O ano de 2014 foi muito importante para o Direito Civil brasileiro. A renovação legislativa decorrente da entrada em vigor de um novo Código Civil em 2003 ainda se faz sentir nas produções doutrinárias e em sua interpretação pelos tribunais.
No entanto, observa-se que o Direito Civil parece iniciar uma nova fase em seu desenvolvimento teórico, graças ao aumento da internacionalização e da abertura de novos espaços para o aprofundamento de seu estudo, a despeito da permanência de muitas mazelas, antigas e não tão antigas, em seu tratamento epistemológico e em sua aplicação prática.
Uma retrospectiva sobre os principais fatos do Direito Civil sempre será lacunosa, afinal trata-se de uma disciplina de enorme abrangência sobre os fatos da vida. É necessário, por conseguinte, algum método nessa exposição. Desse modo, a retrospectiva cuidará de (1) alterações legislativas; (2) efemérides acadêmicas e (3) publicações relevantes.
Alterações legislativas mais importantes
O Código Civil, em 2014, sofreu algumas alterações:
(a) O inciso II do artigo 968, que trata dos requisitos para a inscrição do empresário no Registro Público de Empresas Mercantis, foi alterado pela Lei Complementar 147, de 7 de agosto de 2014. Desse modo, a assinatura autógrafa do requerente “poderá ser substituída pela assinatura autenticada com certificação digital ou meio equivalente que comprove a sua autenticidade, ressalvado o disposto no inciso I do parágrafo 1º do artigo 4º da Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006”.
(b) A Lei 13.043, de 13 de novembro de 2014, resolveu uma disputa doutrinária sobre a natureza da propriedade fiduciária em garantia de bens móveis ou imóveis, ao alterar a redação do artigo 1.367 do Código Civil e determinar que essa propriedade “sujeita-se às disposições do Capítulo I do Título X do Livro III da Parte Especial deste Código e, no que for específico, à legislação especial pertinente, não se equiparando, para quaisquer efeitos, à propriedade plena de que trata o artigo 1.231”[1]. A referida lei de 2014 também acrescentou o artigo 1.368-B, com o seguinte conteúdo: “A alienação fiduciária em garantia de bem móvel ou imóvel confere direito real de aquisição ao fiduciante, seu cessionário ou sucessor. Parágrafo único. O credor fiduciário que se tornar proprietário pleno do bem, por efeito de realização da garantia, mediante consolidação da propriedade, adjudicação, dação ou outra forma pela qual lhe tenha sido transmitida a propriedade plena, passa a responder pelo pagamento dos tributos sobre a propriedade e a posse, taxas, despesas condominiais e quaisquer outros encargos, tributários ou não, incidentes sobre o bem objeto da garantia, a partir da data em que vier a ser imitido na posse direta do bem.”
(c) A Lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, alterou o regime de guarda “compartilhada”, com várias modificações ao Código Civil, especialmente os artigos 1.583, 1.584, 1.585, e 1.634. Sobre esse tema, oportunamente, dele se cuidará em uma coluna específica.
A aprovação do novo Código de Processo Civil foi o grande acontecimento legislativo do ano. Para o Direito Civil, haverá consequências evidentes, de modo específico no tratamento dos procedimentos especiais, que foram alterados para neles compreender algumas cautelares (que se transformaram em procedimentos especiais) e outros que permaneciam em vigor graças à supervivência anômala de partes do Código de Processo Civil de 1939. A manutenção da separação judicial foi outro ponto de interesse para o Direito Civil. O novo CPC agora possui uma rubrica denominada de “ações de família”.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965, de 23 de abril de 2014) entrou em vigor este ano e trouxe regras que conflitam com a jurisprudência tradicional do Superior Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade civil da internet. Sobre ele foram escritas três colunas específicas, às quais se recomenda a leitura (clique aqui, aqui e aqui).
O novo Código Civil e Comercial argentino também é merecedor de atenções. A unificação do Direito Privado, o conturbado processo legislativo e os principais impactos do Código Lorenzetti têm sido objeto de uma longa série da coluna Direito Comparado, que teve início aqui.
Em 2014, também entraram em vigor os novos códigos civis da República Tcheca e da Hungria
Efemérides e acontecimentos acadêmicos
Em 2014, o Direito Civil ganhou novos professores titulares, o ponto máximo da carreira docente, o que se constitui em um fato de enorme relevância quando se considera o papel social de um catedrático, para se referir à antiga nomenclatura, que ainda é observada em vários países europeus. O professor Nestor Duarte foi o mais novo aprovado para o cargo de titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. José Isaac Pilati também foi aprovado para professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Na tradicional Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, abriu-se edital de concurso para o cargo de professor titular de Direito Civil, o qual deverá ser preenchido em 2015.
