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Venire contra factum proprium - Sentença de mérito

05/06/2008 02h20 - Atualizado em 09/05/2018 15h27

Venire contra factum proprium - Sentença de mérito
JUIZADOS ESPECIAIS
Autor: AUGUSTO VINICIUS FONSECA E SILVA

EMENTA:
Consórcio - Cláusula contratual com dispensa de emissão de boleta de pagamento pela administradora - A despeito disso, emissão efetivada por diversas vezes - Tutela da confiança do consorciado - Proibição de comportamento contraditório (venire contra factum proprium) - Boa-fé objetiva - Pedidos parcialmente procedentes

SENTENÇA:
Processo: 0194.06.059.874-6
Requerente: A. A. P. S. D.
Requerida: Mil Motos – MILBRATZ Comercial Ltda.

SENTENÇA


Dispensado o relatório, com base no art. 38 da Lei nº 9099/1995, passo a decidir, motivadamente.
Estão presentes todos os pressupostos processuais e as condições da ação. Não há nulidades a sanar. Ao mérito, pois.
Trata-se de ação ajuizada por A. A. P. S. D. em face de Milbratz Comercial Ltda. (ff. 02/09). Alega haver firmado, em Novembro de 2003, contrato de consórcio com a requerida, cujo objeto seria a aquisição de uma motocicleta marca Yamaha, modelo VBKE, zero Km. Diz haver pagado em dia – e, às vezes, com antecedência – as parcelas, pois, assim agindo, teria direito não só ao sorteio, mas também de concorrer por lance. Porém, depois de efetuado o pagamento de 19 das 40 parcelas contratadas, eis que a requerida não mais enviou as boletas bancárias por via das quais eram feitos os pagamentos das respectivas parcelas. A última parcela paga pelo requerente foi em Maio de 2005. Tentou saber da requerida o que vinha acontecendo com a remessa das boletas e esta informou que estaria enfrentando problemas com o correio, os quais estariam prestes a ser resolvidos. Mas, até o ajuizamento da ação, nada restou solucionado. Ditos boletos eram enviados para a caixa postal mantida pelo requerente. Diante disso, o requerente não pôde participar dos sorteios mensais e não pôde ser contemplado, fatos que lhe teriam lhe produzido danos materiais no importe de R$4821,85, atualizado quando do ajuizamento da ação (f. 10) e danos morais, pelo que pede seja compensado em vinte salários mínimos.
Juntou documentos (ff. 10/37).
Em primeira audiência, a conciliação não foi possível (f. 40).
Ao início da AIJ (f. 52), mais uma vez reproposta a conciliação, sem êxito. A requerida apresentou contestação acompanhada de documentos (ff. 55/62). Defendeu-se, redargüindo, em síntese, que: conforme a cópia do contrato juntado (f. 62), a motocicleta objeto do contrato não era daquele modelo delineado pelo requerente em sua inicial, mas, sim, uma Yamaha, modelo YBR ED; a cláusula III do contrato não diz que as parcelas devem ser pagas via boleto bancário, mas “preferencialmente via boleto bancário”. Tanto assim que o pagamento da parcela 03/40 foi efetuado no próprio estabelecimento da requerida. Dessa forma, não havendo para a requerida uma obrigação contratual de remeter boleta, tornou-se o requerente inadimplente a partir da parcela referente a Junho/2005. Reforça, dizendo que em momento algum assumiu o compromisso de remeter ao requerente as boletas de pagamento das parcelas. Mais à frente, diz que “os boletos bancários jamais deixaram de ser enviados ao autor, embora ela não tivesse essa obrigação”. Objeta, ainda, dizendo que o requerente não fez prova documental de sua alegação e, como se tornara inadimplente, passou a ser cobrado pela requerida. Com a suspensão de pagamento das parcelas pelo requerente, “a contestante então achou que tivesse havido desistência por parte do comprador, a teor do que dispõe a cláusula X do contrato”. Diz que, por mais que não fossem remetidas as boletas ao requerente, teria ele três outros meios de efetuar o pagamento: diretamente no estabelecimento da requerida, depósito em conta da mesma ou através da ação de consignação. Rebate, ao final, os pedidos indenizatórios.
A réplica à contestação veio, também, na audiência de instrução (f. 52). Ratifica os termos da inicial, e impugna de maneira geral a contestação.
Destaque-se, antes de tudo, a real natureza do contrato entabulado pelas partes, cuja cópia encontra-se encartada nos autos. Esclarece-nos a doutrina autorizada que

