A necessidade de anulação dos interrogatórios realizados por videoconferência antes da Lei n. 11.900/2009 tem sido reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) há alguns anos. As Turmas de Direito Penal, no entanto, rediscutiram a questão e alteraram o alcance da nulidade do ato. Os ministros entendem que não há necessidade de anulação de todos os atos subsequentes ao interrogatório, mas apenas do próprio interrogatório e do restante do processo a partir das alegações finais, inclusive.

A posição vem sendo adotada pela Quinta Turma desde o ano passado. A Sexta Turma julgou o primeiro precedente a respeito, no último dia 5 de abril. O relator foi o desembargador convocado Celso Limongi. O desembargador relembrou que a nulidade se justifica pela falta de previsão legal, permitindo a realização do interrogatório pelo sistema de videoconferência.

Na época do interrogatório, em São Paulo, estava em vigor uma lei estadual (Lei n. 11.819/2005) que previa a utilização de aparelho de videoconferência nos procedimentos destinados ao interrogatório e à audiência de presos. Ocorre que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou inconstitucional a lei paulista, porque a norma invadia a competência privativa da União para legislar sobre direito processual.

A novidade no entendimento recente do STJ é o foco no princípio da instrumentalidade das formas (que evita que sejam refeitos, inutilmente, todos os atos do processo) e na exigência de duração razoável do processo. A partir desses preceitos, os ministros concluíram que “não se justifica, com base em vício existente especificamente no ato do interrogatório, a anulação dos demais atos da instrução, que dele não dependem e, portanto, devem ser preservados”.

O desembargador Limongi invocou o parágrafo 1º do artigo 573 do Código de Processo Penal (CPP), segundo qual, uma vez declarada a nulidade de determinado ato, esta apenas causará a nulidade “dos atos que dele diretamente dependem ou sejam consequência”, não atingindo os atos autônomos e independentes.

A Sexta Turma entendeu que, anulado o interrogatório, outro deve ser realizado e, em seguida, deve ser reaberta a fase de alegações finais. Para os ministros, a realização do interrogatório como último ato da instrução, antes de prejudicar “constitui um benefício para a defesa do réu. Assim procedendo, ela poderá apresentar a sua versão dos fatos com o conhecimento de tudo o que já foi levado aos autos”, sistemática, aliás, hoje adotada pela nova redação do CPP (artigo 400), modificada em 2008.

Precedentes

O caso analisado diz respeito a um condenado pela Justiça Federal por tráfico de drogas à pena de seis anos, nove meses e vinte dias de reclusão. A Defensoria Pública da União recorreu ao STJ, alegando, entre outros pontos, que o processo deveria ser anulado em decorrência da realização do interrogatório por videoconferência, no dia 14 de abril de 2008. A lei que autorizou o sistema é de 18 de janeiro de 2009.

Na Quinta Turma, a posição já foi tomada em vários precedentes. No HC 103742 e no HC 144731, outros dois presos de São Paulo conseguiram o reconhecimento da nulidade dos interrogatórios realizados por videoconferência antes da alteração do CPP. Em novembro, a Turma seguiu o voto do relator, ministro Arnaldo Esteves Lima, na análise do habeas corpus de um condenado por tráfico de drogas pela Justiça Federal.

Os ministros entenderam que o Provimento 74/2007 da Corregedoria-Geral da Justiça Federal da 3ª Região, que dispôs sobre a oitiva do acusado por meio eletrônico, não supriu a ausência de previsão no CPP para a utilização do sistema.

No outro caso, julgado no mês seguinte, a Quinta Turma seguiu os precedentes e concedeu parcialmente a ordem de habeas corpus a outro condenado, este pela Justiça estadual, por tráfico de drogas, resistência e desacato. Os ministros determinaram somente a anulação do interrogatório realizado por videoconferência, bem como do processo a partir das razões finais, inclusive.

Tecnologia

Tal qual todas as áreas da atividade humana, o processo penal também se viu obrigado a aderir aos avanços tecnológicos para não ser atropelado pela obsolescência. “O judiciário não pode ser um excluído digital ou informacional”, ponderou o doutor em Direito Penal Luiz Flávio Gomes. Ele conta que, em 1976, quando era juiz de direito em São Paulo, realizou os primeiros interrogatórios on-line no país.

Para o professor, um defensor das novas tecnologias, “o interrogatório virtual ou mesmo qualquer outro ato processual deve, necessariamente, observar todos os princípios constitucionais (ampla defesa, contraditório, publicidade etc.)”. Gomes adverte que “não se deve nunca imaginar (autoritariamente) que a videoconfrência possa ser utilizada só para agilizar o processo”.

Num primeiro momento, localmente as autoridades judiciárias passaram a utilizar o sistema televisivo nos interrogatórios. Nos moldes do que ocorreu em São Paulo, onde uma lei chegou a ser editada – e depois foi considerada inconstitucional –, no Distrito Federal a videoconferência foi usada como instrumento para audiência de interrogatório.

O caso chegou ao STJ pro meio de um recurso (RHC 24879). O preso era processado pelos crimes de formação de quadrilha e roubo, cometidos em 2001, inclusive em uma agência do Banco de Brasília (BRB). O interrogatório do preso foi realizado por sistema de videoconferência, no dia 24 de abril de 2008 – portanto, antes da alteração do CPP. Por isso, a defesa pediu a sua anulação. O pedido foi negado pelo juiz e, depois, pelo Tribunal de Justiça do DF.

No STJ, a nulidade acabou reconhecida. O relator, ministro Jorge Mussi, afirmou que o ato é nulo. “Não obstante a evolução tecnológica, e em especial na área de informática, não há como se concordar com a realização do teleinterrogatório sem lei normatizando o sistema”. Mas o ministro ressalvou que “o vício” existe apenas quanto ao interrogatório, já que não se constata que tenha contaminado os demais atos subsequentes a ponto de levar à conclusão de que o processo deve ser integralmente anulado.

Previsão legal

A alteração do CPP que introduziu o sistema de videoconferência autoriza, além do interrogatório, a realização pelo mesmo sistema de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido.

O CPP prevê, ainda, que testemunhas que morarem fora da jurisdição do juiz poderão ser ouvidas por meio de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real. Nessas hipóteses, é permitida a presença do defensor.

O uso da videoconferência é excepcional e deve ser autorizado por juiz em decisão fundamentada. A medida deve ser necessária para: garantir a ordem pública e prevenir risco à segurança pública (possibilidade de fuga durante o deslocamento, por exemplo); viabilizar a participação do réu no processo, quando for impedido por enfermidade ou outra circunstância pessoal; e impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência.

Segundo a lei, da decisão que autorizar a realização da videoconferência, as partes deverão ser intimadas com dez dias de antecedência para a realização da sessão. A sala em que a ferramenta estará em funcionamento será fiscalizada pelo Ministério Público, pelo juiz do processo e pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Fonte: STJ