Com presença de autoridades e destacados nomes do Judiciário e de outras áreas, o VIII Encontro Nacional de Juízes Estaduais (Enaje) foi encerrado neste sábado, 16 de novembro, em São Paulo. O presidente da Amagis, juiz Luiz Carlos Rezende e Santos, a vice-presidente Administrativa, juíza Rosimere das Graças do Couto, e o vice-presidente de Saúde, juiz Jair Francisco dos Santos, prestigiaram o evento, que nesta edição debateu o tema “O Poder Judiciário em uma Democracia Digital – Desafios, Problemas e a Modernização da Justiça Brasileira”. O Enaje contou ainda com a presença de diversos magistrados e magistradas mineiras.

A abertura, realizada na quinta-feira, 14 de novembro, teve palestra magna proferida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Luís Roberto Barroso, quando ele abordou o tema do constitucionalismo digital, apresentando um panorama sobre a massificação da internet, a revolução tecnológica e a ascensão das plataformas digitais. Leia mais aqui.

 

No segundo dia do evento, realizado pela AMB com o apoio da Apamagis, a presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministra Cármen Lúcia, fez conferência expondo a organização da Justiça Eleitoral para assegurar as eleições municipais deste ano com a participação de 465 mil candidatos e quase 156 milhões de eleitores.

Ao fazer o balanço final, a ministra traçou um quadro positivo, lembrando que a Justiça Eleitoral garantiu eleições seguras, transparentes e com um volume de fake news inferior ao inicialmente previsto.

Cármen Lúcia também abordou o impacto do mundo disruptivo no Judiciário, destacando que, embora a tecnologia seja benéfica para a prestação da Justiça, a regulação é imprescindível.

Humanidade

Com um olhar voltado aos problemas sociais, a ministra valorizou o papel dos magistrados e associou a Justiça à sensibilidade. “O bom juiz, quando fala, a Justiça se pronuncia”, afirmou. “O bom juiz faz com que a voz da Justiça seja igual e é aquele que tem muita humanidade no seu tratamento, valendo-se de todas as normas, possibilidades e, especialmente, das técnicas e tecnologias para tornar mais eficaz o seu desempenho. Mas é preciso trabalhar com a ideia de que há muitas e enormes desumanidades praticadas.”

Sobre atos que ameaçam o Estado Democrático de Direito, a presidente do TSE reforçou a força das instituições. “Acordamos mais ocupados com os nossos compromissos e as nossas responsabilidades com a democracia brasileira. Isso não significa que, por um atentado tão grave, nós tenhamos, em algum momento, de nos afastar dos princípios e, especialmente, do ideal que temos com a democracia: de seres humanos para seres humanos”, disse.

Magistratura moderna

A capacidade dos juízes de se adaptarem às inovações foi um dos pontos explorados pelo ministro José Antonio Dias Toffoli (STF). Para Toffoli, a magistratura do Brasil é a mais moderna e independente em nível global. Como exemplo, ele citou a capacidade de julgamento dos juízes e dos tribunais, que administram um acervo de 83 milhões de processos.

“Precisamos mostrar isso ao mundo. Isso é um asset — para usar um termo econômico —, é um soft power. Nosso soft power não é mais o futebol, são as nossas instituições, e o mundo tem que ver como são sólidas.”

Durante sua gestão à frente do STF e do CNJ, Toffoli teve que lidar com a calamidade pública da pandemia. Na época, o CNJ adotou uma série de medidas para garantir que a Justiça não parasse, ao contrário do que foi observado em vários países, que suspenderam o atendimento à sociedade.

Em tempos de acelerada mudança tecnológica e ameaças à democracia, o ministro destacou que os alicerces do Estado Democrático de Direito são: a magistratura como defensora de uma verdade factual, a imprensa livre e a ciência amparada na razão

Novas fronteiras do Direito Penal

O ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Joel Ilan Paciornik abordou as novas fronteiras do Direito, especialmente no Direito Penal no mundo virtual.

Paciornik destacou que as inovações trouxeram transformações qualitativas no Sistema de Justiça e na jurisdição. Um exemplo disso é o fato de o Brasil possuir 74 tribunais com acervos processuais completamente em formato eletrônico. “São dados animadores, mas não podemos nos esquecer de que, além desses benefícios, vêm as consequências negativas, com as quais devemos nos preocupar: é o que chamo de colapso do sistema de persecução penal, e isso requer de nós uma mudança de paradigma”, explicou.

Para o ministro, é essencial reinterpretar o mundo da criminalidade sob uma nova perspectiva.

“Através de um celular ou computador, a milhares de quilômetros de distância, pessoas praticam crimes. Precisamos resignificar as clássicas teorias do Direito Penal sobre o tempo e o lugar do crime. Concebemos, em 1940, teorias que tratam do tempo e do lugar da consumação do crime. Hoje, temos crimes praticados na internet, e o Estado ainda não possui mecanismos suficientes para combater esse tipo de criminalidade.”