hoje, o desenvolvimento ocorrido no mercado brasileiro dificulta a identificação de um tipo especial de “contrato de consórcio”, pois, para subtrair-se ao controle das autoridades públicas, este método de venda está sendo utilizado no mercado sob o manto de outros tipos contratuais, variando sua denominação desde “contrato de compra e venda a prazo com sorteios” a “cessão de direitos futuros de linha telefônica”.

Analisando-se o contrato e suas cláusulas, não obstante estar intitulado “contrato de compra e venda (plano de reserva)”, verifico tratar-se de nítido contrato de consórcio e assim será tratado, inclusive porque há, no CDC, norma a respeito (art. 53, §2º), o que evidencia a natureza consumerista da relação de direito material subjacente. É a posição, aliás, da jurisprudência mineira dos Juizados Especiais Cíveis: “os contratos de consórcio sujeitam-se ao Código de Defesa do Consumidor”.
A Portaria de nº 190, de 27 de outubro de 1989, baixada pelo Ministério da Economia, Fazenda e Planejamento, em seu item 1.1, define consórcio como a “união de diversas pessoas físicas ou jurídicas, com o objetivo de formar poupança, mediante esforço comum, com a finalidade exclusiva de adquirir bens móveis duráveis, por meio de autofinanciamento".
Da interpretação sistemática do Direito resulta que o Código do Consumidor não exclui a aplicação das normas do macrossistema do Direito Civil, num regime de complementaridade entre ambos. Cláudia Lima Marques chama isso de “diálogo das fontes” e explica:

Realmente, a convergência de princípios entre o CDC e o CC/2002 é a base da inexistência principiológica de conflitos possíveis entre estas duas leis que, com igualdade ou eqüidade, visam à harmonia nas relações civis em geral e nas relações de consumo ou especiais (...). A convergência de princípios é vista hoje como um fato bastante positivo para co-habitação (ou diálogo) das leis novas e antigas no mesmo sistema jurídico. É o que ocorrerá com o CDC e o CC/2002.

Pois bem. O contrato de consórcio é bilateral, no sentido de que

as obrigações das partes são recíprocas e interdependentes: cada um dos contratantes é simultaneamente credor e devedor um do outro, uma vez que as respectivas obrigações têm por causa as do seu co-contratante, e, assim, a existência de uma é subordinada à da outra parte. [grifei]

Fala-se, então, quanto a tal espécie de contratos, em obrigações. Porém, não mais na vetusta concepção oitocentista, em que o único objeto das relações jurídicas negociais era a obrigação principal (dar/fazer/não-fazer). Daí, serem chamadas de obrigações simples.
A partir da Constituição Federal de 1988, da Lei nacional nº 8078/90 e, sobremaneira, após o novo Código Civil, as obrigações foram tonalizadas de um nítido colorido solidarista, tornando-se complexas. Sobre isso, imprescindíveis as lições de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:

Por isso, as obrigações emanadas de negócios jurídicos são complexas, acrescendo-se às obrigações principais os chamados deveres anexos ou laterais. Seriam obrigações de conduta honesta e leal entre as partes, vazadas em deveres de proteção, informação e cooperação, a fim de que não sejam frustradas as legítimas expectativas de confiança dos contratantes quanto ao fiel cumprimento da obrigação principal derivada da autonomia privada.
Enfim, é possível afirmar que o regulamento contratual atual é o resultado de uma heteronomia de fontes: à autonomia privada acrescem-se os deveres impostos pela boa-fé objetiva. [grifei]

Tais deveres anexos, laterais ou de conduta

são conduzidos pela boa-fé ao negócio jurídico, destinando-se a resguardar o fiel processamento da relação obrigacional em que