratamento prolongado e com medicamentos caros. Em muitos casos a vítima simplesmente não teria como pagar todos os remédios”, aponta. Um desses julgados foi o Resp 325337, relatado pelo ministro aposentado José Delgado. Ele entendeu que seria uma obrigação coletiva da União, estados e municípios fornecer os remédios aos pacientes e que a proteção à vida e à saúde seria uma obrigação imposta pela Constituição.

Em outro julgado, o ministro João Otávio de Noronha, no Mandado de Segurança 8740, admitiu que a regra que veda ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do País poderia ser flexibilizada. No caso, um equipamento necessário para o tratamento de criança portadora de mielomeningocele não seria produzido no país. Segundo o entendimento do ministro, o Estado deveria pagar pela aquisição deste. “Não se pode generalizar a aplicação da norma a ponto de abandonar, à própria sorte, aqueles que não podem obter, dentro de nossas fronteiras, tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna”, completou.

Um ponto importante destacado pela professora Melissa Folmann é que o STJ não usurpa o papel do legislador quando inova no direito previdenciário. “Entre os vários princípios que pautam o Direito Brasileiro estão o da boa fé e do in dubio pro misero (na dúvida, em favor do miserável). Quando a lei prejudica o cidadão ou tem lacunas que o impedem de exercer seus direitos, o julgador deve usar esses princípios para clarificar a situação”, comentou. Ela ressalta ainda que várias novas legislações foram criadas com base em decisões judiciais. Por fim, salienta que muitas vezes projetos sobre a seguridade social não têm prioridade no Legislativo.

Essa mesma visão é compartilhada pelo ministro Arnaldo Esteves Lima, para quem o juiz não vai contra o contexto do direito, mas, se há omissão, é função da Justiça supri-la. Salienta ainda que as decisões do STJ levam em conta o equilíbrio dos interesses sociais e dos direitos individuais. “A previdência e a assistência social não são o ‘cofre da viúva’, têm limites que devemos respeitar para manter a viabilidade do sistema. As posições do Tribunal jamais foram irresponsáveis nesse sentido”, ponderou o ministro Arnaldo Esteves.

Fonte: STJ