Paciornik também alertou para os riscos ampliados de crimes virtuais contra segmentos vulneráveis, como a pornografia infantil praticada com o uso de dispositivos móveis e plataformas digitais. Entre as iniciativas para enfrentar essa nova realidade, ele apontou os acordos de cooperação internacional e os avanços relacionados à utilização de procedimentos que asseguram a integralidade e a integridade de provas digitais. Normas nesse sentido já começam a ser desenvolvidas pelo CNJ.

Redes sociais

Os dilemas entre o público e o privado, a liberdade de expressão, a polarização ideológica e o fascínio das redes sociais foram temas abordados pela ministra Morgana de Almeida Richa (TST). Expoente do Poder Judiciário, a magistrada apresentou um panorama dos atos normativos recentes sobre juízes nas redes sociais e as regras que estabelecem limites para suas manifestações.

Morgana destacou casos de uso inadequado que comprometem a imagem da magistratura e questionou: “Seriam os juízes uma questão além da liberdade de expressão? Haveria aqui uma censura, uma forma de controle em relação aos juízes, sendo a liberdade de expressão um direito fundamental?”

Segundo a ministra, o juiz intra muros continua sendo juiz. “Os magistrados são vistos como magistrados onde quer que estejam, inclusive nas redes sociais. A imparcialidade é o santo graal do Judiciário. E quando postamos concepções, opiniões e preconceitos, isso compromete a percepção de imparcialidade do Judiciário e do Sistema de Justiça.”

Inteligência Artificial

A visão de que o controle humano sobre a tecnologia é imprescindível para garantir a autonomia do Poder Judiciário foi apresentada pelo ministro Sérgio Kukina (STJ). Em palestra proferida no terceiro e último dia do 8º Enaje, o ministro afirmou que a IA deve ser compreendida como um apoio à atividade jurisdicional.

O tema é cada vez mais presente no meio judicial. O ministro informou à plateia do Enaje que a União Internacional dos Juízes de Língua Portuguesa (UIJLP) divulgou, no início deste mês, após assembleia realizada em Foz do Iguaçu (PR), uma carta com diretrizes para juízes lusófonos sobre o uso da IA.

“No encontro da UIJLP em novembro, uma das conclusões foi esta: os juízes devem ser capacitados para entender como as tecnologias de IA funcionam. Além disso, os julgadores terão que compreender que essa tecnologia serve para apoiar, mas nunca substituir o julgamento humano. Não se pode perder de vista o olhar do julgador humano.”

O crescente uso da IA na Justiça também foi tema da reunião de outubro do Conselho de Presidentes dos Tribunais de Justiça (Consepe), em Belém (PA). Na ocasião, os dirigentes dos Tribunais reiteraram o cuidado que o emprego de algoritmos requer na atividade jurisdicional.

O ministro do STJ citou que o último relatório do CNJ sobre o uso da IA no Poder Judiciário mostrou um aumento de 26% na aplicação dessa tecnologia no ano passado. “Portanto, está explicitado um uso absolutamente irreversível. Daí a importância da capacitação, para que estejamos habilitados a compreender o que podemos esperar e quais utilidades podemos extrair da inteligência artificial”, acrescentou.

Ética

O presidente do Tribunal da Relação do Porto, em Portugal, José Igreja Matos, apresentou uma visão semelhante, complementando as avaliações do ministro Kukina.

O magistrado português ressaltou que os Tribunais devem assegurar a concessão, administração e controle dos sistemas de IA utilizados nos processos judiciais, e que o uso de algoritmos deve seguir limites impostos por humanos. Na Justiça, esses limites devem ser definidos por juízes. Ele também mencionou a recente carta da UIJLP, com diretrizes para o uso dessa tecnologia na prestação jurisdicional.

José Igreja chamou a atenção para as questões éticas envolvidas na relação entre o Judiciário e os sistemas de IA. Ele informou que esse tema tem sido amplamente discutido no Judiciário de países europeus e comentou que a União Europeia prepara para 2026 a entrada em vigor de regulamentações sobre a IA.

O magistrado advertiu que o uso indiscriminado de sistemas baseados em inteligência artificial na Justiça, sem a devida supervisão dos juízes, pode ameaçar os alicerces do Poder Judiciário.

“Não podemos comprometer a independência judicial porque, sem isso, não seremos juízes. É preciso manter nossa autonomia decisória”, afirmou. “Aceitar a sugestão da máquina sem escrutinar é cometer uma violação ética”, concluiu.

O magistrado encerrou sua palestra afirmando que o processo judicial não é constituído por pessoas digitais.