O professor titular de Direito Civil da UFPR Luiz Edson Fachin foi empossado como membro titular da Academia Brasileira de Letras Jurídicas, tendo sido saudado por Roberto Rosas, titular de Direito Civil da Universidade de Brasília.
A internacionalização e o intercâmbio acadêmico no Direito Civil foram enormemente fortalecidos em 2014. Uma das grandes efemérides nesse campo foi a realização, pelo Departamento de Direito Civil da USP, de um ciclo de estudos com a participação de Reinhard Zimmermann, senador da Sociedade Max-Planck e diretor do Instituto Max-Planck para o Direito Estrangeiro (em tradução literal, mas também assemelhável a Direito Comparado) e Internacional Privado (clique aqui para ler). Esta foi a primeira visita de Zimmermann à América Latina e ela tem profundo significado pelo notável aumento de estudantes brasileiros no Max-Planck de Hamburgo e pelo relevo internacional do catedrático de Direito Civil e Romano da Universidade de Ratisbona.
Jürgen Basedow, também diretor do Max-Planck de Hamburgo, visitou o Brasil em setembro, a convite da Academia Brasileira de Direito Civil, quando proferiu palestra no Rio de Janeiro. Natalino Irti, catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de Roma I, muito conhecido no Brasil por seu escrito L’età della decodificazione, proferiu conferência em simpósio do Instituto Internacional de Ciências Sociais (IICS), em São Paulo.
O falecimento de Werner Lorenz, antigo catedrático de Direito Civil da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, noticiado na coluna Direito Comparado, foi um pesaroso fato ocorrido em 2014.
Dario Moura Vicente, catedrático de Direito Comparado da Universidade de Lisboa, ministrou curso de pós-graduação na Faculdade de Direito da USP, na disciplina O contrato no Direito Comparado, a convite do professor associado José Augusto Fontoura Costa e da professora titular Paula Forgioni. A presença de Moura Vicente no Brasil retoma uma antiga tradição da presença de docentes portugueses em nossas universidades.
Em 2014, em Curitiba, o Instituto Brasileiro de Direito Civil organizou seu segundo congresso, sob a liderança de Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino e Paulo Lôbo.
Outro importante acontecimento para o Direito Civil foi a criação da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, integrada por sete universidades brasileiras (USP, UFPE, UFPR, UFF, UFSC, UFC e UFRGS) e pela Universidade de Lisboa. Essa rede de pesquisadores é composta por professores, magistrados e estudantes de diversas regiões do país e também da Alemanha, Portugal e Espanha. O objetivo é o desenvolvimento conjunto de espaços, fóruns de discussão, eventos e publicações no Direito Civil e em áreas afins, de modo plural e que permitam o diálogo entre a tradição e as exigências da contemporaneidade.
Publicações relevantes (edições e reedições de periódicos e de obras jurídicas)
No campo das novidades bibliográficas, pode-se citar o surgimento de um novo periódico, a Revista de Direito Contemporâneo – RDCC, sob o prestigioso selo editorial da Revista dos Tribunais-ThomsonReuters, coordenada por este colunista e pelos professores Ignacio Poveda (USP), Dario Moura Vicente (Universidade de Lisboa), José Antonio Peres Gediel e Rodrigo Xavier Leonardo (UFPR), além de Rafael Peteffi da Silva (UFSC). A nova revista já teve seu primeiro número publicado com artigos de Modesto Carvalhosa, Sílvio de Salvo Venosa, Paulo Nader, Cesar Fiuza, Tilman Quarch, dos ministros Antonio Carlos Ferreira e Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça, além de outros importantes nomes do Direito Civil Contemporâneo.
A RDCC homenageia, em sua seção de memória do Direito Civil, o professor Antonio Junqueira de Azevedo, titular da Faculdade de Direito da USP, falecido em 2009, com a reedição de seu clássico artigo O Direito Civil tende a desaparecer?, da década de 1970. Outro ponto alto da RDCC é a entrevista de Nelson Nery Jr., titular da PUC-SP e da Unesp.
Rodrigo Xavier Leonardo publicou tese de doutoramento na USP, intitulada Associações sem fins econômicos (São Paulo: RT, 2014), um dos mais criteriosos estudos sobre o tema no Direito Civil Contemporâneo. A editora Almedina, de Coimbra, em Portugal, após várias solicitações do público brasileiro, reimprimiu a famosa tese de Antonio Pinto Monteiro, catedrático de Direito Civil da Universidade de Coimbra, cujo título é Cláusula penal e indemnização, de 1999.
