Milhares de ações que chegam à Justiça mineira são demandas falsas, sem um conflito real e, em muitos casos, sem o conhecimento até mesmo de quem está sendo representado no processo. É que alguns escritórios de advocacia aproveitam da burocracia judicial para tentar vencer causas de grandes empresas e entidades. Agora, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) criou um núcleo para identificar essas ações e inibir o procedimento.

O Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas (Numopede) foi criado pela Corregedoria do TJMG com o objetivo de auxiliar os juízes a identificar essas ações e promover a extinção do processo.

O corregedor do TJMG, desembargador André Praça, explica que a prática consiste em aproveitar questões simples que podem gerar algum pagamento contra bancos, grandes empresas e até mesmo contra o poder público. Como essas entidades lidam com uma quantidade enorme de processos, muitas vezes elas perdem o prazo para apresentar algum documento e recorrer. Quando isso ocorre, os advogados acabam recebendo os valores das ações.

“Acontece que, em grande parte dos casos, as pessoas que são representadas pelos advogados nem sabem que estão com uma ação na Justiça. Eles muitas vezes entram com a mesma ação em várias comarcas, contando que em alguma delas o requerido vá perder o prazo de recurso”, explica. Nesses casos, todo o valor da ação vai para o advogado, uma vez que a parte nem sabe que tem uma ação na Justiça.

Praça diz que o monitoramento é feito contando com uma análise dos próprios juízes que identificam no dia a dia escritórios que realizam essa prática, como também com movimentações atípicas em determinada comarca. “Ficamos de olho no fluxo de ações. Se, em determinado período, há um crescimento anormal em alguma comarca, já fazemos uma análise do perfil das ações e muitas vezes ocorre de ser um escritório de advocacia com essa estratégia”, explica.

O corregedor conta que em seis meses de atuação do Numopede já houve redução de ações desse perfil em algumas comarcas. “Além da extinção do processo, quando o juiz consegue identificar o problema, há uma função educativa, que inibe novas ações do tipo”, disse.


MINIENTREVISTA

André Praça
Corregedor do Tribunal de Justiça de Minas Gerais

Frente às mais de 6 milhões de ações em tramitação na Justiça mineira, núcleo criado pelo TJMG quer passar um pente-fino nos processos para identificar demandas judiciais fraudulentas. Há casos de uma mesma ação apresentada em várias comarcas do Estado.

Diante do diagnóstico da existência de ações judiciais fraudulentas, como o Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas (Numopede) atua para combater o problema?

Nós estamos implantando aqui em Minas Gerais uma iniciativa que copiamos do Tribunal de Justiça de São Paulo. Esse monitoramento das ações deu muito certo lá. Nós temos hoje um volume de 6 milhões de processos na Justiça de Minas, e verificamos que há um número elevado de processos em que, em tese, não existe um conflito real. São demandas fabricadas que buscam satisfazer outros interesses que não a pacificação entre as partes.

Quais seriam esses processos com demandas fabricadas?

O primeiro ponto que tem que deixar claro é que nós não trabalhamos apenas na busca de fraudes, mas também de monitoramento do perfil de ações. Mas o que nós temos identificado são ações com documentos fraudados, ou questões que poderiam ser solucionadas com um único processo, mas são desmembradas em dezenas de processos. Ou uma mesma parte que entra com o mesmo processo em várias comarcas diferentes. Isso tudo sobrecarrega o Judiciário. O que estamos fazendo é monitorar tudo isso para poder orientar os juízes a tomarem uma decisão segura e rápida.

São causas que pedem algum tipo de indenização?

São ações contra seguradoras, contra bancos e instituições financeiras, mas também há ações contra o Estado. Há muitas ações com relação a exigências de medicamentos. Então há uma grande variedade de ações fraudulentas.

Como é feito o trabalho para conseguir alcançar a identificação de processos com esses problemas?