Direitos fundamentais

A garantia do acesso à Justiça e aos direitos fundamentais em tempos de virtualização foi o ponto central abordado pela desembargadora Andréa Pachá (TJ-RJ). Com base em sua experiência, Andréa falou sobre a prestação jurisdicional para a resolução de conflitos.

“Nós, da magistratura estadual, temos trabalhado para dar efetividade aos direitos fundamentais, especialmente os direitos à saúde, das crianças e adolescentes, dos idosos, e o direito ao meio ambiente sustentável. Além disso, buscamos a equidade de gênero e reafirmamos que o princípio da inocência e das garantias são fundamentais para a preservação da democracia e da civilidade.”

Ela destacou que muitos conflitos poderiam ser solucionados sem a judicialização, observando que essa tendência reflete uma sociedade que, muitas vezes, recorre ao Judiciário para resolver questões que deveriam ser mediadas de outra forma.

“Precisamos assumir o papel de garantidores dos direitos fundamentais e dar respostas adequadas à sociedade. Não podemos assimilar demandas de uma sociedade infantilizada que deseja interferências estatais seletivas, mas, sim, focar na redução das desigualdades.”

Evolução

Helena Galvão, professora e filósofa, tomou a palavra com a serenidade de quem sabe que a reflexão é uma construção coletiva. Suas palavras não vieram como confronto, mas como convite: um chamado para olhar a vida e o trabalho com olhos renovados, atentos ao que move e ao que paralisa.

“Atrito é movimento”, disse Helena, começando com uma metáfora que ressoou pela sala. “Sem atrito, os sapatos não tocam o chão e não há deslocamento. Mas o atrito também pode ser luz, calor, vida.” Para Helena, o desafio não é evitar os conflitos, mas transformá-los em aprendizado.

Em sua fala, a professora convidou a audiência a rever conceitos cristalizados, lembrando que o apego às certezas pode ser um dos grandes obstáculos à evolução pessoal e coletiva. "É doloroso admitir, mas necessário: eu não sou dono de nenhuma verdade. Todas as minhas visões são provisórias e devem ser submetidas ao aperfeiçoamento. Assim, eu cresço, e os atritos se tornam produtivos." 

Saúde Mental

A magistratura brasileira é a mais produtiva do mundo e tem assumido responsabilidades cada vez maiores. Uma missão que exige um cuidado específico com a saúde mental, defenderam as palestrantes Carolina Gomes Gonçalves, médica, e Daiane Nogueira de Lira, conselheira do CNJ, na abertura da programação científica do terceiro dia do Enaje.

As palestrantes reafirmaram a urgência de tratar a saúde mental como prioridade institucional. O debate abordou as causas que levam muitos magistrados à exaustão, mas também propôs soluções para enfrentar os desafios da era virtual. Para elas, a mudança depende de apoio institucional.

Em sua palestra, a conselheira fez um relato franco e pessoal sobre sua experiência no CNJ, onde coordena o Fórum Nacional de Saúde Mental e Segurança dos Magistrados (Fonajus). Ela defendeu uma abordagem transversal para a formulação de políticas públicas voltadas à saúde mental.

Daiane Nogueira de Lira refletiu sobre a pressão crescente sobre os juízes, que precisam lidar com questões complexas, muitas vezes sem estrutura adequada, especialmente em regiões mais remotas. Para ela, a sobrecarga não pode ser atribuída apenas ao Judiciário, mas também à ineficiência da administração pública, que resulta na alta judicialização.

“Temos o Judiciário mais produtivo do mundo, mas precisamos de um olhar especial para os juízes. As instituições precisam tratar os magistrados com a mesma atenção dedicada ao jurisdicionado”, destacou a conselheira.

Em sua fala, a médica Carolina Gonçalves apresentou dados que demonstram o impacto do estresse e do isolamento no desempenho dos magistrados. “O cansaço pode levar à parcialidade do juiz”, alertou.

De acordo com a médica, há uma sobrecarga nas varas iniciais, que apresentam maior incidência de problemas de saúde mental. “Esse é um tema urgente, que precisa ser falado”, enfatizou.

Para Carolina Gonçalves, a liderança da AMB e do CNJ é crucial para mudar esse cenário. Ela destacou a importância do trabalho em equipe. “Mudanças de paradigma dependem de mudanças culturais.”

A médica sugeriu a criação de comitês de bem-estar e programas de treinamento nas escolas da magistratura, além de mentorias no início da carreira e iniciativas que reduzam o isolamento entre os juízes.

O debate foi mediado pelo ex-presidente da AMB, Jayme Martins de Oliveira Neto, que pediu atenção dos gestores à saúde dos magistrados. “Esse olhar precisa vir de cima, de quem faz as regras”, concluiu.

 

*Com informações e fotos da AMB