Antonio Menezes Cordeiro, catedrático de Direito Civil da Universidade de Lisboa, também estampou em 2014 uma nova edição do volume 2 de seu Tratado de Direito Civil: Parte Geral – Negócio jurídico (Almedina, Coimbra) e a quinta edição, também pela Almedina, de seu Direito bancário. Nova edição também foi publicada, no Rio de Janeiro, pela Editora Forense, do livro Direito privado: Teoria e prática (2014), do ministro Luís Felipe Salomão, com lançamento muito prestigiado na sala da congregação da Faculdade de Direito da USP.
Extremamente preocupada com a crise da doutrina, especialmente no Direito Civil, Judith Martins-Costa publicou pela Marcial Pons, de São Paulo, a obra coletiva Modelos de Direito Privado. Vera Jacob de Fradera, no final deste ano, lançou a segunda edição de O Direito Privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva, editado pela Livraria do Advogado, de Porto Alegre.
A editora Atlas, de São Paulo, com auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo –FAPESP, publicou o primeiro volume dos Comentários ao Código Civil brasileiro: Estudo comparativo e tradução de suas fontes romanas, de autoria de Eduardo C. Silveira Marchi, Dárcio R. Martins Rodrigues e Bernardo B. Queiroz de Moraes, que compõem o quadro de professores de Direito Romano da Faculdade do Largo São Francisco da USP. É uma obra fundamental para o conhecimento das fontes do Direito Civil contemporâneo, para estudiosos do Direito Romano e do Direito Privado Comparado.
Em Curitiba, a editora Juruá lançou o livro Responsabilidade por danos: Imputação e nexo de causalidade, que consiste na tese de doutoramento de Pablo Malheiros da Cunha Frota, de Brasília. E também Contemporary legal theory in Brazilian Civil Law, de Lucas Abreu Barroso, com tradução de Kennedy Matos, que visa atingir o público estrangeiro e ampliar os horizontes da internacionalização no Direito Privado.
Com mais de 1,2 mil páginas, Paolo Gallo lançou a segunda edição de um dos mais completos livros sobre a boa-fé no Direito italiano, intitulado Contrato e boa-fé: boa-fé em sentido objetivo e transformações do contrato[2], editado pela Utet, de Turim.
Na Alemanha, pela editora Mohr Siebeck, de Tübingen, pode-se citar o livro Limites da autodeterminação no Direito Privado: Paternalismo jurídico e Economia comportamental nos Direitos de Família, Societário e do Consumidor[3], de autoria de Klaus U. Schmolke. O argumento central do livro está em que a liberdade e a autodeterminação sempre foram valores angulares para o Direito Privado alemão, os quais se traduziam na autonomia privada e na liberdade contratual. No entanto, houve um crescimento inimaginável do Rechtpaternalismus, o paternalismo jurídico, que tem avançado para setores nos quais ele não se faria necessário. Com isso haveria um comprometimento da própria função do Direito como mecanismo de arbitramento equânime de conflitos sociais.
A tradicional biblioteca de teses da editora Dalloz, de Paris, em 2014, publicou um livro de interesse para o Direito Civil Comparado, trata-se de As sanções das obrigações familiares[4], de Gaëlle Ruffieux, com aportes muito atuais sobre o sancionamento à violação de obrigações familiares verticais e horizontais. Na mesma coleção, Grégoire Forest publicou Ensaio sobre a noção de obrigação no Direito Privado[5], que tenta superar as concepções objetiva e dualista da obrigação.
Conclusão
O Direito Civil brasileiro fortaleceu-se em 2014. Ampliou-se sua inserção internacional, houve um renovado fluxo de catedráticos estrangeiros para nossas universidades, a produção bibliográfica manteve-se intensa e as mudanças legislativas impulsionarão novos estudos em 2015. Agora, é lutar para que a universidade, o legislativo e os tribunais aumentem seu diálogo, a fim de que a função crítica e sistematizadora da primeira possa melhor servir ao país de uma forma menos tímida.
[1] Artigo 1.231: A propriedade presume-se plena e exclusiva, até prova em contrário.
[2] No original: Contratto e buona fede: Buona fede in senso oggettivo e trasformazioni del contratto.
[3] No original: Grenzen der Selbstbindung im Privatrecht. Rechtspaternalismus und Verhaltensökonomik im Familien-, Gesellschafts- und Verbraucherrecht.
[4] No original: Les sanctions des obligations familiales.
[5] No original: Essai sur la notion d'obligation en droit privé.
Fonte: Conjur