O Tribunal de Justiça de São Paulo optou por não interferir na atuação da Polícia Militar do estado durante manifestações populares. Em decisão desta quarta-feira (18/9), o Órgão Especial da corte negou, por 24 votos a um, Habeas Corpus preventivo que tentava impedir a PM de fazer prisões para averiguação durante manifestações populares. O argumento foi o de que o HC era redundante: pretendia impedir as autoridades policiais paulistas de contrariar o que diz a lei.
A tese discutida no HC, impetrado pelo advogado Marcelo Feller em nome de 48 centros e diretórios acadêmicos de faculdades, era a prisão de manifestantes para a verificação de antecedentes criminais. Os fatos a que ele se reporta aconteceram em junho deste ano, quando manifestações contra o aumento da passagem de ônibus tomaram as ruas de São Paulo.
Feller, criminalista, em sustentação oral nesta quarta, listou no HC uma série de boletins de ocorrência de pessoas presas por “porte de vinagre”, ou de “seis potes de tinta guache para pintura de cartazes”. Outros foram detidos por estarem com narizes de palhaço ou máscaras. Deu destaque ao caso de Fernando, preso por estar com uma bandeira do Partido Comunista Brasileiro.
O advogado pediu que o TJ concedesse um salvo conduto para que os manifestantes não sejam presos a não ser em situação de flagrante ou por ordem fundamentada de juiz. Requereu que os policiais sejam impedidos de deter quem estiver com vinagre, potes de tinta ou adereços, já que essas prisões são feitas apenas com o objetivo de verificar se essas pessoas têm antecedentes criminais.
Redundância
Mas o Órgão Especial do TJ, colegiado que reúne a cúpula do tribunal e representa o plenário, negou o HC. O voto vencedor foi o do relator, desembargador Pires Neto. Em fala sucinta, ele afirmou que “ninguém é contra a tese sustentada nessa impetração” — a do direito à livre manifestação por insatisfação com a situação política ou econômica da sociedade. Mas ressalvou que “a impetração, na verdade, pretende o estrito da lei, o que é dever de todos”. E insistiu: “O salvo conduto só pretende reafirmar o que diz a lei.”
Pires Neto também votou pela prejudicialidade do Habeas Corpus. Para ele, o objeto das manifestações — o aumento do preço das passagens de ônibus — não existe mais, já que a Prefeitura desistiu de aumentar a tarifa de R$ 3 para R$ 3,20. “Daí porque soaria como inútil a concessão do salvo conduto”, resumiu.
Ele também afirmou que o constrangimento ilegal a que se referiu o advogado não foi demonstrado por meio de “prova incontestável”, mas apenas falado. “Não bastam conjecturas sem demonstração objetiva de ameaça ou desrespeito ao direito de ir e vir”, disse.
Louco, ébrios e desordeiros
O desembargador Damião Cogan concordou com o relator, mas acrescentou seu ponto de vista. Afirmou, em seu voto, que ninguém pode ser contra o direito constitucional de ir e vir, ou de se manifestar. Mas “todo mundo viu” que as manifestações de junho “viraram baderna”.
Cogan reclamou dos “baderneiros” que “depredaram patrimônio público e privado” e “quebraram bancos”. “Os boletins de ocorrência não têm nada de absurdo: prender alguém que está usando máscara e está fazendo baderna para que se apure quem são. Não vejo nenhuma reunião de estudantes com vinagre que não seja destinada à desordem. Tintas... todos viram que a cidade virou uma desordem, e a Polícia agiu dentro dos parâmetros legais”, declarou o desembargador, que é professor de Direito Penal da Academia do Barro Branco, onde se formam os policiais militares de São Paulo.
“Em lição de 1932, o professor Costa Manso dizia que loucos, ébrios e desordeiros podem ser recolhidos para que se mantenha a ordem. Portanto, a conduta da Polícia Militar está dentro do Estado Democrático de Direito. Não há sentido em se dar salvo conduto para que a baderna seja feita.”
Enquadramento
O desembargador Walter de Almeida Guilherme, decano do tribunal, lembrou de seus tempos de faculdade. Em 1964, quando do golpe militar que desaguou na ditadura que governou o Brasil pelos 20 anos seguintes, viu a Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, ser cercada por militares.
“O Habeas Corpus é interessantíssimo. Ninguém é contra a livre manifestação do pensamento e nem a liberdade de reunião. Mas é preciso enquadrar as coisas de acordo com o que diz a lei”, afirmou. Para ele, conceder o salvo conduto para todos os manifestantes em todas as manifestações resultaria em inibir a atuação da Polícia contra os que de fato estiverem descumprindo a lei. “Não vou usar a palavra 'baderna', expressão antiga, mas não é possível dar um salvo conduto a todos. Excesso? Reprima-se. Mas um salvo conduto contra a prisão ilegal? Isso é inócuo”, resumiu o decano.
Para Marcelo Feller, os desembargadores do Órgão Especial “tomaram uma decisão politicamente tranquila”. “O tribunal não apontou dedos para ninguém e disse que os abusos devem ser coibidos, mas politicamente acabou saindo pela tangente”, analisou.
A fala de Damião Cogan revoltou o advogado. “Poderia o presidente da República, ou um desembargador, ser levado a uma delegacia para que se fossem averiguados os antecedentes criminais? Pelo princípio da isonomia, a regra que vale para um desembargador também vale para mendigos, prostitutas e estudantes que se manifestam nas ruas de São Paulo.”
O desembargador Antonio Carlos Malheiros foi a única voz dissonante no julgamento desta quarta. “Quero deixar claro que todos os excessos devem ser coibidos, de lá e de cá. Que a Polícia cumpra seu papel impedindo que pessoas atinjam o patrimônio, mas que todos tenham seu pleno exercício de expressão e de locomoção garantidos. Portanto concedo a ordem.”
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 18 de setembro de 2013