A decisão se deu no julgamento de Recurso Extraordinário contra decisão do STJ, de 2006, que trancou a ação penal contra quatro acusados de matar o calouro de medicina da Universidade de São Paulo, Edison Tsung Chi Hsueh. O estudante foi encontrado morto na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz, após o trote dos estudantes, em fevereiro de 1999.
Os quatro veteranos do curso de Medicina da USP, Frederico Carlos Jaña Neto, Ari de Azevedo Marques Neto, Guilherme Novita Garcia e Luís Eduardo Passarelli Tirico eram acusados de ter afogado o calouro. O Ministério Público Federal recorreu da decisão do STJ sob o argumento de que a corte excedeu sua competência ao se antecipar ao pronunciamento do presidente do tribunal do júri.
Como a matéria tem repercussão geral reconhecida, o Supremo definiu virtualmente a competência do STJ para derrubar ações penais em casos que julgue faltar evidências para sustentá-las — isso ainda na fase da apresentação da denúncia pelo Ministério Público e independente do pronunciamento da Justiça de primeira instância, ou seja, antes mesmo da instrução processual.
Acabaram vencidos o relator do Recurso Extraordinário, ministro Marco Aurélio, e os ministros Teori Zavascki e Joaquim Barbosa, que reconheceram que o STJ não poderia trancar uma ação penal cujas provas não foram sequer analisadas pela primeira instância. Outros cinco ministros, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Celso de Mello entenderam que o STJ pode trancar a ação diante da inépcia da denúncia, à margem do devido processo legal. Dias Toffoli e Luiz Fux não participaram da sessão
A discussão opôs os decanos da corte, ministros Marco Aurélio e Celso de Mello. “Qualquer pronunciamento judicial que rejeitar denúncia que impronuncie réus ou os absolva sumariamente, ou em sede de HC, concedido para extinguir esse procedimento legítimo, não ofende a causa de monopólio do MP e não transgride o princípio do juiz natural inerente ao júri”, disse Celso de Mello. “Neste caso, inexistem elementos idôneos que possam justificar a persecução penal dos recorridos”, insistiu, mais tarde, sobre o caso em julgamento.
O ministro Marco Aurélio apelou para que os atos do Ministério Público não fossem postos sob suspeita sem uma razão objetiva. “Pressupor em Habeas Corpus que um membro do Ministério Público ofereceu denúncia e que o recebimento pelo juízo aconteceu diverso da realidade fática apresentada nos autos do inquérito é presumir o extraordinário e contrariar o principio da boa fé do agente público”, discordou o ministro.
Argumentos
A defesa dos quatro estudantes, hoje médicos, depois de ter o pedido de Habeas Corpus indeferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, entrou com HC no STJ com o mesmo argumento de que a denúncia não trazia quaisquer elementos que demonstrassem a participação dos acusados no homicídio.
O STJ reconheceu a falta de justa causa em razão da ausência de elementos para dar prosseguimento à ação penal. A maioria dos ministros da 6ª Turma seguiu o voto do então relator, o ministro Paulo Galloti. Apenas o ministro Hamilton Carvalhido concluiu que não cabia, em sede de Habeas Corpus, a apreciação das provas a não ser como medida extrema, em casos de flagrante exceção.
O advogado dos acusados, José Roberto Battochio apelou nesta quinta para que o STF não procedesse com nova análise de provas, por não ser a corte "uma quarta instância”. O advogado foi ironizado pelo ministro Marco Aurélio, que observou que a ação ajuizada no STJ tinha mais de 100 páginas e se deteve, sim, em analisar a prova.
No STF, a discussão girou em torno do que dispõe os artigos 129 e 5º, inciso 38, da Constituição Federal, que tratam da competência do tribunal do júri e das funções institucionais do MP na promoção de ações penais públicas. Para Marco Aurélio, a decisão do STJ feriu a Constituição ao não respeitar o juízo de primeira instância.
“Ao tribunal descabe confrontar provas ou apontar se essas são boas ou não, mas apenas verificar se a acusação está lastreada em elementos colhidos, mesmo que isolados ou contraditados, sem emitir juízo de mérito, pois não pode haver imputação gratuita, carente de dados embasadores, ou reveladora de fato completamente diverso daquele apurado”, disse o relator, ministro Marco Aurélio, em seu voto.
Em seu parecer, a vice-procuradora–geral da República Deborah Duprat admitiu que cabe a extinção de ações penais quando a denúncia se mostrar inepta. Porém, segundo ela, não se podia concluir pela ausência de justa causa no caso em julgamento, uma vez que não houve, em primeira instância, o mínimo exame das provas. “O tribunal abortou prematuramente uma ação que tem como propósito não só punir, mas também assegurar às vítimas e aos parentes uma resposta do Estado”, afirmou.
“Órgão burocrático”
Porém entre os ministros vencidos, o protesto mais contundente veio do presidente do STF, ministro Joaquim Barbosa. Ele criticou o fato de a corte suprema menosprezar “com frequência” questões de fundo em detrimento de discussões sobre teses processuais. Ao lembrar que o caso tratava de um crime cometido contra um jovem de origem pobre, referiu-se ainda ao STJ como um “órgão burocrático da Justiça brasileira em Brasília”.
“É muito comum esquecermos a questão de fundo: um jovem saído da minoria étnica brasileira, que foi vítima de uma grande, imensa violência, que resultou em sua morte e de seus sonhos e os de sua família. É disso que deveríamos estar debatendo”, disse Barbosa.
O ministro questionou os colegas sobre se alguns dos acusados não estavam presentes no trote, para que se justificasse o cancelamento da ação penal. Barbosa foi apoiado por Marco Aurélio que disse que o Ministério Público não havia “escolhido a dedo” os estudantes acusados.
“A quem incumbiria examinar se eles são ou não culpados, já que houve morte? O tribunal do júri ou um órgão burocrático da Justiça brasileira situado aqui em Brasília, o Superior Tribunal de Justiça? Ouvi aqui que não cabe exame de provas em Recurso Extraordinário, que é o que estamos julgando. No entanto, o que mais se fez aqui foi examinar prova. Para quê? Para confirmar uma decisão questionável do STJ”.
O ministro disse ainda que não era a primeira vez, em dez anos de tribunal, que presenciava uma situação em que os ministros preferiam se debruçar sobre “teorias e hipóteses" e esquecer o que é “essencial”, a vítima. “O STJ violou abertamente artigo 5º, inciso 38, da Constituição, violou a soberania do júri”, disse Barbosa.
RE 593.443
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Fonte: Conjur