Nós temos acesso aos sistemas do Tribunal de Justiça e também estamos buscando parcerias com outras instituições, como o Serasa, o SPC, que pode nos auxiliar a identificar demandas desse tipo. Nós ficamos atentos à evolução de processos nas comarcas. Se houver um crescimento alto de ações em uma determinada comarca, pode ser um sinal de que há ações fraudulentas. Em alguns casos, esse aumento desproporcional pode ser justificado, como por exemplo é o caso do rompimento da barragem em Mariana, que causou uma elevação do número de processos nas comarcas das cidades atingidas. Mas quando não existe um motivo aparente, já avisamos os juízes para ficarem atentos para demandas fraudulentas. Podemos olhar se as ações são do mesmo escritório de advocacia, se são as mesmas partes representadas. Mas a gente trabalha em conjunto com o Ministério Público, com a Defensoria Pública. E a própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) tem monitorado esse trabalho e reprimido as ações desses profissionais que não dignificam a classe. Sabemos que são poucos, mas que causam um dano muito grande para a sociedade. Porque, às vezes, poucos profissionais conseguem congestionar todo o Judiciário, impedindo que as causas importantes e relevantes sejam julgadas com a rapidez que deveriam ter.

Qual é a motivação dos advogados para realizar esse tipo de estratégia?

Na verdade eles estão em busca de ganhos indevidos. Eles estão buscando na Justiça obter vantagens financeiras fabricando processos, multiplicando demandas e, em muitos casos, fraudando documentos para entrar com ação contra grandes corporações. Acontece que há empresas como bancos que respondem um número enorme de processos. Esses advogados aproveitam disso para entrar com pedidos inexistentes, mas, em muitos casos, essas instituições perdem o prazo para apresentar documentos, às vezes perdem o prazo de recurso gerando ganho de causa para as pessoas que estão fraudando. Nós temos casos de pessoas que estão sendo representadas em ações na Justiça que nem sequer têm conhecimento disso. Os advogados fraudam os documentos e ficam com todo o dinheiro da ação.

Além do prejuízo do valor da ação, essa prática também gera prejuízos para o Judiciário?

O Judiciário tem que buscar ser eficiente. Com a demanda elevada de causas reais, em que existe o conflito, já é difícil atender de forma ágil. Mas o magistrado tem que enfrentar e buscar ser o mais célere possível. Mas quando nós temos situações de fraudes, elas congestionam o Judiciário e trazem um prejuízo para sociedade como um todo. O Judiciário tem todas suas despesas pagas pelo Estado, ou seja, pela população. Então é preciso tratar os recursos com eficiência, com respeito aos recursos públicos. E é isso que estamos fazendo com esse monitoramento agora.

Qual é o procedimento adotado pelo núcleo quando se identifica um volume de ações fraudulentas em determinada comarca?

Nós recebemos comunicados de magistrados que já perceberam algum problema. Com o trabalho de monitoramento feito pelo núcleo, conseguimos identificar essas demandas e emitimos comunicados para que todos os magistrados saibam do problema e do risco que existem em determinadas situações. Em alguns casos, o enfrentamento é feito com o juiz pedindo a presença da parte na ação. Quando é o caso de pessoas que nem sabem que estão movendo processos, a ausência da parte na audiência já causa a extinção do processo.

Esse trabalho ajuda na identificação de maus advogados?

Isso pode acontecer. A OAB tem atuado junto ao seu conselho de ética, tem feito o acompanhamento de todas essas demandas que estão sob análise. Ela tem fiscalizado e eventualmente punido os advogados que estão realizando essas fraudes. Já conseguimos identificar alguns profissionais que estão inclusive respondendo processos não só na OAB, mas também na Justiça, inclusive na área criminal. Temos identificado alguns escritórios que nem são de Minas, mas que sobrecarregam o Judiciário com demandas fraudulentas.

Isso pode ajudar também a inibir que advogados continuem a realizar essa prática?

Estamos trabalhando desde agosto do ano passado. Estamos ainda em uma fase embrionária do monitoramento. Porém, já temos dados sobre reduções significativas de processos em algumas varas e comarcas do Estado. Esse monitoramento é hoje uma política permanente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, e já está sendo divulgado para outras regiões do Brasil.

Fonte: O Tempo